O Poder da Palavra I. Peregrinação / Hajj

Projeto «O Poder da Palavra»

Primeira edição do projeto de curadoria participativa «O Poder da Palavra», materializada numa intervenção expositiva na Galeria do Oriente Islâmico do Museu Calouste Gulbenkian. Partindo do espólio de arte islâmica da Coleção do Fundador, a mostra, que contou com a colaboração de um grupo de participantes, centrou-se na tradução das inscrições de uma série de objetos, incluindo peças de cerâmica, têxteis e exemplares das artes do livro.

Em outubro de 2017, um projeto de investigação dedicado à coleção do Médio Oriente, particularmente ao estudo da arte do livro e de outros objetos com escrita da Coleção do Fundador do Museu Calouste Gulbenkian (MCG), foi apresentado por iniciativa de Jessica Hallett sob o nome «O Poder da Palavra».

A primeira ambição deste projeto era aprofundar o conhecimento das peças associadas à Galeria do Oriente Islâmico do MCG através da transcrição e tradução de todas as suas inscrições (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021). Até então, das cinquenta peças com inscrições, apenas oito se encontravam traduzidas (Ibid.).

Como explica Jessica Hallett, apesar de estas obras entrarem frequentemente na categoria das «artes decorativas» (termo «pejorativo» cunhado no século XIX e que é fruto de uma visão eurocêntrica da história da arte), a escrita assume nelas um papel fundamental na tradição da arte islâmica, sendo responsável por conceder aos objetos em que se inscreve uma «fala», no sentido em que medeia a comunicação com o curador e com o espectador, como já antes estabeleceu com os seus proprietários (Ibid.).

Deste ponto de vista, privar estes objetos da sua relação com o mundo e do contexto e propósito com que foram criados é negar-lhes parte da sua essência. Ao serem exclusivamente apreciadas pelo seu «exotismo», estas obras são reiteradamente reduzidas a fontes de inspiração para o mundo ocidental – como acontece com grande parte das que se encontram retiradas do seu ambiente original e expostas em contexto museológico (Ibid.).

Em 2017, duas exposições temporárias, «Noruz, Festividades na Primavera» e «Eid Al-Fitr – O Fim do Jejum», ocorridas na Galeria do Oriente Islâmico, com curadoria de Sussan Babaie, tinham dado início a uma reflexão interna, que envolveu a diretora Penelope Curtis e a equipa educativa, sobre a necessidade de se atualizar as interpretações vigentes desta coleção, bem como introduzir práticas de investigação museológicas consultivas e representativas que desafiassem estereótipos e preconceitos. O trabalho de mediação e programação destas exposições incluíra a colaboração com instituições europeias como o Museum für Islamische Kunst, em Berlim, ou o British Museum, em Londres. Estas instituições, responsáveis pelas iniciativas «Multaka: Museum as Meeting Point» e «Gallery of the Islamic world», respectivamente, haviam respondido ao fluxo de refugiados sírios e iraquianos oferecendo-lhes formação como guias e intérpretes, com o objetivo de os integrar nas suas galerias do Oriente Islâmico e assim facilitar o intercâmbio cultural nas comunidades locais.

Em 2019, a exposição «O Gosto pela Arte Islâmica: 1869-1939», patente no Museu Calouste Gulbenkian, permitira igualmente perceber a necessidade de mudar a abordagem no que diz respeito ao estudo, representatividade e apresentação das coleções do Oriente Islâmico (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020). De facto, reconhecer verdadeiramente as obras, vendo-as como um todo, exigia uma predisposição para as olhar de outra perspetiva, analisando cada um dos seus aspetos a partir de uma relação de proximidade, em diálogo com as culturas de origem.

