O Poder da Palavra III. Mulheres: Navegando entre a Presença e a Ausência

Projeto «O Poder da Palavra»

Terceira edição do projeto de curadoria participativa «O Poder da Palavra». Partiu da Galeria do Oriente Islâmico da Coleção do Fundador do Museu Calouste Gulbenkian para descobrir as formas sob as quais as mulheres podem ser encontradas naquele espaço. Através de diversos objetos revistos à luz das histórias pessoais de cada participante, construiu-se uma exposição que propõe um olhar feminista sobre a Coleção.

Depois de duas bem-sucedidas edições de «O Poder da Palavra», que trabalharam a viagem física e espiritual praticada no islão – «O Poder da Palavra I: Peregrinação / Hajj» – e a validade dos arquétipos tradicionais presentes num manuscrito do século XIX, uma cópia iraniana da colectânea de fábulas Panchatantra reunida na Índia entre os séculos II e III d.C., que inspirara as famosas fábulas de La Fontaine (1621-1695) – «O Poder da Palavra II: Da Índia à Europa, a viagem das fábulas de Bidpay» –, Jessica Hallett decidiu convidar Shahd Wadi a liderar a curadoria daquela que viria a ser a terceira intervenção expositiva do projeto.

A partilha de conhecimento travada dentro de um grupo que, ao longo das várias edições, se foi sempre reconfigurando era imensa, e Shahd Wadi acompanhava o projeto desde início, tendo sido colaboradora em todos os grupos de trabalho. O seu discurso sobre a necessidade da criação de narrativas feministas, inclusivamente no âmbito museológico, alertara Jessica Hallett para o potencial que o tema poderia ter numa reinterpretação da coleção da Galeria do Oriente Islâmico (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

À equipa do Museu Calouste Gulbenkian responsável pela coordenação do projeto e constituída por Jessica Hallett e Diana Pereira, juntaram-se Susana Gomes da Silva, responsável pelo Serviço Educativo no Museu, a curadora Shahd Wadi e oito outras participantes. Apesar de a convocatória ter sido lançada ao público em geral, sem qualquer restrição quanto à identidade de género, certo é que a quase totalidade dos inscritos eram mulheres.

Além disso, à semelhança das edições anteriores, todas as participantes eram cidadãs de Lisboa, criando uma malha representativa da enorme diversidade cultural da cidade, constituída por muçulmanos e não-muçulmanos, ateus, falantes de turco, persa e árabe (Ibid.).

Entre as participantes – Faranaz Keshavjee, Joana Simões Piedade, Leylâ Gediz, Merve Pakyürek, Özge Topçu, Rasha Salah, Sarah Nagaty e Solmaz Nazari – encontravam-se investigadoras, ativistas, artistas, curadoras e produtoras culturais académicas, religiosas e ateias (Fundação Calouste Gulbenkian: O Poder da Palavra III: Mulheres: navegando entre a presença e a ausência).

Assim, uma vez finalizadas as duas primeiras edições dedicadas às palavras (inscrições) e às imagens (ilustrações) nos mundos árabe e persa, partia-se agora da Coleção como um todo para a estudar através de uma perspetiva feminista. Abandonando o enquadramento tradicional das categorias imperiais que sempre enfatizou as dinastias de herança masculina (safávidas, mogóis, otomanas), procurava-se recuperar a voz e o papel das mulheres que criaram estes objetos ou que desempenharam algum tipo de papel na sua existência através da formulação de questões aparentemente simples e nunca contempladas, como: Onde se encontram as mulheres na Galeria do Oriente Islâmico? E como aparecem neste lugar? (Ibid.)

O grupo de mulheres que se entregou ao projeto juntou-se para investigar e contar histórias autobiográficas, criando, desta forma, novas narrativas que davam a ver o lugar, o estatuto e o poder das figuras femininas que iam surgindo a par do processo de investigação dos objetos da coleção. Com uma seleção de vinte peças escolhidas individualmente, por associação a memórias pessoais de cada participante, o grupo explorou temáticas que iam desde a história de Eva e do pecado original, à análise da mulher como artesã ou artista, passando pela Herstory (a «história dela»), ou pelo uso do corpo como narrativa e instrumento de resistência (Ibid.).

O rumo do projeto foi ditado por reuniões de grupo e por um trabalho de interpretação e investigação desenvolvido autonomamente pelas participantes e que foi dando forma e definição ao projeto. Entre outubro de 2021 e abril de 2022, realizaram-se cinco reuniões. Ao longo desses encontros, observaram-se as peças, partilharam-se histórias e discutiram-se possíveis significados e conceitos problematizadores, num processo de reinterpretação e renegociação de significado que permitiu expandir a interpretação curatorial dos objetos.

