Entre os anos de 2006 e 2007, a Fundação Calouste Gulbenkian assinalou de diversos modos, e através da realização de inúmeras iniciativas, o seu 50.º aniversário. Criada no ano de 1956, a Fundação vem cumprindo a sua missão, ao longo dos anos, nas quatro frentes estatutárias instituídas pelo seu fundador: beneficência, ciência, educação e arte. Uma das iniciativas que tiveram lugar neste contexto comemorativo de larga abrangência foi o programa «O Estado do Mundo», coordenado por António Pinto Ribeiro. Concebido numa grande extensão programática, O Estado do Mundo, fórum cultural, assumiu-se, desde a primeira hora, como um projeto «transversal a várias sensibilidades». Com efeito, a iniciativa multiplicou-se em diversos eventos, como conferências, lançamento de publicações, espetáculos, workshops, um ciclo de cinema, concertos, atividades no exterior, uma exposição («Um Atlas de Acontecimentos») e um programa de itinerância das obras do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP).

É nesse âmbito que o programa «Transfert. Obras do CAMJAP em Itinerância» tem lugar. A importância da Coleção do Centro de Arte Moderna da Fundação é hoje um facto estabelecido e inquestionável. Não fazendo deste o lugar da história da sua constituição, pode, contudo, assinalar-se que esta procurou sempre operar numa representatividade justa do quadro artístico nacional (e não só) da sua época, o que se revelou, sobretudo nos primeiros tempos de consistência nas aquisições, uma travessia solitária no meio artístico nacional. As implicações na determinação desse caminho tornaram a Coleção uma referência ímpar no panorama cultural português, facto que merecia, nesta ocasião comemorativa, uma celebração adequada. Na concretização desta ideia, tomou forma a iniciativa «Transfert», um programa de itinerância da Coleção. Por se tratar de uma das mais importantes facetas de divulgação artística e museológica, a itinerância revelou-se o formato ideal e indicado para a ocasião.

Sediado em Lisboa, o CAM procurou, de formas distintas ao longo do tempo, contribuir ativamente para a difusão alargada dos seus recursos fora de portas (estando a coleção no centro desse conjunto, embora não em exclusivo). Neste caso particular, pensou-se num programa de itinerância da Coleção, que, ao contrário da prática corrente, não se destinaria a fazer circular uma exposição, mas antes viria a integrar um conjunto de várias mostras de obras do acervo do CAM, pensadas para locais distintos.

No texto de apresentação de António Pinto Ribeiro, pode ler-se: «Estas obras […] vão permitir um acesso em que se experimenta outros modos de relação do público com as artes visuais contemporâneas. Beneficiarão delas funcionários, alunos e visitantes de instituições portuguesas ligadas de formas diferentes à produção e ao consumo de eventos culturais» (Ribeiro, Transfert. Obras do CAMJAP em Itinerância, 2007, p. 6). Estas mostras tiveram, portanto, dimensões e formatos distintos, numa articulação comprometida com os espaços que acolheram e colaboraram na iniciativa, designadamente: o Palácio da Galeria, em Tavira; A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes/Centro Cultural do Fundão; o Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco; e, em Lisboa, o ACIME (Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas), as Escolas Secundárias António Arroio e D. Filipa de Lencastre, a Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Economia), a Universidade Católica de Lisboa e o Instituto de Psicologia Avançada (ISPA).

A coordenação e a curadoria do projeto ficaram a cargo de Leonor Nazaré, que apresentou, deste modo, uma variada seleção de artistas e das suas obras, de acordo com critérios orientados pela «premissa de facilitar e promover um contacto, nem sempre óbvio, com a criação e a produção artísticas» (Ibid.), contemplando nessa medida, sobretudo, a natureza dos espaços onde ocorreram as mostras – em evidência no caso dos Jardins da Universidade Nova de Lisboa –, mas também, naturalmente, questões temáticas e formais ­– enunciadas de forma mais acentuada no caso de Castelo Branco, Fundão ou Tavira.

