O conto da Fada Maria Paula Figueiroa Rego

Bolseira Gulbenkian – Histórias de Impacto
21 out 2021

Chama-se Maria Paula Figueiroa Rego. Não começa por era uma vez, mas é uma fada e uma artista. Fada por ser dona do seu universo próprio e peculiar. Pintou muito sobre outras fadas com histórias que podiam ser a dela. A sua casa chama-se Casa das Histórias também por isso. Fica em Cascais, um pouco depois do Estoril, onde começou a sua vida de nascida em Lisboa. Dali, para Londres. De Londres, para todas as cidades que a sua imaginação e que a sua vida permitiram.

 

Toda a gente a conhece por Paula Rego. Nem toda a gente sabe que, em criança, tinha medo de tudo. Nasceu em 1935 e só as histórias e os contos que a avó lhe contava à noite a descansavam. Foi o primeiro descanso da sua inquietação de fada. Sabemos que as fadas têm tamanhos afazeres, a começar pela missão de simplificar todas as almas do mundo, fazendo-as acreditar que tudo podem quando tudo querem. O outro descanso foi desenhar. Gritava e desenhava, gritava e desenhava, sempre em uníssono para que os pais soubessem qual era o seu paradeiro. Quando os pais saíam, Maria Paula deixava-lhes um desenho nas suas almofadas. O amor começa cedo. Só não concretizou o desejo da tutora terrível, com nome de violeta: desenhar convenientemente uma chávena e um pires. A quem é que isso convém, hão de perguntar os deuses e as deusas que se encarregam das fadas.

 

Em 1952 foi para Londres. Era uma vez a Maria Paula em Inglaterra, a estudar na Slade School of Fine Arts. É um nome pomposo para um conto de fadas, porém real e importante. Foi nesta escola que recebeu o reconhecimento que mais a preencheu até hoje, um saudoso primeiro lugar do prémio Summer Composition. E não faltam galardões na sua vida, mas o primeiro é sempre o primeiro, principalmente quando ao seu lado estavam grandes artistas estrangeiros da época, um deles o futuro marido, Victor Willing, e futuro pai dos seus três filhos, Nick, Victoria e Caroline. Entre gelados, cinema e danças ou o esparguete da sua amiga Teresa Black, não se tardou a enamorar. Pelo Victor e por Londres, onde se encontra até hoje. 2020.

 

Este foi o ponto de partida da concretização das criações profissionais. No estágio dos adultos e das adultas, no qual se duvida que Maria Paula queira pertencer por respeitar o seu papel de pessoa que vive inteiramente, é preciso trabalhar, trabalhar, trabalhar. Ela criou, criou, criou, com diversas técnicas, com curiosidade, com uma modelo-mulher, a Lila Nunes, com vários modelos-bonecos, a partir da imaginação e a partir das suas várias vidas dentro da vida base, e alimentou as almas aflitas de sucesso sem definição de origem.

 

“Tudo o que é importante para mim acaba num quadro” (1). E sem histórias, sem relação íntima com as histórias, não há obra. “O desejo e o impulso vêm de dentro. Eu preciso de uma história com a qual me identifico para ter esse desejo” (2). É esta força interior, a inteireza da sua verdade, que colocou as suas obras na boca do mundo. É certo que o seu marido Vic, também pintor, foi uma grande ajuda, ensinou-a, despertou-a, mas mantiveram registos diferentes. Não se dependiam e isto é um grande ensinamento das mulheres fada: bastarem-se a si próprias. O seu registo é pessoal e intransmissível. Desta premissa, vieram obras como Os cães de Barcelona (1965), onde aparece uma potencial amante de Vic, ou Os mártires (1968), onde são evocados os amantes da pintora, ou A Dança (1988), onde se enaltece a partida de Vic numa dança à beira-lua da Ericeira. Relação de amor intempestiva desde o início, em que antes de casados foram amantes, mas de amor até ao último dia do primeiro a partir.

 

Entre 1957 e 1962, Maria Paula, Vic e os filhos viveram na Ericeira, numa quinta de família, a que serviu de cenário à obra A Dança. Entre 1962 e 1974, passaram a repartir a estada entre Ericeira e Londres, num período em que Maria Paula recebeu a primeira bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi a abertura de um portal de reconhecimento do seu trabalho. É que, antes de tudo, Maria Paula era Paula Rego, a artista, depois mulher e depois mãe. Uma das suas primeiras participações em exposições coletivas foi na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1961, onde viu o seu trabalho bem acolhido pela crítica. Nesta exposição, além de ser uma das artistas convidadas, um dos seus quadros foi comprado pela Fundação Gulbenkian, o que lhe deu confiança para ser levada a sério. “Tiveram fé no meu trabalho e isso é o presente mais generoso de todos” (3).

