A volta ao mundo que é uma volta à vida
Foi numa quarta-feira, 23 de outubro, que estreou Monstro em Mim, o primeiro espetáculo integrado no projeto Mare Liberum, promovido pela Aporvela – Associação Portuguesa de Treino de Vela, em parceria com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e a associação CUSCA, no âmbito da terceira edição da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social. Durante 30 minutos, a caravela Vera Cruz, atracada na doca de Alcântara, foi o cenário onde 12 jovens residentes no Centro Educativo Navarro de Paiva puderam contar a sua história de medo e superação, inspirada na figura de Fernão de Magalhães, cuja famosa viagem marítima comemora 500 anos.
A “travessia” destes jovens, com idades entre os 14 e os 18 anos, teve início em fevereiro, com oficinas de escrita criativa que evoluíram depois para aulas de expressão dramática e deram origem a uma peça de teatro original. Em paralelo, a Aporvela organizou sessões de navegação na caravela, com uma abordagem teórico-prática de treino de mar, realizada em complemento à dimensão artística e criativa.
Catarina Aidos, responsável pela dinamização artística do projeto, explica que, antes de começar a construir o espetáculo, era necessário “perceber como é que a ideia de volta ao mundo lhes poderia abrir horizontes para – e isto é uma expressão deles/as [dos jovens] – uma ‘volta à vida’”: “O espetáculo é sobre esta ideia de mar interior; de que nós somos também esse horizonte longínquo. Podemos ser muito mais do que aquilo que os olhos alcançam.”
O Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, além de ser o primeiro dos três centros educativos que vão estar envolvidos neste projeto, é um centro misto: rapazes e raparigas partilham paredes, mas estão, habitualmente, separados por elas. Este projeto-piloto passou também pelo desafio de permitir que uns e outras percorressem o caminho juntos, adicionando mais um elemento libertador ao processo.
Mare Liberum parte da convicção de que estes jovens carecem de experiências diferenciadoras e de mundividência que lhes permitam uma reinserção plena na sociedade e na comunidade educativa, e procura, através do complemento entre o estímulo físico e artístico, ajudá-los a desenvolver a sua autoestima, capacidade criativa e espírito de equipa. No total, participaram (até ao fim) 14 jovens, seis raparigas e oito rapazes (selecionados pela direção do centro em função das condições e duração da medida tutelar a ser cumprida), os quais, ao longo do ano, assumiram o papel de atores ou assistentes de cena.
Os monstros em nós
Umas horas antes do espetáculo, o ânimo na caravela está ao rubro. No porão, as raparigas penteiam-se, maquilham-se e preparam-se para a estreia em “palco”; no convés, os rapazes já se juntam em volta do microfone a cantar um rap animado. Rui Santos, representante da Aporvela, justifica: “Isto que está a acontecer hoje não é normal.” Sair do centro educativo para subir à caravela, participar num espetáculo de apresentação pública onde são protagonistas, é uma oportunidade única para “libertar a cabeça e a mente do quotidiano do centro e, sobretudo, para o empoderamento deles próprios”, uma vez que falamos de jovens que “não estão habituados a concretizar objetivos, a ter metas estabelecidas e a expor-se ao risco e a coisas que fogem ao universo deles, como o teatro, a escrita, a expressão artística…”.
A mensagem desta história, encenada e representada pelos jovens sob as orientações meticulosas de Catarina, é muito clara. Doze marinheiros são confrontados com um monstro. Têm de decidir entre fugir ou tentar derrotá-lo. Um deles argumenta: “Não é a fugir que nos salvamos dos monstros. Só quando os combatemos é que eles desaparecem.” Outro confessa ter medo. Alguém diz, sob a forma de consolo: “Às vezes é preciso ter medo. O que não podes é deixá-lo vencer.” No fim, é o monstro que sai derrotado pela força conjunta.
Para a equipa por detrás do projeto, o sucesso desta iniciativa é mensurável sobretudo pelo facto de alguns participantes quererem manter a sua participação, mesmo depois de cumprida a medida tutelar. Por exemplo, a data do espetáculo teve de ser antecipada para que I pudesse estar presente antes da data de saída do centro, poucos dias depois. Outra rapariga, T, jurava desde o início do ano que não ia estar presente em cena e chegou a admitir ter planeado “portar-se mal” para não poder sair na data da estreia, mas acabou por fazer parte do espetáculo e quer continuar a acompanhar os ensaios, mesmo depois da sua partida em janeiro. “Este projeto já valeu a pena se houver uma jovem que passou a acreditar nela, a acreditar que é capaz”, diz Catarina. “Se houver uma! E nós sabemos que são mais. São [pelo menos] onze.”
Com a duração prevista de três anos (2019- ‑2021), um para cada centro, Mare Liberum vai trabalhar com três centros educativos da região de Lisboa (Navarro de Paiva, Bela Vista e Padre António de Oliveira) enquanto projeto-piloto que possa ser replicado nos restantes centros de Portugal. Além das navegações na caravela Vera Cruz, da formação em escrita criativa e teatro e dos espetáculos daí resultantes, está também prevista a realização de vídeos de curta-metragem.
Monstro em Mim terá nova apresentação, desta vez na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito do encontro Isto é PARTIS, de 24 a 26 de janeiro em 2020.