A par da apresentação de cada uma das nove mostras, foi delineado, com Susana Gomes da Silva (Serviço de Educação do CAMJAP), um plano de atividades educativas – que incluiu tanto a formação de monitores dos locais, como a organização de oficinas para todas as idades, visitas gerais e temáticas, encontros imediatos (conversas curtas) e visitas-jogo – particularmente concebido para os locais, tendo em conta a sua especificidade. Foram ainda publicadas e distribuídas folhas de sala para cada uma das mostras, com biografias detalhadas dos artistas apresentados e com textos sobre as obras, com exceção do ACIME (por questões editoriais). No caso da mostra em Tavira, no Palácio da Galeria, foi publicado um catálogo da exposição, com o apoio da Câmara Municipal.

Das nove mostras apresentadas, a que decorreu no Palácio da Galeria, em Tavira, foi a mais extensa, contando com 50 obras de 32 artistas. Assumindo uma organização formal por núcleos, a exposição dividiu-se em quatro secções: I. Neofiguração e Pop art; II. Trabalhando com a geometria; III. Elidir a figuração; IV. Variantes críticas do desenho.

Na primeira parte da exposição, fez-se uso de uma pequena secção do núcleo de arte britânica da Coleção, aqui trazida através das obras de Alan Davie (1920-2014), Antony Donaldson (1939), Peter Phillips (1939) e Allen Jones (1937). A representação de nomes fortes da Pop art britânica e a apresentação das distintas explorações formais nacionais nas quais essa influência encontrou transformação – nomeadamente de Lourdes Castro (1930), Palolo (1946-2000), Ruy Leitão (1949-1976) ou Eduardo Batarda (1943) – são aqui abordadas através de uma derivação crítica particular: «Neste conjunto, o corpo, os membros são sempre fixação formal, por desmembramento ou artificialização, festa e abismo, fetiche, superfície reflectora, colorida, objectos parciais, no sentido técnico que a psicanálise atribui ao termo; indicam uma visão ligada ao consumo, uma forma de agarrar e olhar o mundo que absorveu algo da arte Pop, mas lhe conferiu versões nacionais distintas duma híper euforia tecnológica e mediática americana (a Pop Art britânica e a Neo-Figuração em Portugal)» (Nazaré, Transfert. Obras do CAMJAP em Itinerância, 2007, p. 14). Jogando uma vez mais com os paralelismos nacionais e britânicos, o segundo núcleo contou com obras de Pedro Cabrita Reis (1956), Helena Almeida (1934-2018), António Sena (1941), Eduardo Nery (1938-2013), Derek Hirst (1930-2006), Peter Sedgley (1930), Michael Kinder (1917-2009), Noronha da Costa (1942), Bridget Riley (1931) e Jorge Pinheiro (1931), usando a gramática geométrica como elemento unificador e de visível conjugação: «Cor e geometria, planos e percepção são os ingredientes de um conjunto de propostas marcadamente formais e visuais» (Ibid., p. 31). Numa proposta de natureza sensorial e abstrata, o terceiro núcleo focou-se na apresentação do abismo da negação da figuração e da forma reconhecível. A forte impressão causada foi conseguida através das obras de Julião Sarmento (1948), Michael Biberstein (1948-2013), Vítor Pomar (1949) ou Pedro Casqueiro (1959): «Neste conjunto, a referencialidade existe apenas como hipótese diluída, apesar duma inegável força latente; a figuração é usurpada por uma generalizada tendência para a elisão» (Ibid., p. 44). Numa homenagem ao desenho, muitas vezes suporte primeiro de muitas explorações, ensaio reconhecido de outros caminhos formais, são apresentados trabalhos em que se privilegia a sua materialidade e a exposição de uma intimidade e liberdade gestual que este pode permitir: Suzanne Themlitz (1968), Gil Heitor Cortesão (1967), Pedro Proença (1962), Ana Jotta (1946), Paula Rego (1935) e Manuel Botelho (1950) vêm constituir este núcleo, no qual «o desenho […] surge como um exercício crítico, profundamente ancorado na idiossincrasia afectiva e cultural de cada artista» (Ibid., p. 53).

