Stravinsky: A Sagração da Primavera

Orquestra Gulbenkian / Hannu Lintu

Sob a direção do maestro Hannu Lintu, a Orquestra Gulbenkian interpreta a exigente 'Sagração da Primavera', a obra mais célebre do compositor russo Igor Stravinsky.
João Silva 06 dez 2024 36 min

Os Ballets russes promoveram várias tendências modernistas congregando coreografia, música e artes visuais de uma forma ímpar. A Sagração da Primavera é um bailado de Stravinsky estreado a 29 de maio de 1913, no Teatro dos Campos Elísios. A companhia dos Ballets russes e a orquestra, dirigida por Pierre Monteux, protagonizaram um escândalo artístico em grande escala. Para isso, contribuiu a coreografia iconoclasta da Vaslav Nijinsky, que geometrizou os corpos nesse bailado. A companhia de dança liderada pelo empresário Sergei Diaghilev foi fundamental para a afirmação do jovem Igor Stravinsky e atribuiu-lhe grande visibilidade.

Para o argumento de A Sagração, Stravinsky contactou com Nicolas Roerich, pintor e arqueólogo que idealizou o universo pagão russo em que se desenrola a ação. O bailado narra um rito pagão de fertilidade envolvendo um sacrifício humano e encontra-se dividido em duas partes: A Adoração da Terra e O sacrifício. A primeira representa os preparativos para uma cerimónia em que uma virgem dança até à morte sob os olhares do coletivo, valorizando uma relação direta com as forças telúricas. A segunda apresenta o rito sacrificial, exacerbando o primitivismo do ato. Os diversos passos do ritual mostram as danças associadas ao retorno primaveril à vida, a seleção e o sacrifício da virgem, interpretada na estreia pela bailarina Maria Piltz.

A Sagração da Primavera é uma obra baseada em motivos, quase todos associados a repertório primaveril. Muitos dos mesmos foram aproveitados da música tradicional do Império Russo; contudo, os elementos são segmentados, sobrepostos e transformados por Stravinsky de forma a integrarem uma complexa trama de texturas. A sobreposição de contextos harmónicos estáticos, com frequente recurso ao cromatismo, apresenta-se fundamental, pois sublinha o modalismo da peça, que evoca o património tradicional dos povos do Império Russo. A primazia do ritmo e a complexidade de texturas e acentuações apresenta-se como uma forma especial de transcender aspetos temáticos e harmónicos. Nesse contexto, Stravinsky adaptou a escrita musical ao resultado desejado, incluindo constantes mudanças de compasso de forma a marcar a assimetria. A constante sobreposição de ostinati de valores rítmicos distintos e de duração desigual resultam numa complexa polirritmia. Esta valorização do ritmo enquadra-se na celebração estética do “primitivo” da cerimónia de sacrifício, para a qual contribuiu a orquestração pouco usual. Nela, Stravinsky subverteu os papéis tradicionais dos instrumentos da orquestra, valorizando os sopros enquanto portadores de motivos e atribuindo funções percussivas (por vezes homorrítmicas) às cordas, resultando numa “primitivação” da componente tímbrica da obra. A valorização das tessituras extremas da orquestra, quer pelo papel atribuído aos diversos instrumentos quer pela inclusão do contrafagote, do trompete baixo ou do clarinete baixo, é um elemento a destacar.

O acordar da Primavera é representado na introdução por motivos circulares flutuantes dominados pelos sopros, que evocam as flautas campestres. A anciã chega, acompanhada da percussividade irregular das cordas. Em Augúrios primaverisDança das adolescentes, as raparigas dançam acompanhadas de melodias diatónicas em repetição. A tensão cresce em Ritual da abdução e Os círculos da primavera, que antecipam a divisão do grupo de bailarinos no Ritual das aldeias rivais, passagem acompanhada de explosões da orquestra em torno de um curto motivo. O Cortejo do Sábio assinala uma acalmia relativa que antecipa a enérgica Dança da Terra. Esta amálgama de sincopação, melodias sinuosas nas cordas e fanfarras conduz a primeira parte do bailado ao término. A segunda parte começa com uma melodia de sabor popular que atravessa os diversos naipes. O mistério domina em Círculos místicos das adolescentes, episódio em que solos de instrumentos de sopro recapitulam alguns elementos da primeira parte. A orquestra baseada em compassos irregulares é transformada num gigantesco agrupamento de percussão em Glorificação da eleita, onde se enaltece a escolhida para o sacrifício. A breve Evocação dos antepassados desenrola-se através do brilho das fanfarras e percussão sobre acentuações assimétricas, conduzindo à Ação ritual dos antepassados, numa textura de marcha que apoia motivos sinuosos apresentados pelos sopros. Estes desembocam na Dança sacrificial da eleita, um crescendo de horror e tensão em que o ritmo se emancipa dos outros elementos e a orquestra encarna os personagens do bailado. Do solo inicial de fagote ao final percussivo e enérgico, Stravinsky conduz-nos a uma viagem única que funde a vanguarda com o primitivo num substrato modernista cheio de tensões e instabilidade.


Intérpretes

  • Maestro

Programa

Igor Stravinsky

A Sagração da Primavera
Primeira parte: A adoração da Terra
– Introdução
– Augúrios primaveris – Dança das adolescentes
– Ritual da abdução
– Os círculos da primavera
– Ritual das aldeias rivais
– Cortejo do Sábio
– Adoração da terra (O Sábio)
– Dança da Terra

Segunda parte: O sacrifício
– Introdução
– Círculos místicos das adolescentes
– Glorificação da eleita
– Evocação dos antepassados
– Ação ritual dos antepassados
– Dança sacrificial (A eleita)

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