A estreia de Bosch Beach

06 out 2016

Uma nova ópera de Vasco Mendonça, coproduzida pela Fundação Gulbenkian e pelo Teatro Maria Matos, será apresentada em Lisboa, nos dias 20 e 21 deste mês. Estreada mundialmente no mês passado em Bruges, na Bélgica, Bosch Beach é uma intensa alegoria do mundo de hoje à luz do fascinante universo do pintor flamengo Hieronimus Bosch. Cinco séculos depois da sua morte, um trio de criadores, Vasco Mendonça, Dimitri Verhulst e Kris Verdonck, partiu em busca de um falso paraíso onde se esconde, hoje, o inferno na terra, traduzindo-o numa ópera. Não foi difícil de encontrar.

Dois homens e uma mulher tomam banhos de sol e de mar na maravilhosa praia de Lampedusa. São pessoas normais, a gozar férias, que se seduzem, enviam postais com clichés e bebem cocktails até de madrugada. A ressaca dá origem uma breve crise existencial que curam, no dia seguinte, com mais cocktails.

Este é o aparentemente prosaico pano de fundo de Bosch Beach, uma ópera baseada na obra Os 7 Pecados Mortais de Hieronimus Bosch, produzida pela LOD muziektheater, de Ghent, para comemorar os 500 anos da morte desse artista. Não se trata, no entanto, de uma praia qualquer. Enquanto os veraneantes tomam banhos de sol, centenas de refugiados dão à costa perante a indiferença geral. Composta por Vasco Mendonça, a partir de um libretto do escritor e poeta Dimitri Verhulst e com encenação de Kris VerdonckBosch Beach joga com a ambiguidade deste cenário e com a questão da culpa, convocando o nosso grau de responsabilidade nesta catástrofe. O confronto com a vaga de refugiados em Lampedusa (assim como em Calais, Kos, Macedónia entre outros locais) produz, de acordo com os criadores, um apelo moral que não se prende apenas com a ajuda que se nega ou a mão que não se estende. Não somos nós, ocidentais, também responsáveis pela pobreza e pelas guerras noutros continentes? De que modo nos devemos sentir responsáveis individualmente? O que devemos fazer?

A estas questões somam-se outras que fazem a ponte com a pintura de Bosch: com o que se parece, hoje em dia, o inferno na terra? Onde está o falso paraíso onde ele se dissimula? Tomar banhos de sol e de mar, falar de trivialidades, fechando os olhos ao cenário de horror mesmo ao lado, parece, de facto, aproximar-se dessa ideia. Em Bosch Beach, o falso paraíso de um resort e o inferno na terra “à maneira” de Bosch fundem-se de um modo perfeito.

 

“Uma segunda idade das trevas”

Vasco Mendonça, que aqui dá mais um passo na sua afirmação internacional depois do sucesso obtido com a ópera House Taken over, encenada por Katie Mitchell e apresentada na Gulbenkian Música em 2014, sublinha a singularidade de Bosch. Numa época em que a pintura era dirigida a uma população iletrada e tinha como função constituir um “guia visual” para estabelecer um “código moral”, Mendonça considera surpreendente aretórica de Bosch, bem como as figuras que pinta, verdadeiras “coreografias do horror” que classifica de absolutamente únicas. “Num período em que predominava o realismo”, afirma, “o pintor não tem medo de distorcer a realidade, enveredando por uma espécie de expressionismo selvagem, aliás, bastante atual, visto à luz do nosso século.”

Da mesma forma que a sociedade medieval estava organizada em função do culto da divindade e receio da punição, o compositor diz existir hoje uma entidade semelhante, que dá pelo nome enigmático de “mercados”. “Ninguém percebe muito bem este sistema, mas alguém está algures a dirigi-lo.” Dá como exemplo a Grécia, onde velhotas morrem de frio porque o défice tem de baixar. “Esta primazia do défice sobre a vida humana não é uma questão só económica, longe disso, é uma escolha política, um ethos”, conclui o compositor, para quem “estes sinais sugerem que entrámos numa espécie de segunda idade das trevas”.

 

“Uma terrível forma de humor”

O artista plástico e encenador belga Kris Verdonck, que faz a sua primeira incursão no mundo da ópera, confessa, a propósito do universo boschiano, “hermético e povoado por objetos e criaturas estranhas”, não estar interessado na representação do céu e do inferno, mas no mundo intermédio, “entre a realidade e a imaginação”. Verdonck afirma que a ópera é um bom meio para traduzir este estado “entre mundos” próprio do ambiente criado por Bosch nas suas pinturas. Admitindo não conseguir imaginar o mundo em que o pintor viveu nem a violência que o rodeou, com “pragas, fome, violência, genocídio”, considera, no entanto, que o desprezo que esse mundo sentia pelos mendigos, pobres, aleijados, escravos e refugiados, não deixa de remeter para o mundo atual.

Outro aspeto que o encenador destaca na obra de Bosch é que as suas personagens, ao contrário do esperado, não parecem sofrer: “Estão a ser cozinhados num caldeirão, mas sorriem.” Se as questões da moralidade, da culpa e do pecado são temas que percorrem a pintura de Bosch, o encenador sublinha o modo como ele também ri destes temas, sem dúvida “uma terrível forma de humor”.

 

Bosch Beach

Teatro Maria Matos, 20 e 21 de outubro, 21h30

 

Orquestra Gulbenkian

Etienne Siebens maestro

Marion Tassou soprano

Rodrigo Ferreira contratenor

Damien Pass barítono

Ópera de Vasco Mendonça, libreto de Dimitri Verhust e encenação de Kris Verdonck. Produção: LOD muziektheater; Coprodução: Jheronimus Bosch 500 Foundation, Fundação Calouste Gulbenkian, Teatro Maria Matos, ASKO Schönberg, Concertgebouw Brugge, A Two Dogs Company, Theater Mousonturm Frankfurt, Vlaams Fonds voor de Letteren

 

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