A mostra apresentada no Museu Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco, foi talvez aquela em que uma organização temática foi mais substancialmente privilegiada. A paisagem foi o tema unificador desta mostra, como se pode ler nas palavras da curadora: «Este é um conjunto de obras sobre o que vive e o que morre na civilização. A paisagem surge como experiência de solidão e/ou de desertificação; muitas vezes como experiência de caminho em função de um sobrevoo. O ponto de vista coloca-nos num lugar flutuante, de onde se desenham panoramas em que varia a gestão da luz e os indícios de vida dos organismos (água, folhas), mas em que os elementos moldam o tom duma experiência: a terra, o ar, a água, o fogo, a aliança ou a transformação de alguns deles» (Ibid., 25). Miguel Branco (1963), Joaquim Bravo (1935-1990), Cristina Ataíde (1951), Catarina Leitão (1970), Boyd Webb (1947), Rui Vasconcelos (1967), Valente Alves (1953), Jorge Guerra (1936), Alexandre Conefrey (1961), Tim Head (1946), João Queiroz (1957), Pedro Calapez (1953), Hamish Fulton (1946), Rui Moreira (1961), Paulo Brighenti (1968), Manuel Rosa (1953), Pedro Cabrita Reis (1956) e Pedro Gomes (1972) foram os artistas escolhidos para esta mostra, que contou com um total de 36 obras da Coleção.

Na Moagem – Cidade do Engenho e das Artes/Centro Cultural do Fundão apresentaram-se oito obras de cinco artistas da Coleção. A dimensão da mostra não será significado de uma menor expressividade formal e temática, antes pelo contrário, a mostra é uma das mais eloquentes do projeto «Transfert» na sua homenagem à especificidade e identidade do local designado para o efeito. Antigo armazém de processamento de centeio, o espaço da mostra inspirou um projeto curatorial assente nas questões de memória, de identidade e de fronteira. As referências temáticas são o eixo de uma exploração trazida através das obras de Álvaro Lapa (1939-2006), Ana Vieira (1940-2016), Alberto Carneiro (1937-2017), Helena Almeida e Joaquim Rodrigo (1912-1997). A variedade de meios foi considerável dada a dimensão da mostra: pintura, fotografia, escultura, instalação e vídeo provam a natureza abrangente da escolha da curadoria.

Em Lisboa, as mostras foram substancialmente mais reduzidas. Privilegiando a já mencionada relação «nem sempre óbvia» (Ribeiro, Transfert. Obras do CAMJAP em Itinerância, 2007, p. 6) de diferentes públicos com a arte contemporânea, as escolhas recaíram na oferta de uma «(des)contextualização» espacial dos objetos, e naturalmente, da sua própria natureza, gesto esse, por vezes, tanto mais forte quanto mais isolado, e também ele pouco óbvio. Será o caso das duas obras mostradas no ACIME, de Gil Heitor Cortesão e de Helena Almeida; ou da escultura de Rui Sanches (1954) apresentada na Universidade Católica. Nesta mesma lógica, a homenagem a um artista é também ela uma forma de encontrar esse isolamento na rutura, neste caso último através da representação unívoca de uma personalidade artística. O mesmo acontecerá com as mostras da Escola Secundária António Arroio e do ISPA. Fernando Calhau (1948-2002) e António Areal (1934-1978) foram as escolhas respetivas para os locais referidos. Não deixa de ser curioso que de ambos tenha sido apresentado trabalho serial, de repetição, como afirmação de uma coerência de estrutura na sua exploração, quer esta seja mais narrativa (no caso de Areal), ou formal (no caso de Calhau). Na Escola Secundária António Arroio apresentaram-se três obras de Fernando Calhau. No ISPA foram apresentadas duas séries de Areal, A História Dramática de um Ovo (constituída por 27 painéis) e O Fantasma de Avignon (seis painéis), e ainda um conjunto de dez «caixas», numa forte ligação com a pintura See the Conquering Hero Comes.