Apesar de ter aprendido árabe, Jessica não dominava outras línguas faladas no mundo islâmico, como o turco ou o persa, o que era imprescindível à execução desta tarefa. Além disso, a última experiência expositiva – «O Gosto pela Arte Islâmica» – sublinhara a importância de continuar a trabalhar com as comunidades islâmicas, nomeadamente a da Mesquita Central de Lisboa, localizada no Bairro Azul. Assim, com a ajuda do Serviço de Educação do Museu Calouste Gulbenkian, comprometido com esse trabalho com as comunidades limítrofes, em novembro de 2019 lançou-se uma convocatória, desafiando todos aqueles que tivessem estado em contacto com o Museu nos últimos quatro anos a juntarem-se para a primeira edição do projeto participativo «O Poder da Palavra» (Ibid.).

Tomando como ponto de partida a importância da(s) palavra(s) para o islão e a sua «invisibilidade» na Galeria do Médio Oriente, o projeto pretendia reunir um grupo de pessoas em torno dos objetos da coleção e trabalhar na leitura, descodificação e tradução das suas inscrições, quase todas exclusivamente religiosas. Por se associarem ao objeto, tendo a capacidade de o fazer ressoar – ativando-o –, estas inscrições, produzidas através da tão aperfeiçoada arte da caligrafia, levada a cabo em contexto islâmico, permitiriam trazer vozes ainda por escutar ao espaço da galeria (Ibid.).

O grupo de trabalho que então se estabeleceu abrangia desde membros da comunidade local, a investigadores e colaboradores da equipa de conservação, a curadoria e o Serviço Educativo – todos cidadãos lisboetas, criando uma malha representativa da enorme diversidade cultural da cidade, constituída por portugueses, muçulmanos e não-muçulmanos, ateus, falantes de turco, persa e árabe.

A ideia, desde logo, era juntar um grupo heterogéneo de pessoas, que, em conjunto, contribuiria para o enriquecimento da coleção. O grupo estabeleceu-se sob a condição de não haver nenhum tipo de hierarquia entre os seus membros, quer esta fosse ditada pelo conhecimento, pelo estatuto social ou pela profissão (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020). Como refere Shahd Wadi, promovia-se, pelo contrário, uma relação de horizontalidade entre todos: curadores, conhecedores, público e objetos (Ibid.).

Assim, naquela que viria a ser a primeira edição de «O Poder da Palavra», à equipa do Museu Calouste Gulbenkian, responsável pela coordenação do projeto, e constituída por Jessica Hallett e Diana Pereira, juntaram-se o curador convidado Hassane Ait Faraji, da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Fabrizio Boscaglia, Jad Khairallah, Shahd Wadi, Maryam Loutfi, Rahman Nighighi, Sheila Namazi, Sheikh Zabir Edriss e Yasir Aboobakardaud. Entre os participantes, encontravam-se artistas, estudantes, professores, tradutores, académicos religiosos e ateus (Fundação Calouste Gulbenkian: O Poder da Palavra I: Peregrinação \ Hajj).

Com a tradução e o conhecimento das línguas das inscrições, ampliara-se o campo de ação às áreas da interpretação e da mediação, bem como da investigação, garantindo um estudo completo da coleção. Afinal, um dos objetivos fundacionais do projeto e ciclo de programação «O Poder da Palavra» era a formação de novas gerações através da partilha, comunicação e criação de novos conhecimentos gerados no seio do grupo e consequentemente devolvidos ao público com a exposição (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020).

Por se tratar de um projeto de curadoria participativa em fase de incubação, o processo foi particularmente intenso e concentrado no tempo. Realizaram-se dois workshops de meio-dia com os participantes (29-30 de novembro de 2019), no qual se traduziram as inscrições, se discutiu a pertinência das obras e se definiram conceitos-chave que ancoravam uma narrativa para a exposição, que na realidade acabou por se revelar uma dupla narrativa, como veremos.

A primeira edição do ciclo passava a intitular-se «O Poder da Palavra I: Peregrinação / Hajj» e reunia sete conceitos-chave, que haviam sido selecionados para se associarem a objetos e servirem como mote da exposição (Fundação Calouste Gulbenkian: O Poder da Palavra I: Peregrinação \ Hajj).

