Antestreia do filme «Entre Cão e Lobo», de Luís Calado 

Apresentação dos dois novos volumes da série «A Gulbenkian e o Cinema Português»

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O cinema português estará em foco na Fundação com a antestreia do filme de Luís Calado Entre Cão e Lobo e o lançamento do terceiro e quarto catálogos de A Gulbenkian e o Cinema Português, um ciclo realizado na Fundação Gulbenkian entre 2017 e 2019.

Filme de ficção apoiado em 2016 pela Fundação Gulbenkian, Entre Cão e Lobo retrata os baldios, ruínas e lugares abandonados para onde fogem aqueles que não pertencem a este mundo, contando com a interpretação de André Mendonça, Inês Meira, Sara Pestana, Andrés León, Manuel Ferreiro, Catarina Villeblanche e Conceição David, entre outros.

Além do realizador, a sessão contará com a presença do diretor do Programa Gulbenkian Cultura (PGC), Miguel Magalhães, do coordenador para as Artes Performativas e Cinema do PGC, António Caldeira Pires, e do curador da última edição do ciclo A Gulbenkian e o Cinema Português, António Rodrigues.

Os catálogos agora publicados correspondem à terceira e quarta edições do ciclo A Gulbenkian e o Cinema Português, incluindo textos e conversas envolvendo programadores, realizadores e convidados como Ana David, Ana Hatherly, André Santos, André Valentim de Almeida, António Palolo, António-Pedro Vasconcelos, Aya Koretzky, Catarina Vasconcelos, Guilherme Gomes, Joana Ascensão, Joaquim Pinto, Jorge Jácome, Jorge Silva Melo, Jorge Cramez, Marco Leão, Luís Alves de Matos, Luís Miguel Cintra, Luís Miguel Correia, Luís Noronha da Costa, Margarida Rêgo, Nuno Faria, Nuno Leonel, Pedro Cabeleira e Rui Vieira Nery.


FICHA TÉCNICA

Título Entre Cão e Lobo (2021)
Duração 140 minutos
Argumento, Produção, Realização e Montagem Luís Calado (João Eça)
Imagem Adriana Carvalho, Afonso Mota, Leonor Teles, Manuel Pinho Braga e Pedro Henrique
Correção de Cor Afonso Gaudêncio, Ana Isabel Mariz e Pedro Henrique
Captação de Som Francisco Costa, Rafael Cardoso e Tomé Costa
Montagem e Mistura de Som Alexandre Franco
Elenco André Mendonça; Inês Meira; Sara Pestana; Andrés Alrevés; Manuel Ferreiro; Catarina Villeblanche; Conceição David; Catarina Mendonça; Susana Oliveira; Mariana Matos; João Robalo; Margarida Pagarete; Pedro Oliveira; Eduardo Faustino; João Faustino; Cris Ferreira; Zé Mocas; Tomás Fidalgo; Pedro Ferreira; Vortex

Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian/Programa de Língua e Cultura Portuguesas (Apoio a Novos Criadores em Cinema, Dança e Teatro, 2016).


TEXTO DO REALIZADOR

Fomos habituadxs a que os filmes fossem objectos definitivos e (con)sagrados pela aura daquelxs que os fazem. É difícil pensar num filme como um movimento, ou um processo, como um estudo rumo a uma impossibilidade – que é a da própria vida em tudo o que ela nos escapa.

Entre Cão e Lobo é um filme que me é tão indeciso como as indecisões do seu protagonista, indecisões entre a noite e o dia, entre o caos e a estabilidade ou entre duas paixões. É o lusco-fusco do amanhecer e do pôr-do-sol: entre chien et lou. É a hora daquelxs que fogem de si próprixs e que não têm para onde ir.

Parece-me já estranho e distante esse tempo em que vivi nos subúrbios de Lisboa e em que a minha convivência nocturna era passada nos becos e nas arcadas, em parques de estacionamento vazios, em descampados ou em casas abandonadas. Sempre com uma ganza a girar e uma litrosa ou uma garrafa de vinho entre as mãos. Conversas jorravam sem fim seguidas de longas caminhadas para casa em que alucinava brevemente com a luz amarelada dos candeeiros e o silêncio escuro tão próprio dos dormitórios de classe média que rodeiam a capital. Deste movimento perdido e deslocado entre lugares só habitados pelo meu desejo e pela minha solidão, ou pelos encontros ritualizados com o grupo de amigxs (e não é sempre a matilha o primeiro lugar onde partilhamos a solidão e a incomunicabilidade, muito antes de descobrirmos o primeiro amor?), nasceu a minha vontade de realizar este filme.

