Mulheres do barro

Reinata Sadimba e Merina Amade, duas ceramistas moçambicanas, participaram numa residência artística na Bajouca, com o apoio da Fundação Gulbenkian. Este é um relato de um desses dias
22 out 2020

“Eu quero é barro.” No seu português rudimentar, Reinata Sadimba atalha rapidamente o início da conversa. Trajando um vestido cor de vinho com casaco a condizer, colar e brincos vistosos e uma echarpe prateada, Reinata não estava em Portugal para falar, muito menos numa língua que praticamente desconhece. Queria era pôr as mãos no barro, o material que há muito a colocou no mapa das artistas moçambicanas com projeção internacional e que ia servir de instrumento de interação na residência artística que a tinha trazido a Portugal.

Embora Reinata se apresentasse “à ocidental”, trazia as suas origens estampadas numa cara de idade incerta, toda tatuada. “Quando crescemos [Merina Amade, ao lado de Reinata, apalpa o peito para remeter para a puberdade] somos postas um mês num quarto. Saímos com a cara tatuada a carvão e oferecem-nos capulanas”, explica a segunda artista moçambicana. As tatuagens na cara (de ambas) são prova de um ritual de passagem, mas também uma forma de marcar, publicamente, a sua pertença à etnia maconde, onde se acredita que as figuras geométricas marcadas na pele vão atrair fertilidade e apaziguar a relação com os espíritos. 

Reinata Sadimba, artista consagrada, exibindo uma das suas histórias em forma de barro © Alberto Frias
Merina Amade, mostra um dos trabalhos que lhe saiu das mãos durante a estadia na Bajouca © Alberto Frias

Reinata Sadimba e Merina Amade deixaram o seu país, ao abrigo do apoio (da Fundação Calouste Gulbenkian) à mobilidade de artistas dos PALOP e no âmbito da candidatura de Leiria à Rede de Cidades Criativas da Unesco, para participar numa residência artística na Bajouca, concelho de Leiria.

A Bajouca é terra de oleiros. Céu Pedrosa, a oleira com quem Reinata e Merina mais trabalharam, vem de uma família com longa tradição no barro. O bisavô era oleiro, o avô (com quem Céu aprendeu esta arte) era oleiro, o pai era oleiro; em cinco irmãos, só um não se dedicou à olaria. Aos nove anos já Céu fazia peças. As tradicionais são utilitárias. “Se forem verdes e amarelas”, avisa, “só podem ser da Bajouca!”. Céu mantém-se fiel à tradição, mas com esta interação, com a troca de experiências, decidiu adaptar as suas peças, embelezá-las, pô-las a contar uma história, como fazem as artistas moçambicanas. Talvez assim as suas peças e as dos restantes oleiros da Bajouca ganhem reconhecimento, como deseja.

À roda da roda

Na olaria de Céu Pedrosa, Merina Amade não esconde o fascínio com a velocidade que a roda alcança. As peças saem das mãos de Céu num tempo recorde e com uma perfeição que Merina não consegue acompanhar. 

Na sua olaria, Alcino Pedrosa produz todo o tipo de peças, em grandes quantidades, e vende quase tudo para fora – da Alemanha à Austrália. Apesar de ter um negócio bastante mais industrializado que o da prima Céu, é ele quem senta Merina à frente da roda e lhe põe as mãos no bloco de barro em movimento. Merina, de idade indefinida, ganha um brilho quase infantil no olhar.  

No seu canto, Céu observa-a com um sorriso quase trocista. É ela quem tem produzido algumas das peças para Reinata e Merina decorarem. É esta a ideia por detrás da vinda das duas artistas moçambicanas à Bajouca: promover a troca de experiências, a interação entre dois mundos, a aprendizagem mútua, a inspiração. Céu faz peças utilitárias a grande velocidade. As artistas moçambicanas demoram-se a contruir cada uma e decoram-nas, juntando figuras decorativas e riscando-as com motivos geométricos maconde. As peças contam uma história.

As personagens de Reinata – “a mulher que vai buscar água e leva o filho Samuel às costas, recusando-se a deixá-lo com outra mulher”, “este marido, que é uma nhoca [cobra má] Maconde”, “a mulher que está grávida de um filho fora do casamento”, “a mulher que não quer ter cabeça” – têm histórias ricas e já foram expostas em Londres, Milão, Paris, Joanesburgo ou Nova Iorque, além de Lisboa, Évora e Porto. Merina, mais nova, a quem na Bajouca chamam por vezes “Reinata pequena”, faz figuras mais simples, com histórias menos elaboradas – “uma mãe grávida de trigémeos”, “uma pessoa que não tem filhos e está triste”, “uma mãe que dorme com o filho e o abraça”.

As explicações deixam transparecer que a vida de Reinata, mais longa que a de Merina, terá sido também mais sofrida. Mas encontrou o seu espaço. Fez o seu percurso e chegou longe, como artista, o que, sente, a obriga a não se expor em demasia – foi por isso que, perante a audiência, não experimentou a roda: porque não sabe, confessou.

As duas artistas moçambicanas levaram todo um outro mundo para a olaria do centro de Portugal © Alberto Frias

“Moçambique trouxe o mundo para a Bajouca”

“Quando o barro pretende ser demasiado real, perde essa magia”, explica Celeste Afonso, a responsável pela presença das duas moçambicanas na Bajouca. Era essa magia que queria mostrar aos oleiros de Leiria, para que pudessem “olhar para a olaria como para uma obra de arte”.

Esta residência inseriu-se no âmbito da candidatura de Leiria a cidade criativa na área da música. Música? Sim, explica Celeste: “Leiria tem 11 filarmónicas centenárias. Mas nenhuma cidade é criativa numa única área, portanto à música juntámos a olaria – não numa lógica conjunta, mas como como forma de estimular a criatividade.”

Faltava, no seu entender, que os artesãos da Bajouca contactassem com outros artesãos. Faltava estimular essa criatividade, a mesma criatividade que levou Reinata, numa noite, a pedir que lhe deixassem barro em casa. No dia seguinte, pela manhã, tinha oito peças começadas. “Não deve ter dormido”, conclui Celeste.

Reinata e Merina olham para o barro de forma diferente. Celeste quis que os bajouquenses vissem isso. E o que concluiu, no final da residência, foi que “Moçambique trouxe o mundo para a Bajouca.”

Parcerias para o Desenvolvimento

Com o intuito de apoiar a qualificação e internacionalização de artistas dos PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa), o Programa Gulbenkian Parcerias para o Desenvolvimento tem estruturado um sistema de apoios à mobilidade internacional de artistas (naturais e residentes num PALOP) nas áreas de Artes Visuais, Curadoria e Dança.

As residências artísticas como aquela em que Reinata Sadimba e Merina Amade participaram proporcionam condições de trabalho excecionais, facilitando a criação de redes colaborativas essenciais para a dinamização de processos criativos e sua afirmação nos mercados internacionais.

Cabe aos artistas escolherem a residência em que querem participar, devendo o júri – com base no currículo do candidato, a relevância da residência artística e da instituição de acolhimento para a qualificação e internacionalização do artista, tendo em conta o seu percurso artístico – avaliar o interesse da proposta e atribuir o apoio.

Saber mais

Definição de Cookies

Definição de Cookies

Este website usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. Podendo também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras.