CAM em Movimento. Filipa César, «Piso Térreo», 2006

Programa «CAM em Movimento» / Ciclo «Ecos Latentes»

Segunda mostra do ciclo de vídeos dedicado à vivência e interpretação dos espaços, que remeteu, neste caso, para um dos espaços da Fundação Calouste Gulbenkian. Incluída na programação do «CAM em Movimento», integrou o último ciclo de vídeos do ano exibido no contentor marítimo do Jardim Gulbenkian.

Em 2021, entre confinamentos e o definitivo encerramento do edifício do Centro de Arte Moderna (CAM) – para obras visam ampliar a área expositiva e criar um novo jardim aberto ao público, num projeto do arquiteto Kengo Kuma (Japão, 1954) – o CAM iniciou um «programa fora de portas» intitulado «CAM em Movimento».  

Guiado pelo desejo de uma arte mais democrática e feita para as pessoas, este novo ciclo, gerado num momento de transição, sustentava o seu modelo na espontaneidade, reunindo uma programação capaz de suscitar a curiosidade do público, que se concretizava na invasão da paisagem comum e na tentativa de disrupção do quotidiano na cidade. Através de um exercício de experimentação e reflexão, pretendia-se questionar criticamente a instituição, explorando o leque de possibilidades, papéis e funções a adotar no presente e no futuro, em contexto local, nacional e internacional.  

Para Benjamin Weil, crítico de arte francês e novo diretor do CAM desde dezembro de 2020, estes eram os elementos fundacionais do programa. Nesse sentido, a instituição conseguiria cumprir os seus objetivos se durante o período do fecho conseguisse alargar a sua área de influência para lá do perímetro da Fundação Calouste Gulbenkian, procurando relacionar-se com outros públicos que, por uma ou outra razão, habitualmente se escusam a interagir com a arte (Conversa on-line: Alargar e diversificar geografias, nov. 2021).

Afinal, para o novo diretor do CAM, a obra do edifício oferecia à instituição «uma oportunidade (…) [de] se reinventar e construir um futuro dinâmico, criar e estreitar laços de colaboração com outras áreas da Fundação, e explorar novos modos de se dar a conhecer e de atrair novos públicos» aproximando-os da arte contemporânea (Cruz, Expresso, 20 dez. 2020). Como admitiu numa entrevista dada aos jornalistas da RTP (15 out 2021), a instituição queria aproveitar a situação de exceção para «estender a mão aos visitantes», permitindo que a experiência da arte faça parte da vida quotidiana de todos».

Em outubro de 2021, o programa inaugural do «CAM em Movimento» incluiu várias iniciativas. A escultura de Miguel Palma (1694) Cemiterra-Geraterra (1991) viajou até Loures para ser instalada no Parque Quinta dos Remédios, na Bobadela. Os artistas Didier Fiúza Faustino (1968) e Fernanda Fragateiro (1962) intervieram no exterior das carruagens dos comboios da CP das linhas de Sintra e de Cascais, respetivamente. Vinte e quatro obras da Coleção do Centro de Arte Moderna viajaram até à Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, para a exposição «Coleção de Arte Britânica do CAM». O ilustrador António Jorge Gonçalves iniciou o projeto de desenho para os tapumes que circundavam o perímetro das obras do edifício do CAM, que viria a inaugurar em novembro. Um contentor de carga e transporte de mercadorias foi instalado no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, para servir de sala de projeção de vídeos da Coleção do CAM, ao qual, mais tarde, e até final de 2022, se juntariam outros contentores espalhados pela cidade para acolher novos projetos artísticos site-specific, como o de Rui Toscano na praça do Centro Comercial Fonte Nova, Carlos Bunga na Praça do Comércio e António Pedro no Parque da Bela Vista em Chelas, um projeto desenvolvido em colaboração com os moradores desse bairro.

Para Benjamim Weil, a criação de uma sala de projeção dentro de um contentor marítimo colocado no meio de um jardim, era um acontecimento inusitado. No entanto, seguia a linha do programa «CAM em Movimento», favorecendo o encontro com a arte em locais onde este seria, à partida, inesperado.

Entre outubro de 2021 e o final de 2022, o contentor recebeu quatro ciclos de vídeos. O primeiro entre eles foi dedicado a questões políticas e sociais como a solidão e a guerra, tendo a paisagem e a natureza como cenários de fundo. Contou com obras de João Onofre (1976), Lida Abdul (1973), Pedro Barateiro (1979) e Fernando José Pereira (1961) e curadoria de Patrícia Rosas e Rita Fabiana (Centro de Arte Moderna / Agenda / CAM em Movimento. João Onofre).

O segundo ciclo refletia em torno da condição feminina, da angústia e da solidão, do prazer ou mesmo das questões de género, através das obras de Vasco Araújo (1975), Ana Vidigal (1960), Maria Lusitano (1971) e Gabriel Abrantes (1984) (Centro de Arte Moderna / Agenda / CAM em Movimento. João Onofre).

No terceiro ciclo, intitulado «Ecos Latentes», a curadoria ficou a cargo do grupo 15-25 IMAGINA, um coletivo de jovens integrado no projeto de programação cultural da Gulbenkian. Entre a morte e a transformação, o ciclo trabalhou sobre o desaparecimento da presença humana, a sua desmaterialização e a coexistência entre os vestígios por esta deixados e outras formas de vida (Centro de Arte Moderna / Agenda / CAM em Movimento. Ecos Latentes: presença presença presença).

O quarto e último ciclo dedicou-se ao espaço, numa reflexão sobre a perceção instintiva que temos dele. De acordo com Leonor Nazaré, curadora do ciclo ao qual chamou «O espaço é real?», a ideia que temos do espaço não é objetiva, «mas resulta de um ponto de vista e de uma disposição e propósito interiores» que construímos porque o vivemos, percorremos ou visitamos.

Composto por seis obras exibidas entre setembro de 2022 e janeiro do ano seguinte, o ciclo dividia-se em três partes: uma primeira, que tratou os espaços reais da Fundação Calouste Gulbenkian; uma segunda, sobre abordagens ficcionais da natureza; e uma terceira, dedicada aos mundos paralelos entre o consciente e o inconsciente (Centro de Arte Moderna / Agenda / CAM em Movimento. Emily Wardill).

Vistas à luz de cada uma das artistas, as obras I gave my love a cherry that had no stone (2016) de Emily Wardill e Piso Térreo (2006) de Filipa César, foram realizadas in situ, em dois espaços concretos do interior do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian: o foyer modernista do Grande Auditório e o piso 02, composto por corredores técnicos e áreas de trabalho, respetivamente.

I gave my love a cherry that had no stone (2016) trata o espaço icónico do foyer como «uma paisagem psicológica», explorando a «relação de intensa performatividade» e de «mútua contaminação» entre este e o corpo que nele habita (Emily Wardill. Matt, Black and Rat, 2017, [pp.5;7]).

A obra foi filmada durante a madrugada, e recorreu a um drone e a uma câmara que se movimentam incessantemente para replicar a agitação do corpo do bailarino David Marques que ali deambula e se perde, funde e metamorfoseia, como se tivesse nascido de uma fusão entre uma máquina e um animal. Tomando os contornos de um corpo anímico, o homem — única personagem humana presente no vídeo —, parece não querer ser real. Por contraste, o espaço torna-se detentor de uma organicidade que o «suspende no tempo, entre o passado e o futuro, (…) a noite e o dia, (…) [o] material e o irreal», adquirindo assim qualidades de «quase-personagem» (Ibid., [p.7]). O mesmo acontece à camisa branco-alvo, que se separa do bailarino e ganha vida própria, aproximando-se da «iconografia dos espectros e dos fantasmas» da cultura popular (Ibid.).

O título I gave my love a cherry that had no stone, «que evoca uma canção de embalar», corresponde a um verso de uma canção folk inglesa com origens no século XV também conhecida por “The Riddle song” (em português: “a Canção da adivinha”), e que, recorrendo a trocadilhos e à lógica das adivinhas, fala precisamente de uma série de situações inusitadas, recheadas de detalhes macabros e de um certo tipo de humor característico das lengalengas infantis (Emily Wardill. Matt, Black and Rat, 2017, [p.7]).

Entre o sonho e a vida, a obra I gave my love a cherry that had no stone (2016) escapa a definições. Embora filmado na Fundação, o espaço retratado não é objetivo, pertencendo antes ao espaço psicológico da brincadeira e de um imaginário infantil que permanece nesse lugar “entre” o real e o irreal.

Embora integrada na programação do «CAM em Movimento», amplamente divulgada pelos meios de comunicação social, a divulgação do segundo ciclo de vídeos e da iniciativa em causa, não teve registos críticos na imprensa que a destacassem em particular. Para uma contextualização do «CAM em Movimento» nos meios de comunicação social, destaque para a crítica de Luísa Santos na Contemporânea (Santos, Contemporânea, ed. 01-02-03, 2022), para as menções em artigos nas revistas Time Out (Moreira, Time Out, 19 out. 2021) e Umbigo (Duarte, Umbigo, 3 nov. 2021), e para as peças nos programas de rádio e de televisão Jornal da Noite (SIC, 15 out. 2021), As Horas Extraordinárias (RTP3, 29 out. 2021) e Portugal em Direto (RTP1, 3 nov. 2021).

Dada a natureza e condições do espaço de apresentação dos vídeos — um contentor marítimo de livre circulação — não se realizou relatório de exposição, questionário ao público — no que diz respeito ao grau de satisfação pela visita —, ou contagem do número de visitantes. 

[A versão revista deste texto será brevemente disponibilizada.]

Madalena Dornellas Galvão, 2023


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

Piso Térreo

Filipa César (1975-)

Piso Térreo, Inv. 17IM84


Material Gráfico


Fotografias

Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)
Frame do vídeo de Filipa César, «Piso Térreo», 2006 (Col. CAM, Inv. 17IM84)

Documentação


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