De acordo com Jessica Hallett e Diana Pereira, o corpus teórico e prático de Shahd Wadi, além de ter consolidado a metodologia de pesquisa, permitiu criar uma exposição com uma perspetiva sustentada e coerente com os propósitos do projeto. Através de um processo que potenciava uma conversa de múltiplas vozes em torno de cada obra, as participantes testemunharam o modo como as histórias e as práticas pessoais podem enriquecer a investigação assente no objeto, e como uma perspetiva feminista pode impulsionar uma releitura completa da narrativa vigente. O resultado da edição foi uma mudança profunda nas práticas de curadoria e mediação de todos os envolvidos, nomeadamente das equipas do Museu, evidenciando o potencial deste projeto não só para a coleção em foco como para a própria instituição.

Na continuação da edição anterior, a intervenção definia-se por dois momentos no circuito expositivo, que se iniciava com uma primeira vitrina, seguindo depois para uma longa vitrina horizontal encimada por quatro vitrinas verticais que a complementavam e completavam o diálogo.

A narrativa era constituída por seis núcleos. Os dois primeiros – «Onde se encontram as mulheres na Galeria do Oriente Islâmico?» e «O Poder das Histórias» – eram expostos na primeira vitrina, num total de cinco peças.

Uma miniatura da Pérsia do final do século XVII ilustrando a arte do livro, um qalyan ou cachimbo de água para tabaco em cerâmica, e o fragmento de uma taça de cerâmica do século XII, com a representação de mulheres tocando instrumentos musicais, respondiam à pergunta formulada no primeiro núcleo, apresentando a imagem de mulheres «orientais» e encantadoras, segundo a categoria vulgarizada pelo olhar europeu desenvolvido ao longo do século XIX (Ibid.).

Para as participantes do projeto, no entanto, um segundo olhar sobre estas peças revela a narrativa poderosa que nelas se encerra. A figura curvilínea representada na miniatura persa apresenta-nos uma mulher provavelmente arménia; e, enquanto a garrafa de vinho que transporta remete para a sua capacidade de usufruir e oferecer prazer, o decote aberto sugere tratar-se também de uma mãe que trabalha, sem por isso deixar de amamentar os seus filhos. A forma do qalyan ou cachimbo de água com orifícios salientes, que sugere os contornos de um peito feminino, é também, pela sua função, um utensílio associado ao prazer, já que permite o ato de fumar, uma atividade igualmente apreciada por mulheres, tal como a música e a dança (Ibid.).

Juntamente com estas peças, duas outras são apresentadas, respondendo ao núcleo que se deteve sobre o poder das histórias. Uma delas é uma miniatura persa do século XV, representando sete mulheres que olham de alto para o rei sassânida Bahram Gur, que as mantém aprisionadas em pavilhões. Estas figuras, que partilham histórias de sabedoria das sete regiões, são contadoras de histórias e representam os sete dias, planetas e cores (Ibid.).

Inspirada nesta miniatura, a artista visual e participante do projeto Leyla Gêdiz (1974) criou uma obra abstrata. Aceite pelo grupo, que a expôs junto do seu modelo, a obra de Leyla parecia sugerir uma abordagem mais holística de ver o mundo, afastando-se do binarismo de género ao reduzir a imagem aos seus componentes básicos através do auxílio de formas puras e das sete cores que representam as sete partes do mundo (Ibid.).

Os quatro núcleos restantes foram expostos ao longo da vitrina composta. Enquanto «Eva, o pecado original?» questionou uma definição unívoca do que é ser mulher, o núcleo dedicado à «Herstory» procurava revelar as mulheres na coleção, muitas vezes relegadas para segundo plano, numa correspondência à sua função no matrimónio. Entre tantas outras figuras anónimas retratadas nos postais da coleção de Gulbenkian, Nevarte, «a esposa de Calouste Gulbenkian», foi uma das personagens destacadas (Ibid.).

«Artesã ou mulher artista?» fixou-se essencialmente no que o Ocidente declara como as artes ditas «menores», remetendo um amplo leque de objetos artísticos produzidos por mulheres para o domínio do «artesanato». Mesmo quando as obras são assinadas por homens, quase sempre as mulheres que efetivamente produziram estes objetos permanecem anónimas, como acontece com o tapete da tribo Beshir, onde a Árvore da Imortalidade, ali representada, é uma romãzeira, símbolo associado ao corpo da mulher, à fertilidade e ao desejo (Ibid.).

Finalmente, no núcleo intitulado «O Corpo», é tratada a forma como as mulheres narram, descobrem, sonham e resistem com os seus corpos. Através de duas toalhas bordadas e uma miniatura ilustrada, remete-se para os momentos passados no hammam, ou banho turco, um espaço onde, dedicando-se às abluções, as mulheres partilhavam histórias e palavras, escusando-se dos limites impostos ao corpo e à relação social (Ibid.).

Perante as restrições trazidas pela pandemia de Covid-19, e no quadro da política de democratização da cultura levada a cabo por várias instituições culturais no país, entre as quais se destaca a Fundação Calouste Gulbenkian, decidiu-se, na senda da edição anterior, desenvolver conteúdos digitais complementares à exposição, incluindo imagens, textos académicos e um podcast, constituído por uma entrevista coletiva na qual se resumiam as interpretações de cada participante sobre cada objeto, por sua vez relacionadas com as escolhas curatoriais. Num período de grandes constrangimentos, o formato virtual acabou por fortalecer a exposição física, prolongando-a e contribuindo para democratizar o acesso a ela (vide Fundação Calouste Gulbenkian \ Projeto «O Poder da Palavra III»).

