O Poder da Palavra II. Da Índia à Europa, A Viagem das Fábulas de Bidpay

Projeto «O Poder da Palavra»

A 2.ª edição do projeto de curadoria participativa «O Poder da Palavra», partiu de uma uma cópia da coletânea de fábulas da Coleção do Museu Gulbenkian. Com uma forte ligação à Panchatantra (séc. II e III d.C.) este manuscrito serviu de fonte para a análise de temas como a ingratidão, a unidade, a moralidade e a humanidade numa perspetiva histórica e atual.

Em 2017, um projeto de investigação dedicado à coleção do Médio Oriente, parte integrante da Coleção do Fundador do Museu Calouste Gulbenkian, foi apresentado por iniciativa de Jessica Hallett sob o nome «O Poder da Palavra» (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

A par de algumas mudanças que vinham sendo implementadas nos últimos anos por vários museus europeus, a necessidade de desafiar estereótipos e preconceitos concebidos pela visão eurocêntrica da história da arte e de mergulhar num estudo mais profundo das coleções de arte do Oriente Islâmico tornara-se óbvia. Partindo de exemplos como «Multaka: Museum as Meeting Point», no Museum für Islamische Kunst, em Berlim, e na Gallery of the Islamic World, no British Museum, em Londres, assim como da experiência com «Noruz, Festividades na Primavera», «Eid Al-Fitr – O Fim do Jejum» e «O Gosto pela Arte Islâmica (1869-1939)» – exposições patentes no Museu Calouste Gulbenkian entre 2017 e 2019 –, compreendeu-se ser necessário rever as interpretações vigentes da coleção, introduzindo práticas museológicas consultivas e representativas (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020). Reconhecer verdadeiramente as obras, vendo-as como um todo, exigia uma predisposição para as olhar de outra perspetiva, analisando cada um dos seus aspetos a partir do diálogo com as obras e de uma relação de proximidade com as culturas de origem (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

Com a ajuda do Serviço de Educação do Museu Calouste Gulbenkian, envolvido nesse trabalho com as comunidades limítrofes, em novembro de 2019 lançou-se uma convocatória, desafiando todos aqueles que tivessem estado em contacto com o Museu nos últimos anos a juntarem-se para a primeira edição do projeto participativo «O Poder da Palavra» (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020).

Nessa fase, reuniu-se um grupo de pessoas em torno dos objetos da coleção, que trabalhou para a leitura, descodificação e tradução das suas inscrições, quase todas exclusivamente religiosas. O exercício realizado permitiu trazer ao espaço da galeria vozes que sempre o habitaram, mas que as sucessivas abordagens curatoriais ainda não haviam permitido escutar.

O grupo de trabalho então estabelecido abrangia desde membros da comunidade local a investigadores e colaboradores da equipa de conservação, a curadoria e o Serviço Educativo (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

A ideia era juntar um grupo heterogéneo de pessoas, que, em conjunto, contribuiria para o enriquecimento da coleção. Nesse sentido, entre os membros do grupo não se admitia a existência de uma hierarquia, quer esta fosse ditada pelo conhecimento, pelo estatuto social ou pela profissão (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020). Como refere Shahd Wadi, promovia-se, pelo contrário, uma relação de horizontalidade entre todos: curadores, conhecedores, público e objetos (Ibid.).

Além disso, todos os participantes eram cidadãos lisboetas, criando uma malha representativa da enorme diversidade cultural da cidade, constituída por portugueses, iranianos, muçulmanos e não-muçulmanos, ateus, falantes de turco, persa e árabe (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

A segunda edição de «O Poder da Palavra» partiu de uma obra recentemente encontrada nas reservas do Museu e que deu início a uma nova jornada do projeto. Através deste objeto – um manuscrito persa realizado no final do século XIX e nunca estudado pela equipa do Museu –, transitava-se das palavras (inscrições) para as imagens (ilustrações), do mundo árabe para o persa, para descobrir «uma das séries de fábulas mais copiadas, traduzidas e publicadas em todo o mundo» (Fundação Calouste Gulbenkian: O Poder da Palavra II. Da Índia à Europa, a viagem das fábulas de Bidpay).

