A moderna arte africana de Malangatana

Conheça o percurso artístico de Malangatana, grande conhecedor tanto de culturas ancestrais africanas como da cultura ocidental.
Patrícia Rosas 05 jun 2020 7 min
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Malangatana Valente Ngwenya nasce a 6 de junho de 1936, em Matalana, uma povoação do distrito de Marracuene, a 40 km de Maputo, em Moçambique. Frequenta a Escola da Missão Suíça de Matalana, onde desenhava «coisas que via nos livros». Em 1953, quando vai trabalhar como empregado de mesa para o Clube de Lourenço Marques, o velho Grémio, como era conhecido, Malangatana começa a «aguarelar as cabeças de certos carecas jogadores de bridge e de ténis».[1] 

No Clube, conhece o pintor e biólogo Augusto Cabral – que o orienta quando é jovem: «(…) ainda garoto, me pediu que o ensinasse a pintar»[2] – e o célebre arquiteto Pancho Guedes, que, acreditando impreterivelmente nas potencialidades do artista, proporciona a Malangatana a saída do Clube, passando a pagar-lhe uma renda mensal e a adquirir-lhe um quadro todos os meses. Neste sentido, Malangatana desloca-se para a garagem de Pancho Guedes, junto do seu ateliê, dedicando-se inteiramente à pintura.[3] Estávamos em 1960 e Malangatana já frequentava o Núcleo de Arte[4] desde 1958.

A primeira exposição individual de Malangatana, em abril de 1961, organizada no Salão dos Organismos Económicos, em Lourenço Marques, reúne 36 obras listadas em catálogo (embora o próprio Malangatana escreva que expôs «cinquenta e sete quadros a óleo»).[5] Não obstante, interessa realçar que com esta exposição o artista vende uma série de quadros que lhe dão visibilidade como pintor.

No pequeno catálogo da exposição, Pancho Guedes, que assina o texto, destaca no universo pictórico de Malangatana a presença de monstros e figuras com um pendor mais surrealista: «A sua visão tem estranhos paralelos com a tradição europeia. Certos quadros aproximam-se dos primitivos catalães, outros das aparições macabras dos visionários holandeses e ainda outros são de um surrealismo involuntário, directo e mágico».[6]

Depois desta fase, Malangatana continua a pintar, mas dedicando-se igualmente ao desenho, regressando aos seus pesadelos, delírios e sonhos. A sua obra aproxima-se de mitos, de histórias e de objetos imaginários. Cena de Feitiço com Casal Guedes, de 1961, é uma das primeiras pinturas que destaca o conhecido estilo de Malangatana: «um dos primeiros quadros que fez repleto de gente e bichos».[7]

Em 1961, o antropólogo alemão Ulli Beier, diretor da revista Black Orpheus (revista de arte e literatura publicada na Nigéria), mostra a pintura de Malangatana, através de fotografias, no Mbari Club de Ibadan, na Nigéria, um importante centro de atividade cultural e artística. Em junho de 1962, no mesmo local, realiza aquela que é considerada a primeira exposição individual do artista fora de Lourenço Marques. No convite da exposição, Beier destaca a «análise brilhante» do arquiteto Julian Beinart sobre as obras de Malangatana, non.º 10 da Black Orpheus, de 1962, onde foram publicados os seus primeiros poemas.[8] Beier realça, assim, a força da sua pintura: «Malangatana vem de um mundo no qual a feitiçaria é uma realidade e as práticas mágicas devem ser levadas a sério no dia-a-dia. O trabalho de Malangatana é selvagem e poderoso […] contém também um forte elemento de simpatia humana e sofrimento e agonia. […] Malangatana está desejoso de comunicar através das suas pinturas. Está cheio de histórias.»

 

Malangatana, «Última Ceia», 1961. Arquivos Gulbenkian
Malangatana, «Última Ceia», [1964]. Óleo sobre platex. Coleção Moderna

 

Malangatana participa ainda na exposição Imagination 61, na Cidade do Cabo (patrocinada pelo Núcleo de Arte), onde é exposta a primeira obra de duas que realiza em torno da Última Ceia, datada de 1961. Trata-se, em parte, de uma natureza-morta que através da força dos longos e expressivos olhos das personagens revela também o conhecimento religioso do artista. As cores lisas, a predominância do azul e do branco, vão sofrer alterações na Última Ceia[9] de 1964, e adquirida pela Fundação Gulbenkian em 1965. Aqui, a multiplicidade de cores nos rostos, as linhas pretas e as diferentes tonalidades nos objetos sobressaem em contraste com as cores lisas da pintura de 1961, na qual a composição central das figuras, agora já praticamente todas a olhar para nós, revela uma pintura mais estática.