Na Escola Secundária D. Filipa de Lencastre, a escolha curatorial recaiu nas ideias do reflexo difuso, da fixação abstrata da identidade (individual e/ou espacial) e de desvios da figuração. Para tal, apresentaram-se quatro obras de quatro artistas: os filmes de Ana Hatherly (1929-2015), Rui Calçada Bastos (1971) e Helena Almeida e ainda uma escultura de Ana Vieira.

A proposta de utilizar o espaço exterior dos jardins da Universidade Nova privilegiou naturalmente a escolha da escultura como representação da Coleção. Foram escolhidas oito obras da Coleção, de Miguel Palma (1964), Martins Correia (1910-1999), João Charters de Almeida (1935), Maria Irene Vilar (1928-2008), Amaral da Cunha (1954), João Cutileiro (1937), John van Alstine (1952) e Carlos Nogueira (1947). Neste caso particular, e excecionalmente no projeto «Transfert», foram escolhidas ainda duas obras exteriores à Coleção, de José Pedro Croft (1957) (Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa) e de Rui Chafes (1966) (Coleção Isabel e Julião Sarmento), perfazendo um total de dez obras selecionadas.

O projeto «Transfert» foi surpreendentemente ignorado pelos meios noticiosos. Ao contrário do evento «O Estado do Mundo» em que se inseriu, que mereceu bastante tratamento mediático, o programa de itinerância teve apenas algum impacto local, do qual se faz registo somente de três recortes de imprensa sem qualquer pretensão crítica, da Gazeta do Interior (Castelo Branco e Fundão) e do Barlavento (Tavira). Contudo, são assinaláveis as manifestações genéricas de satisfação transmitidas pelas entidades envolvidas. Nos balanços acerca da iniciativa, solicitados a todas elas, pode ler-se: «A iniciativa foi muito interessante, plenamente participada pela comunidade escolar em geral e muito particularmente pelos professores de Desenho que tiveram a possibilidade de usufruir das visitas guiadas cujo balanço se tem como muito positivo» (Excerto do Balanço do Conselho Executivo da Escola Secundária António Arroio); e ainda: «Só o profissionalismo demonstrado pelos elementos da vossa equipa que mesmo perante as reais dificuldades surgidas conseguiram estabelecer uma empatia constante entre todos os alunos dos mais diversos níveis etários, fazendo com que a apreciação global tenha sido classificada de Excelente, superando assim, de uma forma muito positiva, as expectativas de todos os professores que tiveram a honra de acompanhar este projecto» (Excerto do Balanço de Manuela Sena, Presidente da Comissão Provisória da Escola Secundária D. Filipa de Lencastre); e noutro documento ainda: «Embora à partida se tivesse pensado privilegiar o público mais pequeno, rapidamente os monitores se aperceberam que era no público adulto, que nos seus tempos de espera para serem atendidos dispõem de tempo e vontade para conversar, que se poderiam conseguir maiores frutos na exploração das obras. E aqui o trabalho revelou-se muito profícuo. […] Apesar de só estarem presentes […] uma vez por semana, os monitores conseguiram, nos dias em que cá estiveram, dinamizar o contacto com os presentes, permitindo um momento de reflexão individual (e por vezes com um grupo mais alargado) sobre as obras expostas, a partir da sua própria experiência enquanto imigrantes, abordagem essa que permitiu que as pessoas se sentissem de algum modo identificadas com as obras» (Excerto do Balanço do ACIME, por Ângela Lisboa Ramos e Francisca Assis Teixeira).

Não há um registo claro do número de visitantes de cada um dos locais das mostras. Algumas entidades forneceram estes dados nos seus balanços: no caso de Castelo Branco houve uma contabilização de 4063 visitantes (em contexto de visita ao museu) e 516 visitantes (que visitaram exclusivamente a mostra «Transfert»); no caso do Fundão, foram contabilizados 747 visitantes, incluindo os participantes nas iniciativas educativas.

Vera Barreto, 2018