 

Em 27 de abril 1976, a Fundação Gulbenkian recebe o seguinte bilhete: “Situação financeira péssima devido ao colapso total da nossa empresa, o que nos deixou, ao meu marido e a mim sem qualquer ordenado ou vencimento. Colapso do mercado da Arte no país aonde é quase impossível vender qualquer coisa” (4). Não há bela sem senão e o 25 de abril de 1974 trouxe uma reviravolta na situação financeira da família.

Mas ao lado do problema, vinha também a solução: a inscrição nas Bolsas de Estudo de Especialização do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. A proposta era irrecusável, assim constava dos apontamentos institucionais com pareceres positivos. “Não deveremos esquecer que a pessoa que procede a esta tão invulgar investigação é também uma invulgar pintora e que aquela temática ou temáticas semelhantes integram grande parte da obra que tem realizado. Não nos restam dúvidas, com o conhecimento que temos da pintura de Paula Rego, (…) que isso venha a ter grande repercussão no seu trabalho futuro” (5), escreveram Maria do Carmo Marques da Silva e Fernando de Azevedo. Ficou, então, celebrado o início do conto de fadas.

 

“Depois de ter feito várias ilustrações para alguns contos tradicionais portugueses, comecei a ler sobre contos de fadas e contos populares e compreendi que a rede de ligações é fortíssima entre todos os contos de fadas e populares de todo o mundo./ Interessa-me muito o aspecto do “Inconsciente Colectivo” destes contos de que fala Jung e seus discípulos, em especial Marie Luise Von Franz que tem vários livros sobre a interpretação do Conto de Fadas./ Gostava de procurar nas várias bibliotecas e museus o maior número possível de ilustrações que se têm feito destes contos e eventualmente gostaria de ilustrar mais prolificamente os contos tradicionais portugueses ou integrar esses mesmos contos eternos na nossa mitologia contemporânea e experiência pessoal através da pintura” (6). Orientadora de estudos ou de estágio (requisito da inscrição): a própria. E assim foi no ano e meio que se seguiu a setembro de 1976, quando começou a sua investigação sobre contos nas bibliotecas British Museum Library e Victoria Albert Musuem Library, em Inglaterra, na Bibliotheque Nacionale, em França, e na Biblioteca Nacional, em Portugal.

Esta bolsa foi determinante no percurso de Maria Paula e de Paula Rego. Vida e obra não se dissociam. Tão determinante que a mais recente exposição sobre este tema foi em 2018: Paula Rego: Contos tradicionais e contos de fadas. Para não falar da exposição de 2010 – Paula Rego Anos 70 – Contos Populares e Outras Histórias – e do que o universo do conto lhe proporcionou como matéria-prima não palpável das obras que se seguiram.

 

Foi uma mulher de causas, veja-se a série Aborto (1998), um conjunto de obras que fez a partir da sua experiência e da sua indignação perante o resultado do primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em Portugal. Foi uma mulher que tocou várias artes, veja-se a publicação, numa edição limitada, numerada e assinada, do livro As Meninas (2001), uma obra conjunta da artista e de Agustina Bessa-Luís. E veja-se o documentário Paula Rego, Histórias & Segredos (2017), em que aos oitenta e dois anos é a figura principal numa intimidade nunca antes vista, realizado pelo filho Nick Willing, que, além de ter passado nas salas de cinema, passou em comemoração especial também na Fundação Calouste Gulbenkian. E foi uma mulher muito reconhecida, a tomar pelos prémios e pelas consagrações nacionais e internacionais, a mais recente em 2019: Medalha de Mérito Cultural do Governo português.

 

Texto de Rita Dias

Referências:

(1) Em entrevista a Paula Rego, por Rita Dias, na Fundação Calouste Gulbenkian (2020)
(2) Em entrevista a Paula Rego, por Rita Dias, na Fundação Calouste Gulbenkian (2020)
(3) Em entrevista a Paula Rego, por Rita Dias, na Fundação Calouste Gulbenkian (2020)
(4) Em Artes Plásticas e Exposições – Subsídios Concedidos – Pesquisas Artísticas, Fundação Calouste Gulbenkian (1976)
(5) Em Artes Plásticas e Exposições – Subsídios Concedidos – Pesquisas Artísticas, Fundação Calouste Gulbenkian (1976)
(6) Em Artes Plásticas e Exposições – Subsídios Concedidos – Pesquisas Artísticas, Fundação Calouste Gulbenkian (1976)

 

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