“Hoje em dia, as ciências têm de estar aliadas às humanidades”
José Maria Covas Lima está a estudar fora de Portugal há vários anos – completou a licenciatura em Ciências Biomédicas na Universidade de Coventry, em Inglaterra, e termina agora o mestrado na Universidade de Edimburgo –, mas não exclui a possibilidade de regressar ao país-natal para continuar os estudos e a sua investigação na área da medicina celular.
Nesta entrevista, fala-nos da sua experiência de luta contra o cancro, dos seus planos para o futuro, da inspiração em Calouste Gulbenkian e da sua visão eclética do que deve ser um cientista na atualidade.
És licenciado em Ciências Biomédicas e estás a terminar o mestrado em Medicina Regenerativa e Reparação de Tecidos. O que te levou a escolher este percurso?
Essencialmente, foi a minha experiência de vida. Aos quatro anos fui diagnosticado com uma leucemia linfoblástica aguda de alto risco. Vi as dificuldades que tive relativamente aos tratamentos e aos métodos de diagnóstico em Portugal, na época, e daí nasceu o meu desejo de ajudar a comunidade de saúde atual, com o meu percurso de carreira, de forma a melhorar um bocado a qualidade de vida desta nova geração de crianças com cancro e outro tipo de doenças.
Depois de ter completado os quatro anos da licenciatura, queria continuar na área académica e fazer alguma coisa relacionada com a medicina regenerativa, tentar perceber como podemos ser melhores a nível celular e biológico, e achei que a Universidade de Edimburgo tinha um programa ideal para isso.
Porque é que escolheste o Reino Unido? O que ficaste a ganhar por teres estudado fora?
O Reino Unido sempre me fascinou devido ao desenvolvimento que tiveram por lá em termos históricos, desde a Revolução Industrial e a nível de engenharia e de tecnologia. Muitos dos equipamentos médicos e do conhecimento que temos hoje foram descobertos lá – como a penicilina ou o ecógrafo. Achei que poderia adquirir outras ferramentas para eventualmente melhorar o panorama geral cá em Portugal. Até porque venho de uma família de médicos, que já deram a sua contribuição para o desenvolvimento da medicina em Portugal. A abordagem que procuro é mais de investigação, para dar mais ferramentas aos médicos para poderem trabalhar. Acho que o ensino lá é muito mais autodidata, fomentam mais o aprender por si.
E planos para o futuro?
Agora estou a candidatar-me para doutoramentos, tanto em Portugal como no estrangeiro. Uma pessoa que está a desenvolver muito a investigação é o professor João Pedro Magalhães, que está a estudar, digamos, aquilo que nos torna diferente dos outros animais em termos de resistência a nível de doenças. Como é que há animais que conseguem passar a vida inteira sem ter doenças, ou outros que conseguem facilmente regenerar tecidos, como a salamandra, e até outros seres, como a anémona imortal no Japão, que chega a um determinado patamar de vida e consegue reverter o envelhecimento e voltar a ser jovem? E se nós somos, como se diz, os seres superiores na cadeia evolutiva, porque é que não temos isso? Como se conseguirá alcançar essas capacidades?
Uma espécie de superpoder. É isso que vais descobrir?
Sim, seria um dos meus objetivos futuros. Mas também gosto de vários aspetos a nível do saber, portanto, não só de Biologia, mas também de História, Religião, Filosofia. Sou uma pessoa muito espiritual: acho que em termos de ética tem de se ter muito cuidado no futuro com o que se faz na ciência. É preciso uma regulamentação a nível do direito e da ética; considero isso muito importante.
O que aprendeste com a experiência enquanto paciente de cancro? Que contributo gostarias de ter nesse campo?
Para mim o cancro foi uma guerra, que felizmente venci; mas nem todas as pessoas têm essa sorte. Hoje em dia, com a investigação médica que se faz, por exemplo, em sítios como o Instituto do Cancro da Universidade de Cambridge, onde fiz investigação durante um ano, percebe-se cada vez mais que este tipo de doenças é como se fosse uma floresta heterogénea. Cada pessoa tem um determinado tipo de alteração no mesmo tipo de cancro, portanto os tratamentos do futuro têm de ser personalizados de acordo com cada doente.
E, às vezes, não é só uma questão de sobreviver ao cancro, também é uma questão de saber com que danos é que a pessoa fica e como é que consegue aliviá-los. Há muito interesse atualmente – e é nisso que me estou a focar mais – no pós-tratamento.
Onde te vês daqui a dez anos?
Gostaria de ter o meu próprio grupo de investigação, quando estivesse mais baseado “lá fora”, que tentasse aliar esta parte laboratorial com a parte informática para a personalização da medicina. Fazer uma rede de comunicação a nível internacional para esse efeito e promover o melhoramento de saúde não só em países mais desenvolvidos, mas também naqueles com mais dificuldades nessa área. Talvez colaborar mesmo com o Instituto Gulbenkian de Ciência e retribuir à Fundação o que me foi possibilitado. Não só a nível científico, mas também artístico. Uma das grandes coisas que a Bolsa Gulbenkian me permitiu explorar foi este meu outro lado de Humanidades, da escrita.
O que costumas escrever?
Ficção científica e especulativa. Uso muito a crítica social, a sátira a comédia e um pouco também de misticismo, de pensamento filosófico. Publiquei em 2021 o meu primeiro conto enquanto autor, numa antologia chamada Sangue Novo, que foi recentemente apresentada no Festival Internacional de Cinema Fantástico do Porto.
Como chegaste à Bolsa Gulbenkian?
Depois do Brexit houve muito corte de apoios a estudantes com estatuto de residência temporário. Então lembrei-me – porque já conhecia as bolsas Gulbenkian, do tempo dos meus pais, e a importância que faziam tanto nas artes como nas ciências – que a Fundação Gulbenkian seria o melhor sítio onde recorrer. E agradeço muito esta oportunidade que me deram, porque abriu-me portas que de outra maneira não seria possível: explorar mundos e fazer descobertas…
O que é que destacarias sobre as vantagens que esta bolsa trouxe para ti?
Não só a ajuda monetária em si, mas também todo o apoio que é dado a nível da rede bolseiros, de poder conhecer pessoas de várias áreas, que é muito importante nas ciências. Por exemplo, para fazer investigação a nível biológico, sobre o que acontece dentro do ser humano, é preciso replicá-lo com modelos animais e artificiais em laboratório. Para isso é preciso engenheiros, matemáticos. É preciso pessoas de Ética e do Direito para tentar perceber se o que estamos a fazer está a ser regulamentado. É preciso pessoas da comunicação social para estar em colaboração com o Governo, com outras instituições privadas, com as universidades ou com a população. E foi isso tudo que a Gulbenkian me ofereceu de braços abertos.
É importante para ti esta ligação à Fundação?
Sim! Na infância passei muito tempo aqui na Gulbenkian, a passear no Jardim, a ir às exposições. A história de Calouste Gulbenkian é uma das minhas grandes inspirações; uma pessoa que parecia que estava sempre lá e que me dizia “tens de aprender sempre um bocadinho de tudo para conseguir fazer todas as coisas que queres fazer”. Acredito mesmo que, atualmente, as ciências têm de estar aliadas às humanidades, e é uma coisa que tentam sempre promover aqui. Quem sabe se no futuro aparecerá um próximo Nobel da Medicina devido à Fundação Gulbenkian.
Quem sabe se não serás tu!
[risos] Esperançosamente.