“As Bravas” – heroínas da vida real para inspiração das gerações futuras
“Maria Filomena Manuel, mais conhecida como Filó, a mais velha de seis irmãos, nasceu em Angola, na tribo Mamuila”. Começa assim a história de “Filó, a Cozinheira de Afetos”, desenhada pelas mãos de Clara Não, naquela que é já a quarta fanzine do projeto ENXOVAL: Tempo e espaço de resistência, desenvolvido pela PELE, entre o Porto e Amarante. É um dos projetos apoiados na terceira edição da iniciativa PARTIS.
Filó, “mulher independente e dedicada”, fundadora da Cochiló – Associação Cultural Afro-Portuguesa, no Porto, junta-se a “Ana, a Brava”, “Rosalina, a Sonhadora” e “Lokas, a Sem Fronteiras”. Mas quem são estas mulheres, tão diferentes entre si, a quem chamam Bravas?
“Quando pensamos na História, os grandes nomes que nos ocorrem assim à primeira vista são nomes de homens, nomes de reis, nomes de personagens masculinas” explica Inês Lapa, diretora artística do projeto. “Começamos a perceber que há aqui uma camada de invisibilidade de histórias de muitas mulheres que de certeza fizeram a diferença, mas que não estão a ser contadas.” Assim surgiram as Bravas – histórias de “heroínas da vida real que nos inspiram e que queremos inscrever na nossa história, na nossa memória coletiva”.
Uma narrativa construída a muitas vozes
Este é um dos vários “braços” do projeto Enxoval, que desde 2019 trabalha com grupos de teatro comunitário no Porto e em Amarante sobre temas do património feminino e a igualdade de género. As histórias chegam a partir de uma open call que é lançada ao público nas redes sociais: quem quiser pode partilhar a história de uma mulher inspiradora na sua vida, enviando-a por escrito ou em gravação áudio de até três minutos.
De entre as várias candidaturas recebidas, cabe aos grupos comunitários escolher as histórias que serão ilustradas e transformadas em fanzine. A seleção recai sobre alguns critérios pré-definidos, como, explica Maria João Mota, responsável pela área social do projeto, “a questão da representatividade, de saber se aquela Brava já tem ou não um espaço de visibilidade ou se é alguém completamente anónimo, porque se já tem essa afirmação no espaço público se calhar vamos privilegiar outras. Esse é um processo de eleição democrático”.
O passo seguinte é a ilustração da história. É aqui que entra Clara Não, ilustradora no Porto, que vai trabalhar a partir do ficheiro áudio onde é contada a história e de uma conversa com a pessoa em questão, quando possível, ou com um familiar próximo. “Isto é sempre feito em colaboração para as duas partes ficarem contentes; interessa-nos saber que estamos a representar alguém e fazê-lo de forma a que a pessoa se sinta representada” explica Clara. O resultado final é uma fanzine, disponibilizada online no site da PELE, impressa e distribuída por vários espaços em todo o país.
A parceria com Clara tem impulsionado a visibilidade do projeto, graças à comunidade de seguidores da artista nas redes sociais. Conhecida pela irreverência e ironia nas ilustrações, onde reivindica a igualdade, trata tabus da sociedade e explora experiências pessoais, a ilustradora e autora acredita que “é importante não falar só de mulheres já muito conhecidas, porque não são essas mulheres que diretamente mexem com o nosso dia-a-dia; são pessoas que convivem connosco e que estão na nossa comunidade”. É por isso que, quando recebeu o convite, não hesitou: “identifiquei-me muito com o projeto e estou a participar com muito gosto”.
“Desocultar” as histórias invisíveis
No caso da Filó, os primeiros 500 exemplares da fanzine já “voaram”. A sua história foi partilhada pela amiga Teresa, que também a está a ensinar a ler e a escrever. Nas palavras desta “cozinheira de afetos”, ver a sua história contada por escrito “é uma alegria”. “Eu estudei a preparatória e a primeira classe em Angola, nas Carmelitas, mas depois a minha mãe aos dez anos pôs-me a trabalhar”, conta. “O que eu aprendi de ler e escrever lá ficou – como assinar o meu nome – mas depois vai morrendo. Isto é como acordar novamente.”
A quem lhe pergunta se não se sente estranha por expor assim a sua vida, responde “então não é bom? se eu tivesse estudado, se calhar escreveria um livro. Mas se apareceu alguém que diz ‘queres participar? queres dizer quem és?’, claro que vou participar.”
Ouça a história da Filó, contada pela amiga Teresa
Até ao fim do projeto (em 2021), diz-nos Inês Lapa, estão previstas 12 fanzines, perfazendo “uma coleção de 12 mulheres totalmente diferentes mas igualmente inspiradoras, cada uma à sua maneira”. Da coleção farão parte, por exemplo, uma juíza, uma doula ou uma auxiliar de saúde num lar – um papel tão essencial nos dias que correm. A preocupação de “desocultar” as histórias que de outra forma não serão contadas, em diferentes gerações, territórios e contextos é o objetivo transversal a toda a narrativa do projeto.
O ENXOVAL parte da ideia do enxoval enquanto representação social da condição feminina para propor uma abordagem multiterritorial, transdisciplinar e intergeracional sobre a igualdade de género através da música, o teatro, o movimento, o bordado ou a ilustração. Além das fanzines, artistas e participantes colaboram também em ações performativas como a instalação “Enxoval, um bordado a muitas mãos”, apresentada na mostra “Isto é PARTIS”, em janeiro.
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