“Estamos presos mas não estamos parados”
Nunca se sabe bem quantos aparecem nos ensaios, onde ainda se regressa amiúde a trechos da ópera Così Fan Tutte, de Mozart, trabalhada no âmbito da Ópera na Prisão. Naquela quarta-feira de fim de novembro, apareceram 16 reclusos. Ivo, de castigo, chegou tarde e teve de acompanhar o ensaio a um canto da sala. Mas não quis faltar. Afinal, quer estar no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, no fim deste mês de janeiro, para apresentar a peça de teatro Estamos todos no mesmo barco, na qual esteve envolvido nos últimos meses.
Quando Ivo chegou, os restantes rapazes já tinham passado pelo cerimonial inicial. Sentados em círculo à volta de um piano, cantaram como é “bom estar aqui/para dizer bom dia ao outro/Vamos cantar e aprender/Também vamos escutar (…)” Os versos, quase infantis, tornam o ambiente mais calmo e cria-se de imediato um espírito de grupo. Mesmo que estejam obrigados a viver juntos, cada um se apresenta, ao som do piano. Depois, como em qualquer coro, são feitos exercícios de relaxamento e uns quantos vocalizos. Depois passam à pauta de Mozart, sob as instruções da maestrina.
Este ensaio surge no âmbito do Pavilhão Mozart–Ópera na Prisão/Iniciativa Partis, através da qual a Fundação Calouste Gulbenkian apoia práticas artísticas (neste caso no Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens, EPL-J) para a inclusão social. O projeto Pavilhão Mozart–Ópera na Prisão teve duas edições (2014-2016 e 2017-2019) do qual se vão ensaiando trechos para não perder o trabalho feito e se ir mostrando o que foi alcançado. Mas em 2019 os projetos levados a cabo no pavilhão Mozart (o espaço “artístico” que tomou o lugar da antiga oficina de Encadernação do EPL-J) foram de outro género: fizeram-se residências artísticas nas áreas dos Audiovisuais, Teatro e Dança.
A arte, esse instrumento de inclusão
Mathieu Pinto, de 28 anos, já com a participação em duas óperas no currículo, inscreveu-se nas três novas residências porque “estar cá dentro não ajuda ninguém. É como estar parado num buraco”. E estes projetos, além do tempo que lhe ocupam e das ferramentas que lhe dá, ajudam noutras aspetos igualmente importantes, conta: “a direção convive mais com a gente. Vêm-nos como pessoas, sabem o nosso nome, valorizam-nos. Não somos só o que dizem no papel”, leia-se no registo criminal.
Rapper, a ópera foi o projeto de que mais gostou. “Nunca tinha visto ópera e fiquei fã.” Além disso, como é um trabalho de grupo, “ensinou-me a trabalhar com outras pessoas, a lidar com elas, ensinou-me a respirar, técnicas de voz, deu-me sentido de responsabilidade.” Acabou, é certo, mas os ensinamentos “e as memórias ficam.”
A aposta na inclusão social a partir de práticas artísticas foi “algo de novo” que entrou no EPL-J. “A nível técnico foi importante. Veio abanar o sistema, sem se registarem consequências negativas. Mostrou que [tal] era possível.” Para Anabela Luís, que está há ano e meio em Leiria como técnica de reinserção, o acesso de outras equipas ao EPL-J e aos reclusos e a realização de espetáculos no EPL-J “criou outra sensibilidade, outra disposição numa instituição [por natureza] muito fechada.”
E, concordando com Mathieu Pinto, para Anabela Luís também é claro que, “ao nível institucional, estes jovens mostraram algo mais do que o motivo/comportamento que os trouxe ao EPL-J: mostram que também sabem escrever, pensar, refletir, representar, cantar, dançar. Não são só o número tal… são muito mais que isso.”
No Pavilhão Mozart continua o ensaio. Há quem siga a partitura com atenção e quem siga o parceiro do lado. A entreajuda é visível. A maestrina, essa, dirige-se a todos por igual: “lembram-se deste diminuendo?”
Jefferson Sá tem 19 e está a fazer a sua primeira aproximação ao mundo da ópera. Durante 2019, passou por duas das três residências artísticas que funcionaram no EPL-J. A sua preferida foi a dos audiovisuais, dirigido pelos Casota Collective, mas também gostou muito da experiência teatral que, a 24 de janeiro, o levará à Fundação Gulbenkian. Jefferson pode estar especialmente orgulhoso do seu papel na peça Estamos todos no mesmo barco, montada pela Leirena Teatro – Companhia de Teatro de Leiria, já que o RAP do Marinheiro, cantado durante a atuação, tem a sua assinatura. Com todos estes projetos artísticos levados ao EPL-J pela SAMP (Sociedade Artística Musical dos Pousos) e financiado pela Iniciativa PARTIS, da Fundação Gulbenkian, Jefferson, com o seu porte seguro, diz ter descoberto um “talento que tem de ser refinado” e aprendido a “ter paciência, a trabalhar para ver o resultado”. Quanto aos outros, há os “que têm vergonha, os que pensam que não têm jeito e desistem. No fim, olham para nós como artistas”. Ganhou, também, alguma “relação de confiança, de harmonia, de maturidade em relação aos guardas”. Sente-se mais enriquecido, sobretudo com a ideia de que “estamos presos mas não estamos parados.”
Uma aprendizagem para os dois lados
David Ramy substituiu Paulo Lameiras à frente do projeto. “O Paulo saiu em precária”, diz, divertido, com o seu sotaque latino-americano (David é cubano). Também David se sente mais rico com esta aprendizagem. Todos aprenderam. Até os guardas, conta, já tratam os reclusos “pelo nome e não pelo número” e eles “já dizem por favor”. Envolver todos – reclusos, guardas, técnicos de reinserção, familiares – foi importante. Afinal, “se não ajeitarmos o universo para onde voltam, não estamos aqui a fazer nada”.
Mas nada disto foi fácil. Por um lado, esta interação criou alguma resistência nalguns elementos da vigilância; por outro, aumentou a autoestima de alguns reclusos, que por vezes podem ter respondido de forma menos apropriada, conta Anabela Luís. Mas do ponto de vista técnico, insiste, foi importante. Os reclusos “passaram a ter mais autocontrolo, que é coisa que vão ter de ter lá fora.”
O intuito destas práticas artísticas é integrar, agregar, unir. Porque, exemplifica David Ramy, “se o desporto te põe sempre contra alguém, a arte põe-te ‘com’: danças com, tocas com… e isso faz muito por esta população, que está muito ‘contra alguém’.” Aliás, diz, “estes miúdos vivem da sua imagem dura, são corpos duros. Fechar os olhos, por exemplo, é-lhes difícil. Vê-los entregarem-se à dança, ao movimento livre, é… é alucinante ver os seus corpos transformarem-se.”
A dança não foi uma residência fácil. O videoclip (que fizeram, na residência dedicada ao audiovisual), pelo contrário, “é o universo deles, sabem que podem brilhar”. Ao teatro (a terceira residência), garante David, “já estão habituados”, embora haja monólogos que os obrigam a alguma exposição e isso “mexe com eles. Trabalham-se. É uma cura e é preciso é ter tempo para fazer o caminho todo até ao fim.”
A peça, a que chamaram “Estamos todos no mesmo barco”, poderá ser vista a 24 e 25 de janeiro, na Fundação Gulbenkian, no âmbito do Isto é Partis!
* Mathieu Pinto participará no espetáculo já em liberdade.