A escolha do algarismo sete não era inocente, correspondendo simultaneamente ao número de versos no capítulo inicial do Alcorão e ao número de pilares da peregrinação anual a Meca. Na cultura islâmica, a peregrinação (Hajj) é uma viagem real, que deve ser feita pelo menos uma vez na vida por cada crente. Nesse sentido, transportá-la para o contexto expositivo era adotá-la como metáfora para o movimento e para a «inescapabilidade» da vida. Através de sete momentos ou pilares, a peregrinação poderia ser usada como bússola, ou guia, para uma exposição que rapidamente se entendeu poder ser lida da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda, como acontece com a escrita árabe (Ibid.).

O texto curatorial explica a importância da ideia de viagem e do conceito de «coexistência» como ponto de partida desta exposição, dedicada à cultura e religião islâmicas. A associação de Calouste Gulbenkian (1869-1955) e de algumas das peças selecionadas para a exposição (provenientes da coleção por ele reunida) à cidade de Istambul – cidade onde o fundador arménio cristão nasceu, e que, na altura, era habitada por muçulmanos, cristãos e judeus –, ou a possibilidade de se ler esta exposição em ambas as direções, como atrás referido, sustentam a escolha do conceito (Ibid.).

A partir de sete palavras e sete objetos, foram constituídos sete núcleos, dispostos, para o efeito, na longa vitrina instalada na Galeria do Médio Oriente. A primeira peça – uma capa de Alcorão sem o seu miolo, datada do período safávida – marcava uma espécie de prelúdio da viagem e uma explicação prévia sobre o Alcorão, o texto sagrado do islão. O Alcorão é, para o islão, a «Palavra de Deus», que terá sido revelada pelo arcanjo Gabriel ao profeta Maomé, em árabe, entre c. 610 e 632. Em árabe, «Alcorão» significa «a recitação». Num momento que o grupo intitulou como «Manifestar e Ocultar / Kashf wa hajb», esta capa serviu dois propósitos: por um lado, ocultar o conteúdo, e por outro «revela[r] […] um espaço vazio que […] evoca as origens [do Alcorão] na oralidade» (Ibid.).

O segundo dos sete momentos anunciava «A Abertura / al-Fatiha», como o início da peregrinação, através de um exemplar de um manuscrito parcial do Alcorão datado do período safávida (c. 1570). Esta cópia iraniana profusamente decorada, onde o dourado do ouro se mistura com o azul profundo, «contém as palavras reveladas ao profeta Maomé na cidade de Meca, antes da sua fuga para Medina em 622», numa oração que solicita orientação divina e misericórdia de Allah (Deus) e constitui o primeiro capítulo do Alcorão (Ibid.).

No momento seguinte, apresentava-se novamente um Alcorão do período safávida (1622-1623). Graças às suas traduções, o grupo descobriu tratar-se de um exemplar curiosamente oferecido por uma mulher a uma mesquita no Cairo, como o atesta a palavra «waqf» (doação), repetida ao longo da parte superior da encadernação. Aberto por baixo da vitrine no vigésimo segundo capítulo, a peça convoca os fiéis para se juntarem ao Hajj (peregrinação). O texto que a acompanha aponta para um facto que torna esta escolha muito mais interessante: embora se espere que todos os fiéis façam esta viagem, ainda não é permitido às peregrinas cumpri-la sozinhas, sem a supervisão de um homem (Ibid.).

