Manuel Cargaleiro
“A personalidade de Cargaleiro cresceu num confessado ensimesmamento e solidão melancólica que o fizeram menino tímido e curioso. Mas foi essa curiosidade tornada insaciável que lhe deu o intenso desejo de conquista de espaço e afirmação de autoria que caracterizam o seu trabalho”.
Manuel Cargaleiro – como ele desenha o mundo
Manuel Cargaleiro manifesta na sua obra uma constante atenção ao mundo que o rodeia e, é através dessa sua curiosidade pela natureza, suas formas e materiais, seus modelos e possibilidades técnicas da sua representação que podemos perceber o essencial da sua obra.
A Natureza que invade a obra de Cargaleiro pode ser sintetizada numa folha ou numa pétala; e pode tornar-se a pétala em flor ou em jardim de flores e transformar-se a folha em árvore para crescer até ser floresta ou cidade que sugere ser jardim ou ser de novo floresta – tudo o resto surge na sua obra rodeando esta regra central de desenvolvimento.
É uma viagem fascinante percorrer com ele o tempo que vai dos anos de 1950 do século passado até à década de vinte deste século – setenta anos de inesgotável vontade criativa, intensa e sempre rica nas suas propostas e abertura a novos caminhos – e leva-nos a procurar revelar a especificidade poética (a forma e o conteúdo) da sua obra no contexto histórico em que se insere.
As várias dimensões dos seus trabalhos cerâmicos, notoriamente a azulejaria, estabelecem pontes de interpretação para todas as outras dimensões da sua obra (os desenhos e as pinturas) e é apreciando o conjunto a sua obra que podemos entender melhor a génese formal da sua iconografia, os diálogos que estabelece com a tradição dos saberes artesanais e com história da arte do seu tempo.
A ligação íntima que estabelece com a natureza transmite-a Cargaleiro em verdadeiras lições de captação da riqueza da luz, através da cor ou de integração dos ritmos e dinâmicas dos elementos naturais, através da disposição dos elementos visuais e das regras da composição; lições ainda de comunicação estética, através da sua capacidade para colocar o seu entendimento pessoal do mundo em diálogo imediato com os públicos, oferecendo-lhe imagens que são permanentes campos de energia positiva, de expansão e de alegria.
Instalado definitivamente em Paris desde a década de 1950, onde se relacionou com a arte e os artistas modernos das sucessivas gerações vindas dos anos de 1910 aos anos de 1960 e com os novos que se lançavam na aventura da arte contemporânea, Cargaleiro integrou o mercado local sem se ligar a qualquer linguagem em circulação mas elaborando sínteses pessoais (da abstracção lírica ao letrismo). E manteve sempre profundas ligações a Portugal, através de encomendas públicas e privadas, de exposições de pintura e cerâmica, da produção de obras cerâmicas em fábricas portuguesas, da aquisição de obras nacionais para enriquecer as suas colecções.
Mas, principalmente, Manuel Cargaleiro nunca esqueceu os anos de infância e juventude em que se fez a formação do seu olhar e sensibilidade, aprendizagem artística e técnica. Nascido em paisagem rural (Vila Velha de Ródão) onde regressava regularmente e crescido em meio rural (mas à beira da grande cidade: entre a Charneca da Caparica, numa Margem Sul em crescimento urbano acelerado, e Lisboa) Cargaleiro integrou, cedo, e intensamente, as realidades cruzadas dessas experiências sensoriais e poéticas explorando os elementos da natureza que o rodeava mas também as matérias plásticas, como o barro, com que criou as primeiras formas tridimensionais.
A riqueza da luz e das cores, a velocidade elegante dos ritmos de composição são dados numa tensão e diálogo permanentes entre a irrupção livre do vegetal e a disciplina do gesto geométrico, entre a sugestão figurativa e a sublimação abstracta, entre a mancha solta e a sua organização em padrões. A presença dominante da grelha azulejar (ou do azulejo isolado que cita a tradição do azulejo de “figura avulsa”) estrutura um vastíssimo número de desenhos e pinturas dando-lhes estabilidade formal e um destino de aplicação decorativa. Mas a tensão que referimos não é resolvida a favor de qualquer das soluções. Cargaleiro mantém o fluxo dos seus desenhos e pinturas numa fronteira aberta a várias soluções simultâneas sendo tal opção garantia da liberdade que artista deseja manter para si mesmo no fazer e que também, generosamente, quer oferecer ao olhar crítico do espectador.
A personalidade de Cargaleiro cresceu num confessado ensimesmamento e solidão melancólica que o fizeram menino tímido e curioso. Mas foi essa curiosidade tornada insaciável que lhe deu o intenso desejo de conquista de espaço e afirmação de autoria que caracterizam o seu trabalho. É esta última vertente, a de exteriorização solar e exuberante, a de uma alegria imediata e afabilidade constantes, que predomina na imagem que de si mesmo o artista oferece ao mundo e que o mundo retém da sua obra dividida por muitas linguagens e espalhada por muitos lugares. Mas não podemos deixar de perceber nessa alegria, na multiplicação de suportes, dos media, das direcções de trabalho, na produção constante de novas imagens e novos temas mas também no regresso fiel a tantos outros temas e imagens, a revelação de uma insatisfação permanente e, por isso, de uma angústia existencial, de uma luta essencial contra a solidão: a invenção das flores e das suas cores, a elegância das linhas e dos seus ritmos, a vertigem das perspectivas ou o brilho dos vidrados são instrumentos de conquista da sua e (da nossa) felicidade.
Texto de João Pinharanda
Paris, 13 de Novembro de 2020
NOTAS:
1. O autor não escreve segundo o AO de 1990
2. Texto adaptado de um texto publicado no número de Natal do Jornal do Fundão, Dezembro 2020
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.