E do longe se faz perto
Na região da Cova da Beira, há dois grupos de mulheres que, desde maio de 2019, se juntam regularmente em laboratórios de iniciação à prática artística. São encontros multidisciplinares, espaços de experimentação pelo teatro e o movimento, mas também de pensamento e de aprendizagem em conjunto, onde se reflete sobre questões de género ligadas à monoparentalidade, aos direitos laborais e à intervenção social. Estes laboratórios, que reúnem participantes da Covilhã, do Fundão e Belmonte, são uma das principais iniciativas do projeto VELEDA, promovido pela Beira Serra – Associação de Desenvolvimento, em parceria com a associação de artes performativas Quarta Parede.
O anúncio da pandemia e consequente estado de emergência, que obrigou à suspensão dos laboratórios, foi uma reviravolta na vida destas mulheres que, de repente, se viram confinadas em casa com os filhos e com novos problemas para resolver. Marisa Marques, responsável pela área social do projeto, explica: “no grupo VELEDA temos pessoas com realidades muito diferentes. Mulheres que tiveram de sair de casa para trabalhar, mulheres que perderam o emprego por causa da pandemia; grande parte perdeu rendimentos; e outras tiveram de trabalhar mais, dar apoio aos filhos em casa com estes constrangimentos todos, com internet, sem internet, com computador, sem computador…”. Para lá das questões “práticas”, que a Beira Serra se esforçou por colmatar, foi o sentimento de união que fez do projeto “uma rede de suporte online – virtual, mas que estava lá”.
Cadernos da quarentena
Verónica tem três filhos com 10, 11 e 15 anos. Zita Pires vive com duas adolescentes. Embora em situações diferentes, o testemunho de ambas converge no que toca ao maior desafio destes tempos de quarentena: acompanhar a escolaridade das crianças em casa, mantê-las motivadas para os estudos, conciliar a vida doméstica com a vida profissional e com uma nova dimensão de educação. “A escola pede imensas coisas”, desabafa Verónica, “esquece completamente que eu enquanto mãe trabalhadora estou de serviço ao meu próprio trabalho, das 9h às 17h, e que também tenho de gerir as questões dentro de casa”. A pressão da escola, o sentimento de impotência, injustiça ou invasão do espaço privado e o medo de falhar são relatos comuns. “Se elas [as filhas] falharem eu falho, significa que não conseguimos. O que faltou fazer? Se ficar doente, a quem pedir ajuda? Para onde iriam?” são algumas das questões que afligiram Zita neste período de ansiedade.
Perante a imposição do isolamento social, a solução foi partir para o online. Os grupos nas redes sociais, as chamadas telefónicas e videochamadas tornaram-se os novos canais de partilha e apoio mútuo. “Numa primeira fase”, conta Sílvia Ferreira, responsável pela área artística do projeto, “acho que tem muito a ver com esta partilha do quotidiano e do que cada pessoa está a viver, e também deixar passar alguma tranquilidade e alguma segurança de que é um grupo onde podemos partilhar desabafos e ansiedades”. Depois, este contacto foi-se alargando para pequenos desafios semanais: a troca de vídeos com pequenos exercícios dramatúrgicos, a criação de “diários de bordo” sobre as vivências do quotidiano, ou a partilha de objetos artísticos e documentários inspiradores.
“Queríamos manter esta ligação e esta presença do projeto mas sem invadir demasiado as novas rotinas que todas tivemos de criar”, explica Sílvia. Uma das propostas lançadas foi a de “enviarem imagens que de alguma forma mostrassem o que é o quotidiano delas e que transformações é que aconteceram, para criarmos um pequeno vídeo com fotografias. Chamámos-lhe caderno de quarentena.”
Para Marisa Marques, este “foi um tempo de aproximação, de coesão de grupo”, onde até as pessoas que habitualmente eram menos participativas ganharam uma nova presença. Algumas das participantes chegaram mesmo a voluntariar-se para ajudar nas missões da Beira-Serra através, por exemplo, da criação de máscaras para as comunidades com quem a associação trabalha.
Sair de casa para regressar a casa
“Ironicamente”, diz Sílvia, “no laboratório estávamos a perseguir um bocadinho esta ideia de casa. O espaço casa, físico, emocional, simbólico, era uma coisa que tinha muita presença neste exercício performativo que estávamos a construir com os dois grupos”. Depois desta experiência, com o regresso à “normalidade” e o retomar das atividades, aquilo que foi construído será repensado, para “trabalhar em termos das linguagens do teatro e do movimento isto que é a distância entre os corpos” que, embora não seja uma coisa positiva, “pode ser um motor criativo e também um motor de reflexão”.
Para as participantes, a importância deste motor criativo é inegável. Além de mãe solteira, Verónica vive longe da família, pelo que o projeto tem para ela um sentido de “suporte familiar”. “Penso que essa mais-valia, o sentimento de pertença, só é possível porque o grupo comunica não só através da palavra, mas também do gesto, do corpo, em todos os exercícios que se vão fazendo. Toda a ferramenta artística e teatral é fundamental porque cria uma mudança no ponto de vista da pessoa; de repente uma situação trágica acaba por perder um bocado o seu peso, a sua carga emocional, e ganha um potencial transformador que é impossível imaginar sem essa ferramenta”.
Já Zita destaca, da sua participação no projeto, o sentimento de valorização. “Encontrar-me com outras pessoas adultas, com outras culturas, com outras vivências, outros problemas ou os mesmos problemas, e poder falar abertamente sem me sentir julgada. Senti-me realmente valorizada como ser humano, senti que também tinha alguma coisa a dizer e podia e devia fazê-lo”.
O futuro, para já, avizinha-se risonho. “Temos a certeza de que vão voltar muito próximas, com o sentimento de que estiveram juntas. Com uma ansiedade boa de regressar, com muita esperança de que vá correr bem, e também a pensar que estes olhares e estes momentos de reflexão vão trazer os seus contributos” conclui Marisa Marques.
O projeto VELEDA – do pseudónimo “Maria Veleda”, adotado por Maria Carolina Frederico Crispim (1871-1955), uma das mais importantes dirigentes do primeiro movimento feminista português e pioneira na luta pelos direitos das mulheres, pela educação das crianças e pelos ideais republicanos – dirige-se a mulheres sós, com filhos a cargo, em situação de vulnerabilidade socioeconómica. A proposta artística passa por duas atividades nucleares interligadas: os laboratórios de pesquisa social e artística, para desenvolvimento de soft skills e iniciação à prática teatral, e a criação de um espetáculo de teatro documental, a par com uma equipa artística profissional.
Além do apoio da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Integração Social, da Fundação Calouste Gulbenkian, conta com a parceria do MDM – Movimento Democrático de Mulheres e da UBI – Universidade da Beira Interior.
Veja o vídeo sobre o “Caderno de quarentena” no site do projeto VELEDA