Esses lugares, silêncios e rituais têm agora o peso de todas as memórias que deixamos de reencenar com o tempo. Parecem outra vida que não a minha e chegam mesmo a carregar o peso de uma dissociação. Vim viver para Lisboa para fugir desse vazio. A cidade tem mais barulho e o barulho é reconfortante.

Sempre que revejo este filme descubro-me imerso nos movimentos das suas personagens. Movimentos imprevisíveis e erráticos, apesar de toda a ritualização, como uma auto-estrada vista de cima e não da perspectiva de umx condutorx. Há algo que se vai erodindo e desaparecendo à medida que o filme progride, até a impossibilidade do desejo tornar esse mesmo desejo em pura alucinação. Nada fica igual a si mesmo; a repetição traz consigo algo de diferente e a matilha pode vir mesmo a dissolver-se. Afinal, a vida é tudo menos uma garantia e a transformação é feita de incalculáveis somas de perdas e de ganhos.

Este desejo de que falo é por vezes animalesco. Não é possível falar dele de forma lógica, mas apenas como uma queda ou um desespero. E se as personagens falam muito, tentando dar sentido às suas vidas através do diálogo e da luta pelo entendimento, ainda assim os diálogos vão desaparecendo a pouco a pouco, sendo absorvidos pelo som dos rios e do mar, do vento e das árvores. Às vezes, quanto mais falamos menos sabemos e o melhor é mesmo aprender a escutar. O subúrbio é também um lugar onde a natureza possui ainda uma energia telúrica e selvagem, como se estivesse situado a meio-caminho entre a cidade e o campo. Na cidade, como nem sabemos, todo o espaço dito “natural” se encontra já pacificado e aculturado. Talvez por isso o desejo não se processe da mesma forma num lugar e noutro.

Se fizesse este filme agora (outra impossibilidade, porque já nada disto é a minha vida) não o filmaria apenas do ponto de vista de uma personagem masculina. O cinema habituou-nos também a este excesso de homens cheios de profundidade, desespero e melancolia, enquanto as personagens femininas gravitam em volta para darem ou retirarem sentido à sua existência. Sinto que este filme repete códigos hegemónicos que não deveriam ser repetidos, mas de que ainda não estava consciente com vinte anos de idade, quando comecei a trabalhar nele. Também isto é em parte dissociativo, porque sinto cada vez mais a responsabilidade (aqui porventura falhada) de não repetir a dominação do mundo dos homens (que no subúrbio é também ela diferente: mais territorial, mais ostensiva, mais cerrada).

O meu movimento de fuga do subúrbio e da sua clausura, bem como do seu desespero, das suas paixões e da sua violência latente, é, portanto, um movimento de fuga de mim próprio, das coisas em que acreditava e em que já não acredito, das coisas que vivi e de que já não me lembro, das coisas que amava e que passei a odiar. Pensei muitas vezes se o devia mostrar ou não publicamente, se ele ainda me dizia algo e se poderia sequer dizer algo a alguém. É possível que os filmes nem sequer tenham de ser feitos ou vistos: talvez possam ser apenas alucinados. Gostava que este visionamento fosse isso mesmo: uma alucinação colectiva em que podemos duvidar de nós mesmxs momentaneamente, porque só quando duvidamos podemos ter a certeza de nos tornar outrxs.

Pergunto-me, ainda assim, certamente duvidando de mim mesmo, o que é queria tanto capturar com o tripé que tinha comprado a meias com o Afonso, a minha mini DV e alguns LEDs que mal sabia utilizar para poder iluminar as cenas nocturnas. Filmei quase sessenta horas de brutos, muitos dos dias só eu e o Avô. Gravámos som em apenas sete dias de rodagem, o que ajuda a explicar o processo árduo que eu e o Alexandre enfrentámos na pós-produção. Os filmes são uma batalha contra o tempo, como o marmeleiro de Erice ou a montanha de Cézanne. Apressar um filme é ter demasiadas certezas e talvez por isso tenha demorado seis anos a terminá-lo (diga-se de passagem: continuo a não ter certeza nenhuma).

A duração intensiva dos planos, a sujidade da imagem ou o trabalho sobre o improviso dos actorxs-não-actorxs parecem-me indicar ao menos isso: que há sempre qualquer coisa que os filmes não conseguem capturar, porque é o próprio desejo no seu movimento vital que nunca se preenche nem se detém em lado algum (não há caminho fixo, tal como não há ponto de partida nem de chegada). Esquecemo-nos para podermos viver, e mesmo as amizades e os maiores amores irão desaparecer um dia. Um amigo meu disse que este filme era como uma moca e isso foi a coisa mais bonita que podiam ter dito sobre ele.

Obrigado a todxs xs que participaram, e confiaram, sem saberem a que lugar chegaria este filme. Um filme que termina com um levantar.

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