A floresta amazónica invade o Grande Auditório

No dia 6 de maio, o Grande Auditório recebe a estreia mundial de 3 mil RIOS, uma ópera multimédia que reflete sobre a acelerada destruição ambiental das florestas tropicais da Amazónia colombiana e brasileira, na costa do Pacífico e nas montanhas dos Andes.
04 mai 2016

Este trabalho ambicioso, fruto de uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, junta música e vídeo que resultam de um extenso trabalho de campo efetuado durante quatro anos na floresta amazónica. A peça, em três atos, vai levar ao palco a Orquestra Gulbenkian, dirigida por Rui Pinheiro, juntamente com cantoras e percussionistas de Angola, da Colômbia e da República Democrática do Congo.

Em entrevista, o compositor Victor Gama explica o processo que resultou na obra que é 3 mil RIOS.

 

O que é 3 mil RIOS?

É um projeto que surge da necessidade de contactar a realidade que se vive nas grandes florestas da Amazónia, na costa colombiana do Pacífico e nas florestas dos Andes. A vontade era também perceber qual o impacto causado por esta nova onda de industrialização que está a atravessar todas as florestas de chuva do mundo. Esse impacto tem grandes e graves consequências para a vida dos habitantes da Amazónia, mas também enormíssimas consequências para o meio ambiente, uma vez que floresta está neste momento numa acelerada fase de destruição e há um risco de colapso do ecossistema. A ideia foi então criar uma peça que contasse, ou que pelo menos abordasse, essa realidade de uma forma que fosse mais profunda, derivada de uma investigação mais completa.

Como decorreu todo o processo de investigação no terreno?

Comecei a investigação há quatro anos, embora tenha uma relação com a Colômbia e com a América do Sul há mais de 20. Quase todos os anos vou à Colômbia e tenho uma espécie de base nos Andes, nas montanhas. Tomei a decisão de tentar criar um projeto que aborda as questões da deflorestação e para isso contei com algumas alianças com organizações locais. Duas delas são organizações artísticas que me convidaram para residências artísticas e através das quais consegui estar algum tempo em locais onde normalmente é difícil estar. A outra, que é uma organização importante neste projeto, tem acompanhado o projeto há dois, três anos – é uma organização ambientalista chamada “Amazon Conservation Team”. Com eles eu pude fazer cerca de sete a oito viagens e passar temporadas de um mês, mês e meio, nesses ecossistemas a tentar perceber o meio, a falar com as pessoas, a conhecer o trabalho desta organização que trabalha com comunidades por vezes bastante remotas. Sem esta parceria, dificilmente seria possível chegar lá.

E qual tem sido a reação das comunidades locais ao processo de deflorestação?

Essas comunidades conhecem muito bem essa realidade porque as suas histórias são as da colonização, da conquista espanhola e da portuguesa de há 500 anos. Portanto, para eles não é nada de novo, só que em vez de caravelas são as multinacionais e os próprios governos que chegam com planos de construção de barragens hidroelétricas e de perfuração petrolífera. Para eles é o mesmo desrespeito pelos seus direitos e a mesma invasão territorial.

Como é que se transforma um trabalho de investigação em arte?

Eu acho que isso só é possível quando há um envolvimento muito intenso e profundo numa realidade. Quando queremos conhecer uma realidade, temos que vivê-la e, a partir daí, trabalhar a parte mais artística. Só é possível se a mente estiver focada nessa realidade, se passar um tempo a conhecer as pessoas, a falar com elas, a envolver-me, a fazer amigos entre essas pessoas, a fazer parte daquele mundo. Dessa forma é possível depois sentar-me e olhar para aqueles vídeos, para o material, para tudo aquilo e deixar que o processo de pôr as coisas a andar tome o seu caminho.

O texto e a partitura da ópera foram também inspirados pelo livro Cariba Malo e pelas cerimónias de yagé. Porque é que estes dois elementos também foram importantes na construção da obra?