Estes conteúdos seriam disponibilizados sem termo no website do projeto, com o objetivo de, através deles, o público conseguir não só alargar a sua compreensão da arte do Médio Oriente, mas também perceber o processo de construção da exposição e o cariz participativo que lhe era subjacente (Museu Calouste Gulbenkian \ Quantas vozes tem um museu?, 18 mai. 2020).

A programação complementar desenvolvida no âmbito da exposição foi ampla, compreendendo nomeadamente a videoconferência «Outras formas de pensar e de fazer», orientada por Susana Gomes da Silva. A conversa que daqui resultou, enquadrada no tema «Património Inclusivo e Diversificado», lançado pelas Jornadas Europeias do Património 2021, contou com a participação de Jessica Hallett e Shahd Wadi e centrou-se no «poder da palavra», procurando refletir sobre a grande diversidade de patrimónios existentes e sobre os métodos de que os museus dispõem para um melhor desempenho das suas funções na sociedade atual (Conversa online: Outras formas de pensar e de fazer, 24 set. 2021).

A 8 de março (Dia Internacional da Mulher), o Museu acolheu o colóquio internacional «Arte e Feminismos no Médio Oriente», que procurou refletir sobre o lugar e o papel atual da arte e dos feminismos no Médio Oriente. O colóquio contou com a participação de três curadores internacionais de arte contemporânea – Abdelkader Damani, Rose Issa e Giulia Lamoni – e teve a moderação de Shahd Wadi (Museu Calouste Gulbenkian \ Colóquio. Arte e Feminismos no Médio Oriente).

No workshop teórico-prático «As Mulheres na Galeria do Oriente Islâmico», destinado sobretudo a estudantes e a profissionais da área da cultura, Shahd Wadi recorreu a metodologias criativas para incentivar os participantes a problematizar as obras da coleção do Médio Oriente através de uma perspetiva feminista, recorrendo, por isso, à biografia pessoal como forma de redescobrir a relação com os objetos do Museu (Fundação Calouste Gulbenkian \ Workshop. As Mulheres na Galeria do Oriente Islâmico).

Além da visita e da conversa com as curadoras Jessica Hallett e Shahd Wadi, intitulada «Mulheres nas Artes do Médio Oriente», registaram-se sete visitas para grupos organizados, escolas e outras instituições (Fundação Calouste Gulbenkian \ Visita e Conversa. Mulheres nas Artes do Médio Oriente). De notar que a pandemia de Covid-19 limitou a circulação das pessoas dentro do Museu, assim como os hábitos culturais dos visitantes. Para captar mais público e reforçar o projeto dentro da rede de instituições que «O Poder da Palavra» vinha construindo, procedeu-se a uma comunicação personalizada junto de entidades lisboetas como o Largo Residências da Mouraria, o Centro Ismaili de Lisboa, o restaurante Mezze, entre outros.

A exposição teve um impacto considerável junto das comunidades envolvidas e do público em geral, o que veio dar estabilidade ao projeto na conclusão da sua terceira edição. Entre os meios de comunicação social que trataram o evento, merecem destaque os artigos publicados na revista digital do website Património.pt (29 jan. 2021), na Asian Review of Books (17 jul. 2021) e na Revista Gerador (23 jun. 2022). Reconhecida no contexto internacional de exposições de coleções congéneres, a exposição «O Poder da Palavra III. Mulheres: navegando entre a presença e a ausência» foi distinguida com o prémio «Inovação e Criatividade» da Associação Portuguesa de Museologia, APOM (2022), e foi alvo de menção na palestra «Critical revisitation – Historical narratives», de Margarida Ferra (Acesso Cultura), na Summer School do Museu Calouste Gulbenkian, em setembro de 2021 (Prémios APOM 2022).

Madalena Dornellas Galvão, 2023


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Eventos Paralelos

Oficina / Workshop

As Mulheres na Galeria do Oriente Islâmico

12 mar 2021
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede – Zona de Congressos
Lisboa, Portugal
Colóquio

Arte e Feminismos no Médio Oriente

8 mar 2022
Online
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

À Conversa com a Curadoras. Jessica Hallett e Shahd Wadi

23 jul 2021
Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian – Galerias da Exposição Permanente
Lisboa, Portugal
Encontro

Outras Formas de Pensar e de Fazer

24 set 2021
Online
Lisboa, Portugal
Mesa-redonda / Debate / Conversa

O Poder de Contar Histórias [podcast]


Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Susana Gomes da Silva
Jessica Hallet (ao fundo, à esq.) e Susana Gomes da Silva (ao fundo, à dir.)
Jessica Hallet, Merve Pakyürek, Shahd Wadi, Joana Simões Piedade, Faranaz Keshavjee, Clara Vilar, Sarah Nagaty , Rasha Salah, Susana Gomes da Silva

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, notas internas, agendas, memorandos, entre outros. 2021

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 384506

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2021


Exposições Relacionadas

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