Começar

O painel de Almada Negreiros

Encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian para a entrada do Edifício Sede, o tema do painel ficou ao critério de Almada Negreiros e a sua escolha foi gravar na pedra calcária uma súmula dos estudos sobre o número e a geometria a que se dedicara intensamente e de forma autodidata desde o início da década de 1940.

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A complexidade geométrica desta obra pode ser compreendida percorrendo a sua construção passo a passo, com o auxílio da demarcação por cores sugerida por Almada. O painel foi aqui dividido em cinco partes, de acordo com os elementos visuais identificáveis na obra: Estrelas pentagonais, Figura superflua exerrore, Grande estrela central, Divisões da circunferência e O ponto de Bauhütte.

 


Almada e a geometria

Nascido em São Tomé e Príncipe em 1893, filho de pai português e de mãe luso-angolana, José Sobral de Almada Negreiros cresceu e foi educado em Lisboa com o irmão António no colégio dos Jesuítas de Campolide. A mãe morre em 1896 e o pai vai viver para França. Em 1913 organiza a primeira exposição individual. Integra o conjunto de autores da revista Orpheu, fundada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro em 1915. Reclama-se futurista e escreve quatro manifestos artísticos de vanguarda, ganhando fama de fazer escândalo em locais públicos, sozinho ou com Santa Rita Pintor. Esses anos são férteis em colaborações, refletindo o furor vanguardista dos anos 1910 e depois a libertação de costumes e a vida boémia dos anos 1920.

Em 1919 vai para Paris, onde vive um ano. Aí prolonga a haste do “d” na sua, desde então, muito característica assinatura. Na década de 1920, estreita relações com artistas e intelectuais espanhóis e parte para Madrid em 1927, onde se estabelece na cena artística madrilena, com uma exposição individual e a participação em exposições coletivas, e colaborando com músicos, escritores e arquitetos.

Regressa a Portugal em 1932 onde assiste à afirmação da política cultural do Estado Novo, que implementa uma nova forma de trabalho para os artistas. As várias encomendas públicas e privadas levam-no à execução de vitrais, azulejos, pintura a fresco, entre outros trabalhos, sobretudo em colaboração com o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro. Paralelamente, mantêm uma produção de desenho e pintura, trabalhos gráficos, textos literários, poemas, peças de teatro e conferências.

Em 1934 casa com a pintora Sarah Affonso, com quem terá dois filhos. Funda a revista Sudoeste (1935) e, em 1936, integra a Exposição de Artistas Modernos Independentes em Lisboa, onde também participa a sua mulher. Em 1942, recebe o Prémio Columbano (atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional) e, em 1957, é premiado extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian.

A sua última encomenda é o painel Começar para o Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian (1968). Morre em Lisboa, a 15 de junho de 1970, no Hospital de São Luís dos Franceses.

Segundo relata Almada Negreiros nas décadas de 1950 e 60, é em 1916 que se dá uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), na companhia de Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, onde o próprio terá ficado fascinado com a obra Ecce Homo, à altura atribuída a Nuno Gonçalves. Dez anos mais tarde, em 1926, apresenta uma nova proposta de disposição para os Painéis de São Vicente de Fora (MNAA) daquele pintor régio, ativo no século XV. Embora tenha gerado polémica à época, a distribuição que Almada propôs, a partir da observação da perspetiva dos ladrilhos comuns aos seis painéis, mantém-se ainda hoje inalterada.

Ainda que esta descoberta esteja ligada ao reconhecimento da importância da geometria na pintura (em função da perspetiva linear), só na década de 1940 podemos notar como a geometria veio a fascinar Almada de uma forma profunda e envolvente. A sua obra plástica foi alvo de uma progressiva tendência geometrizante, o que se pode verificar nos frescos das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos (da década de 40), em obras como o autorretrato Auto-Reminiscência de Paris (1949), os retratos de Fernando Pessoa (1954 e 1964), ou a tapeçaria Número (1958).

Em 1957, Almada recebe um prémio extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, por quatro pinturas a preto e branco (pertencentes ao Museu Calouste Gulbenkian – Coleção Moderna), aí apresentadas. Estas, já inteiramente integradas no abstracionismo geométrico, marcam de forma clara (enfatizada pelos títulos atribuídos a cada uma) a importância que o autor dava à geometria, já como tema, além de ferramenta composicional, na sua obra.