Em 1964, ano em que a guerra de libertação se inicia no Norte de Moçambique, Malangatana é acusado de colaborar com a FRELIMO e é preso pela polícia política portuguesa. Durante dezoito meses conhece a dureza do regime colonial. As suas obras vão refletir a monstruosidade da PIDE, como acontece com o quadro Monstros grandes devorando monstros pequenos, mas também com uma série de desenhos a tinta da China.

Antes de ser exposta e conhecida em Portugal, a sua obra já tinha sido divulgada em diversos  países africanos e em Inglaterra, nomeadamente em Londres, onde foi apresentada na importante exposição Contemporary African Art, no Camden Arts Centre, em 1969 e noticiada como a maior exposição de arte africana realizada no país.

Malangatana é um grande conhecedor de rituais e mitos africanos e conhecedor da cultura ocidental. Viaja para fora de Moçambique pela primeira vez quando recebe a bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Chega a Lisboa a 17 de janeiro de 1971 para estudar gravura na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses; começa por frequentar o curso de litografia com o gravador Humberto Marçal e, de seguida, assiste a  aulas de gravura em metal com o mestre João Hogan.[10]

 

Malangatana, «Quando foi das cheias», sem data. Óleo sobre tela. Coleção Moderna
Malangatana, «Porque a alma vive eternamente», 1970. Óleo sobre tela. Coleção Moderna

 

Malangatana só realiza a sua primeira exposição individual em Portugal em março de 1972, em Lisboa, na Galeria Buchholz e na Sociedade Nacional de Belas Artes. Na SNBA, são expostas duas das pinturas que hoje fazem parte do acervo da Coleção Moderna: Porque a alma vive eternamente e Quando foi das cheias. Ambas refletem uma diversidade de tons e figuras em multidão, exprimindo uma ideia de coletivo, assemelhando-se os rostos a esculturas na madeira. Através dos gestos coloridos, entre traços finos e grossos, manchas intensas, os corpos desmesurados sobressaem na pintura. Neste sentido, destaca-se a influência dos muralistas mexicanos, como Orozco Rivera, de que era conhecedor. Como disse o próprio Malangatana em relação às suas obras: «O horror abre as portas ao fantástico».[11]


[1] Depoimento de Malangatana na revista NOVA, n.º 11, 2 de janeiro de 1970, pp. 22-29. Arquivos Gulbenkian.

[2] Carta de recomendação dirigida ao diretor do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian a 19 de março de 1969. Arquivos Gulbenkian.

[3] Amâncio d’Alpoim Guedes, «Lembrança do pintor Malangatana Valente Ngwenya quando ainda jovem», in Malangatana. Lisboa: Caminho, 1998, p. 11.

[4] Inaugurado em 1936, o Núcleo de Arte era uma associação constituída por intelectuais que também organizava exposições e reunia artistas como João Ayres, figura inspiradora em Moçambique, mas também Garizo do Carmo, José Júlio ou o próprio Pancho Guedes.

[5] Malangatana, «Pancho Guedes visto por Malangantana», in As Áfricas de Pancho Guedes: Colecção de Dori e Amâncio Guedes. Lisboa: Câmara Municipal, Sextante Ed., 2010, p. 58.

[6] A. D’Alpoim Guedes, «O Pintor Completo», in Malangatana Goenha Valente. Núcleo de Arte, 1961. Arquivos Gulbenkian.

[7] Amâncio d’Alpoim Guedes, «Lembrança do pintor Malangatana Valente Ngwenya quando ainda jovem», in Malangatana. Lisboa: Caminho, 1998, p. 14.

[8] https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2011/04/beier-e-mo%C3%A7ambique-1962.html (consultado a 18 de maio de 2020).

[9] Atualmente emprestada ao Art Institute of Chicago para a exposição Malangatana: Mozambique Modern, a primeira exposição de um pintor moderno africano realizada nesta instituição.

[10] Carta de Malangatana de 28 de junho de 1971 dirigida à Fundação, a solicitar mais dois meses de bolsa e um subsídio de seis meses para estudar na Slade School of Art, em Londres, com o gravador Bartolomeu Cid dos Santos. Os pedidos não são aprovados, conforme Apontamento com despacho de 20 de julho de 1971. Arquivos Gulbenkian.

[11] Entrevista a Malangatana, Lisboa: Galeria Buchholz, 1972, s/p.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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