À equipa do Museu Calouste Gulbenkian responsável pela coordenação do projeto e constituída por Jessica Hallett e Diana Pereira, juntaram-se o curador convidado Farhad Kazemi, aluno do Institut National du Patrimoine, em Paris, e Fabrizio Boscaglia, Joana Simões Piedade, João Teles e Cunha, Leila Namazi, Maryam Loutfi, Maryam Nasirpour, Rahman Haghighi, Raquel Feliciano, Ricardo Mendes, Omid Bahrami, Samaneh Sharif, Sara Domingos e Shahd Wadi. Entre os participantes encontravam-se artistas, estudantes, professores, tradutores, académicos religiosos e ateus (Ibid.).

A presença de Farhad Kazemi, de origem iraniana, permitiu traduzir as histórias escritas e analisar as imagens, fazendo uma contextualização cultural e histórica do manuscrito enquanto objeto integral. A chamada aos participantes foi particularmente dirigida a pessoas de origem iraniana, tendo havido participantes de outras nacionalidades.

O trabalho de investigação e discussão em grupo aconteceu quase sempre em formato online, devido à pandemia de Covid-19. Num primeiro momento, os participantes eram convidados a analisar as imagens e, num segundo momento, as histórias correspondentes. Com estas análises, pretendia-se discutir criticamente várias questões, nomeadamente a literacia visual, a circulação de histórias e imagens através dos séculos e de diversas regiões geográficas, a apropriação cultural de histórias, as construções sociais que se consubstanciam a partir de narrativas morais e a pertinência destas narrativas na contemporaneidade. É importante notar que no Irão muitas destas histórias ainda são contadas às crianças em contextos familiares e escolares. O resultado viria a materializar-se na mostra «O Poder da Palavra II: Da Índia à Europa, a viagem das fábulas de Bidpay».

De acordo com o texto curatorial, o manuscrito em questão tem origem numa coletânea de antigas fábulas indianas escrita em sânscrito entre os séculos II e III d.C., intitulada Panchatantra, ou «Cinco Tratados», e criada como instrumento educacional para os membros da elite dominante (Ibid.). A versão original, atualmente desaparecida, teria sido levada da Índia para a Pérsia por Borzuya, o médico do rei sassânida Khosrow I (r. 531-579), e traduzida para persa médio ou pahlavi. Já no século VIII, a nova cópia seria novamente traduzida para árabe por Ibn al-Muqaffa (falecido c. 756/759), que a intitularia Kalila e Dimna, numa referência aos dois chacais que protagonizam as histórias (Ibid.).

Com as sucessivas viagens e adaptações, o manuscrito foi ganhando um reconhecimento crescente. Na Idade Média, «a versão árabe foi traduzida para siríaco, hebraico, latim e persa moderno e, posteriormente, para quase todas as línguas do mundo», tornando-se uma obra de referência para figuras como Jean de La Fontaine (1621-1695), que declara que as suas famosas Fábulas (1668-1694) se devem à tradução francesa da cópia persa, intitulada Livre des Lumières, numa edição de Gilbert Gaulmin, datada de 1644 (Ibid.).

Ao grupo de participantes interessou que, apesar das várias cópias, a série de fábulas encaixasse, desde a sua conceção primeva, no género literário conhecido como «espelho de príncipes», uma vez que essa condição permitia aprofundar a discussão em torno do objeto, mais concretamente acerca da atualidade dos temas nele apresentados (Ibid.). Como sabemos, os protagonistas destas histórias são animais com traços de caráter humanos. Através de vários episódios, e à nossa semelhança, estes envolvem-se numa série de situações sociais que acabam por se resolver quer por força dos defeitos e virtudes pessoais, quer pelas atitudes tomadas em relação a si e ao outro, oferecendo, desta forma, autênticas lições de regra e comportamento, em que a ética e a prudência são frequentemente a moral da história (Ibid.).

A pequena exposição que ocupou a Galeria do Oriente Islâmico partiu da análise deste manuscrito não encadernado, realizado no Irão em 1842, e cujas ilustrações permaneceram intactas aquando das cheias que assolaram Lisboa em 1967. Perante a surpreendente descoberta, ao longo de várias reuniões, o grupo deteve-se sobre as imagens e os vários temas tratados – como a traição, a arrogância, a ganância, a humildade, a inveja, a união, a moralidade, entre tantos outros –, propondo-se analisá-los criticamente, não só de um ponto de vista cultural, mas também do ponto de vista do funcionamento dos arquétipos tradicionais na atualidade (Ibid.).