Por escolha do autor, o painel Começar veio a ter um conteúdo completamente geométrico que inclui, de forma antológica, várias construções geométricas e várias referências culturais presentes no seu trabalho, ao longo de décadas.


Glossário

ɸ

ɸ (Fi) é a letra do alfabeto grego que se refere à razão de ouro. Um retângulo ɸ (ou retângulo de ouro) tem aproximadamente 1,618 de medida de comprimento para 1 de medida de largura.

Ângulo de ouro

O ângulo de ouro corresponde à divisão dos 360 graus da circunferência na razão de ouro, produzindo dois ângulos: um de 137,5 graus e outro de 222,5 graus, respetivamente.

Bauhütte

Expressão alemã que dá nome a um grémio medieval de construtores de catedrais. Almada tinha uma edição de Le nombre d’or de Matila Ghyka, onde terá lido a quadra de que partiu para a sua pesquisa geométrica sobre o ponto de Bauhütte.

Dinheiro de D. Afonso Henriques

Até meados do século XIV, chamava-se também dinheiro às moedas cunhadas (adaptação da de denário, moeda romana da época que ainda circulava).

Ecce Homo

Expressão latina para “Eis o Homem”, tema da iconografia cristã, dá título à obra do Museu Nacional de Arte Antiga, de cerca de 1570 e de autor desconhecido, que fascinou Almada Negreiros.

Émile-Auguste Chartier

Émile-Auguste Chartier (1868-1951), ou Alain, foi um filósofo francês, jornalista e pacifista, professor de Simone Weil, Raymon Aron e de Simone de Beauvoir, entre outros.

Figura superflua exerrore

Título de um desenho realizado por Leonardo da Vinci para De divina proportione, de Luca Pacioli. Almada Negreiros tinha uma edição desta obra de 1946 (Editorial Losada).

Harpedonapta

Expressão do antigo Egipto, que servia para designar os esticadores de cordas, especializados no desenho de linhas de alicerce para a arquitetura. Faziam-no usando precisamente cordas, com nós.

Labris

Machado de dupla face, ou de dupla lâmina: originário de Creta, trata-se de um machado que proliferou na cultura grega, investindo-se de conotações simbólicas ao longo dos tempos.

Marcahuasi

Planalto com mais de 4 mil metros de altitude, nas montanhas dos Andes, conhecido pelas formações rochosas antropomórficas. Almada associa a sua grelha de quadrados às culturas antigas desta região.

Número de ouro

O número de ouro é (1+√5)/2, cujo valor é aproximadamente 1,618.

Partes de uma circunferência

A expressão “partes de uma circunferência” refere-se à medida resultante da divisão de uma circunferência em partes iguais (um pentágono regular, por exemplo, divide a circunferência em cinco partes iguais).

Pentagrama

Um pentagrama é uma estrela poligonal com cinco pontas.

Proporções

A proporção de um retângulo é a relação (razão, ou quociente) entre as medidas de comprimento e largura.

Razão de ouro

Duas linhas estão na razão de ouro se a proporção entre os seus comprimentos for o número de ouro, φ (aproximadamente 1,618).

Teorema de Gauss-Wantzel

Teorema matemático que determina quais os polígonos regulares que podem ser construídos com régua não graduada e compasso de forma exata.

Tesouro dos atenienses

O tesouro é um monumento dórico, em mármore, dedicado a Apolo, em Delfos. Almada associa a sua grelha de quadrados à geometria que preside ao alçado desta construção clássica.


Bibliografia

José de Almada Negreiros: Ver, ed. Arcádia, 1982.
João Furtado Coelho: “Os Princípios de Começar”, Colóquio – Artes (n.º 100), 1994.
Luca Pacioli: De divina proportione, Editorial Losada, 1946.
Matila Ghyka: Le Nombre d'or, Librairie Gallimard, 1931.
Pedro J. Freitas e Simão Palmeirim: Livro de problemas de Almada Negreiros, SPM, 2016.

 

 

 

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