O Roberto Franco, autor de Cariba Malo, era um politólogo e antropólogo colombiano que andava há décadas a estudar os povos que vivem em isolamento voluntário na Amazónia, sobretudo na Amazónia colombiana. São aquelas tribos que vivem isoladas e que estamos habituados a ver um pouco como uns índios que estão por lá perdidos e que quando passa uma avioneta atiram flechas. Na realidade, o livro dele desconstrói esse mito e essa ideia preconcebida ao tentar explicar a história de uma tribo em particular, a Yuri, que vive numa região muito próxima da zona onde estive e onde ele trabalhava. Era um povo bastante grande até à chegada dos portugueses e dos espanhóis. Os seus números diminuíram com a tentativa de sobrevivência a esse embate, que foi fatal para muitos desses povos devido à transmissão de doenças e à violência com que eram tratados. Eles foram fazendo um trajeto para o interior, para rios cada vez mais pequenos, cada vez mais isolados, para tentar sobreviver. Algumas dessas tribos encontram-se hoje em lugares remotos, alguns já não tão remotos porque entretanto já lá chegou toda esta vaga de desenvolvimento e de “progresso”. Portanto, ele explica um pouco porque esses povos se isolaram, voluntaria ou involuntariamente.

Quanto às cerimónias de yagé, que também é conhecido, entre outros nomes, como “ayahuasca”, são uma janela sobre a cultura da Amazónia. Trata-se de uma bebida que é preparada e que é tomada numa cerimónia em grupo, dirigida por um xamã, normalmente bastante experiente, com os seus assistentes. As pessoas tomam essa bebida, esse preparado, que proporciona um trabalho interior. Muitas vezes permite também ter visões, digamos que proporciona um estado alterado de consciência, mas num contexto de uma cerimónia, com um determinado sentido. Estas cerimónias realmente abrem uma janela para uma cultura ancestral, a cultura dos povos amazónicos. Essa cultura também pode ser muito diversa, mas há algo em comum em todas, que é este modo de vida absolutamente sustentável com a natureza, com a floresta, um conhecimento profundíssimo das plantas, das árvores, dos animais, de tudo aquilo que os rodeia. Participo já há 20 anos em cerimónias destas com alguma regularidade e esse é um dos elementos que influencia a música.

Victor Gama também é conhecido por construir os seus próprios instrumentos. Há instrumentos específicos criados para esta peça?

Não há instrumentos específicos, mas haverá instrumentos meus que agora estão numa fase em que precisam de continuar a desenvolver-se. São objetos complexos e, quando se cria um instrumento, vai ter sempre determinadas limitações, apesar de poder ser ótimo num determinado momento. Nesta altura, estou mais focado no desenvolvimento de instrumentos que já foram previamente criados e desenhados. Para esta peça trago mais um passo nesse desenvolvimento, sobretudo para dois deles, a toha e o acrux. São instrumentos com que trabalhei quando estive seis meses na Universidade de Stanford, entre 2014 e 2015, no CCRMA (Center for Computer Resarch in Music and Acoustics). Esse período proporcionou uma oportunidade para voltar a trabalhar nesses instrumentos e também para trabalhar aspetos técnicos da peça, nomeadamente todo a questão do som surround que vamos utilizar no Grande Auditório.

Conferência 3 mil RIOS

No dia 4 de maio, no Auditório 3, haverá uma conferência com o objetivo de contextualizar a temática de 3 mil RIOS e proporcionar ao público um maior enfoque sobre as questões ambientais e sociais que estão na origem do projeto. Os temas abordados vão passar pelo impacto ambiental e social de projetos como a construção de barragens hidroelétricas e a prospeção petrolífera; os processos de legalização e restituição de territórios indígenas ancestrais e as razões que levaram uma organização ambientalista a apoiar uma ópera. A conferência terá a presença de Victor Gama, Carolina Gil, diretora da Amazon Conservation Team (ACT) e a antropóloga Maria Inês Palacios, também da ACT.

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