Instalada na Galeria do Oriente Islâmico numa vitrina horizontal, a exposição iniciava com a apresentação de uma primeira obra pertencente à categoria das artes do livro – um espelho em ouro com a representação de um príncipe em esmalte. Por cima, na parede à qual ficava encostada, foram colocados painéis verticais com passe-partouts onde figuravam ilustrações das fábulas que o grupo quis destacar: no primeiro, introduziu-se a cópia com o título persa «Anvâr-e Soheyli», bem como a história de «Kalila e Dimna»; no segundo, figuravam três histórias relacionadas com a traição, seguidas de episódios que o grupo associou aos temas da satisfação e da unidade; no quarto e último painel, eram referidas histórias sobre ingratidão e conhecimento.

O espaço da intervenção expositiva era definido pelos dois painéis que ladeavam a longa vitrina: enquanto no da esquerda se podia ler o texto curatorial; no da direita, Farhad Kazemi juntou todas as expressões que foram surgindo nas várias reuniões aquando da partilha e discussão dos temas em jogo. O resultado foi um painel cuja mancha de palavras, graficamente trabalhada, se assemelharia a um grafitto, fazendo regressar a esses preciosos momentos de partilha em comunidade (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020). Aqui, a inclusão de frases em persa foi pioneira, e representa a primeira vez que a caligrafia árabe foi apresentada na Galeria.

Além da descoberta de um manuscrito que nunca fora estudado, a investigação de Farhad Kazemi revelou o conteúdo de duas inscrições: um poema de amor numa encadernação em laca (Inv. R36), e outra, uma dedicação ao destinatário da peça ofertada, uma base de hookah em prata (Inv. HC 50).

A quantidade de informação e entusiasmo gerados durante o processo de preparação da exposição acabou por resultar na criação de uma outra vitrina, situada à esquerda da primeira, onde seriam dispostos outros objetos temporalmente próximos do manuscrito, pequenos textos ou comentários trazidos durante as reuniões (Ibid.).

Perante as restrições trazidas pela pandemia de Covid-19, e no quadro da política de democratização da cultura levada a cabo por várias instituições culturais no país, entre as quais se destaca a Fundação Calouste Gulbenkian, decidiu-se, na senda da edição anterior, dar continuidade às reuniões de forma virtual e desenvolver conteúdos digitais complementares à exposição, democratizando assim o acesso a ela num período de grandes constrangimentos (Ibid.)

Os conteúdos seriam disponibilizados sem termo, com o objetivo de, através deles, o público conseguir não só alargar a sua compreensão da arte do Médio Oriente, mas também perceber o processo de construção da exposição e o cariz participativo que lhe era subjacente. Para o efeito, os conteúdos ficariam disponíveis para lá do fecho da mostra física (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020).

No que diz respeito à programação paralela, ocorreram duas iniciativas: a realização de um pequeno filme acerca do conto iraniano O Leão e a Lebre, e uma videoconferência sobre o papel dos museus na sociedade atual. Originalmente, o filme, realizado por Rahman Haghighi (realizador e músico iraniano, então participante do projeto), teria sido uma peça de teatro infantil, destinada a famílias e crianças. No entanto, devido às restrições impostas pela pandemia, Rahman Haghighi acabou por se filmar a contar, em iraniano e em português, a fábula cantada do Leão e da Lebre, segundo a tradição oral iraniana. O evento ocorreu online e seria posteriormente partilhado nas redes sociais do Museu.

O segundo evento – a videoconferência «Quantas vozes tem um museu?» – ocorreu por ocasião das comemorações do Dia Internacional dos Museus, a 18 de maio de 2020, inserida num ciclo de programação online do Museu Calouste Gulbenkian. A conversa, moderada por Diana Pereira e aberta à participação do público, contou com as intervenções de Farhad Kazemi, Jessica Hallett e Shahd Wadi, procurando refletir sobre o papel dos museus na contemporaneidade (Ibid.).

A pertinência das questões levantadas por Shahd Wadi ao longo de todo o processo, nomeadamente sobre género e a representação das mulheres nas histórias e imagens analisadas, levou Jessica Hallett a convidá-la para ser curadora da terceira edição do projeto, que viria a intitular-se «Mulheres: navegando entre a presença e a ausência».

Madalena Dornellas Galvão, 2023


Ficha Técnica


Eventos Paralelos

Encontro

Outras Formas de Pensar e de Fazer

24 set 2021
Online
Lisboa, Portugal
Encontro

Quantas Vozes tem um Museu?

18 mai 2020
Online
Lisboa, Portugal
Teatro

O Leão e a Lebre. Um Conto de Tradição Persa

17 mai 2020
Online
Lisboa, Portugal

Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, notas internas, agendas, memorandos, entre outros. 2020 – 2022


Exposições Relacionadas

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