O terceiro núcleo expunha duas páginas de um manuscrito ilustrando «A Peregrinação a Meca», parte de uma antologia do sultão Iskandar, copiada por Mahmud ibn Murtaza Al-Husayni e Hasan al-Hafiz, e realizada em Shiraz, no Irão, em 1411 (período timúrida). As belas ilustrações revelavam o momento em que se cumpre o primeiro e último ritual do Hajj, o tawaft, que consiste na deambulação dos peregrinos em torno da Caaba (literalmente, o cubo), um santuário feito de pedra negra e tijolos. Durante o ritual, com uma veste branca e as cabeças rapadas, os peregrinos efetuam sete rotações no sentido dos ponteiros do relógio, desenhando um círculo em redor deste cubo. Na página da esquerda, as imagens aludem ao momento ascendente e à sensação descrita como «intensa» e «magnética» de aproximação à Caaba. O texto refere que, tal como no islão, também o budismo e o hinduísmo exercitam a deambulação, integrando-a nas suas práticas ritualísticas (Ibid.).

Segundo a tradição, a peça seguinte – um lampasso de seda vermelha da Turquia (séculos XVII-XVIII), com inscrições em árabe – revestiria as paredes no interior da Caaba, «que, apesar do seu exterior escuro, é entendida como fonte de luz» (Ibid.). Entre os ornamentos e inscrições tecidas no luxuoso exemplar, distinguem-se o desenho de lâmpadas, que incluem dois dos noventa e nove nomes de Deus – Ya Rahman [Misericordioso] e Ya Mannan [Perfeição] –, e a linha ziguezagueante, que parece sugerir a luz dada pelas chamas cintilantes, em movimento. Trata-se de representações profundamente simbólicas, uma vez que, no Alcorão, Deus é comparado a uma lâmpada que ilumina como uma estrela cintilante (Ibid.).

O núcleo seguinte, representado por um Alcorão indonésio dos séculos XVII e XVIII, detinha-se sobre o Hajj como uma experiência de intercâmbio vibrante, resultante do encontro de uma pluralidade de culturas, idiomas, etnias e nações, que anualmente reúne três milhões de muçulmanos de todo o mundo em Meca. Logo depois, um prato de cerâmica com motivo de arabesco e inscrição, proveniente da Síria e datado do final do século XII e início do século XIII, ilustra o momento da súplica. As bênçãos inscritas sobre o engobe foram escritas ao contrário, restringindo a sua leitura à cerimónia da ablução, o ritual de lavagem purificadora que precede as orações. Estas palavras servem de «amuletos, rogando saúde, felicidade e descendência duradoura» (Ibid.).

Os núcleos, os textos que os acompanhavam, assim como a conclusão do grupo acerca da surpreendente possibilidade de ler a exposição no sentido inverso, da direita para a esquerda, como se de uma viagem espiritual individual se tratasse, foram disponibilizados virtualmente no final de abril de 2020, na página web do projeto «O Poder da Palavra», associada à do Museu Calouste Gulbenkian.

Num alargamento da ideia de democratização da cultura, o propósito era que os conteúdos fossem disponibilizados online sem termo, e que, através deles, o público conseguisse não só alargar a sua compreensão da arte do Médio Oriente, mas também perceber o processo de construção da exposição e o cariz participativo que lhe era subjacente. Para o efeito, os conteúdos ficariam disponíveis para lá do fecho da mostra física.

Embora apenas realizada no âmbito da segunda edição de «O Poder da Palavra», a videoconferência «Quantas vozes tem um museu», que viria a ocorrer a 18 de maio de 2020, apresentou o projeto ao público depois de meses de confinamento.

Madalena Dornellas Galvão, 2021


Ficha Técnica


Eventos Paralelos

Oficina / Workshop

O Poder da Palavra I. Peregrinação / Hajj

29 nov 2019 – 30 nov 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede
Lisboa, Portugal
Encontro

Outras Formas de Pensar e de Fazer

24 set 2021
Online
Lisboa, Portugal

Fotografias

Jessica Hallet (à esq.)
Jessica Hallet (à esq.)
Jessica Hallet (à esq.)

Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, notas internas, agendas, memorandos, entre outros. 2020 – 2022


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