No «Meio no Meio» está a virtude
Em inícios deste ano, dois grupos de diferentes territórios – Moita e Barreiro – frequentavam uma formação em Cinema. No dia 9 de março, em vésperas de ser declarado o estado de emergência nacional por conta da pandemia, foi decidido que não seria possível manter os encontros presenciais.
Este é o segundo ano de formação do projeto Meio no Meio, uma iniciativa da Artemrede para promover a capacitação, a criação de oportunidades de aprendizagem e a cidadania e construir espaços de socialização e de partilha entre diferentes gerações e geografias. Com a direção artística do coreógrafo Victor Hugo Pontes, trabalha com grupos intergeracionais em quatro territórios da Área Metropolitana de Lisboa (Moita, Barreiro, Almada e Marvila), envolvendo jovens entre os 16 e os 25 anos e adultos com mais de 45, em situação de vulnerabilidade social.
Interrompido o núcleo de formação, foi o momento de decidir como reagir ao período que se avizinhava. Desde logo, Victor Hugo Pontes explica que houve “uma vontade de atuar no momento”, dado que “apesar de as pessoas estarem todas em casa seria também um momento em que necessitariam de ter algum acompanhamento, de estarmos juntos de alguma forma, de criar alguma continuidade e ligação ao trabalho que tinha vindo a ser feito”.
Sem outra opção senão recorrer às soluções virtuais, o Zoom passou a ser a plataforma de eleição para promover os encontros e dar seguimento ao projeto. A primeira consequência deste “novo normal” foi a desconstrução da ideia de território: de repente, todos os participantes das diferentes áreas em que o projeto opera estavam juntos em sessões semanais aglutinadoras, a partir das suas casas.
Depois, veio a questão dos conteúdos a desenvolver nestas sessões. “Não quisemos de forma nenhuma dar continuidade às formações usando a plataforma Zoom, não foi esse o objetivo: foi criar outros desafios durante este período de quarentena”, esclarece o diretor artístico.
Cláudia Hortêncio, gestora de projetos da Artemrede, descreve este momento como “um processo de avanços e recuos, de tentativas”. Por exemplo: inicialmente eram lançados desafios nos encontros para desenvolver ao longo da semana. Depois, concluíram que este método “soava muito a trabalhos de casa” e, para não assoberbar mais as pessoas com tarefas, optaram por propor atividades que se pudessem fazer em direto nos encontros online.
Em média, cerca de 15 pessoas participavam nestes encontros e atividades, dirigidas pelos mediadores de cada área artística do projeto que se disponibilizaram para conduzir as sessões: cinema, artes visuais, teatro e dança.
“Esta coisa do colocar-me no lugar do outro”
Apesar de não existir um tema comum para a atividades desenvolvidas ao longo dos meses de quarentena, Victor Hugo refere que “aconteceu uma coisa curiosa que foi o estar no lugar do outro, eu pôr-me no lugar do outro”, por exemplo através de exercícios de desenho ou fotografia em que se pedia que retratassem outra pessoa.
Ana Sofia Pinto, do Barreiro, foi a participante mais regular nestas sessões, e destaca precisamente a possibilidade de conhecer membros do projeto de outras zonas com que normalmente não se cruzaria. “Esta distância aproximou-nos e passámos a conhecer-nos de outra forma, coisas que se calhar não iríamos conhecer se tivéssemos continuado ao vivo e a cores”.
Apesar de considerar todas as formações “uma mais-valia”, o exercício da fotografia foi o que mais a marcou: cada um enviou uma fotografia sua com pelo menos metade da idade atual, que outro colega foi desafiado a reproduzir. Os resultados são surpreendentes.
Rapidamente ficou claro que a empreitada de dar continuidade ao projeto à distância seria um desafio, a começar pelo facto de nem todos os participantes terem a mesma facilidade de acesso às plataformas digitais – consequência direta da diferença geracional e também das condições materiais e económicas de cada família. Cláudia Hortêncio recorda o exemplo de “uma participante que não tinha de todo Internet, nem forma de aceder, e ia para casa de uma amiga”, mas também outras “situações muito sensíveis” de isolamento ou depressão, em que sentiram que “era absolutamente fundamental não desistir destas pessoas”.
Para Victor Hugo Pontes, a força para motivar os outros, estando os próprios mediadores em situação de confinamento, também obrigou a uma gestão difícil. “Havia dias [no Zoom] em que era mesmo só dançar, eu punha música e fazia uns aquecimentos com a ‘Let’s Dance’ do David Bowie e vamos lá dançar até não poder mais”, só para no fim perguntar “como estão? mais suados, mais bem-dispostos, menos irritados?”.
Numa altura em que a preocupação era a de “criar momentos de descoberta e de encontro, mais do que criar resultados bonitos”, o facto de daí terem surgido criações artísticas tão relevantes foi uma surpresa para o diretor e toda a equipa artística. “Houve uma disponibilidade das pessoas, uma entrega muito grande, uma vontade de fazer, que fez com que o resultado seja muito positivo”.
As relações de intimidade criadas, num tempo de exceção, talvez possam explicar também esse resultado inesperado. “Ainda que estivéssemos tão afastados, estávamos todos em casa dos outros, no espaço em que eles estavam, e criámos outro tipo de intimidade, não só nesse aspeto, como no facto de que às tantas toda a gente estar a fazer os exercícios: os coordenadores, os mediadores, os artistas, os participantes e os familiares”, diz-nos Cláudia Hortêncio.
Além das ações de formação e pesquisa em cinco disciplinas artísticas (teatro, cinema, artes visuais, música Hip-Hop e dança), divididas em dois núcleos, o projeto tem dois momentos “encontros de partilha” anuais, em que os participantes dos quatro territórios se juntam para partilhar o trabalho desenvolvido. O próximo acontecerá no dia 18 de julho, no Teatro Municipal São Luiz, e será uma oportunidade para retomar o ponto de situação depois desta fase.
No culminar do projeto, em 2021, prevê-se a apresentação de um espetáculo multidisciplinar nos quatro municípios participantes. Ao mesmo tempo, todo o processo de formação e criação será registado e dará origem a uma longa-metragem documental a estrear no mesmo ano, realizada por Maria Remédio.
Meio no Meio é o segundo projeto da Artemrede produzido no âmbito da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, e conta com a parceria da Nome Próprio, da RUMO-Cooperativa Social, do CIES-IUL | Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa e de quatro municípios associados da Artemrede: Almada, Barreiro, Moita e Lisboa.