Fernando Lemos

Lisboa, Portugal, 1926 – São Paulo, Brasil, 2019

Fernando Lemos é um artista multidisciplinar que granjeou diferente reconhecimento no país em que nasceu – Portugal – e no país que adoptou, e para o qual decidiu exilar-se voluntariamente com 27 anos de idade (1953) – o Brasil. Em Portugal foi a fotografia de cariz surrealista, produzida pelo artista entre 1949 e 1952, que, redescoberta e sucessivamente exposta apenas depois de 1977, foi valorizada, tendo o autor sido galardoado em 2001 com o Prémio Nacional de Fotografia. No Brasil a fotografia serviu-lhe apenas de cartão de visita para as duas primeiras exposições que fez no ano da sua chegada (Rio de Janeiro e S. Paulo), já que foi efectivamente no desenho que teve neste país o seu primeiro reconhecimento, ao ter-lhe sido atribuído o prémio do Melhor Desenhista Brasileiro, na IV Bienal de S. Paulo (1957).

Filho de mãe rendeira e pai marceneiro-antiquário, Fernando Lemos sempre deu importância às mãos, tendo desde cedo despertado para o desenho, na Escola de Artes Decorativas António Arroio (1938-1943), e para a pintura, ao frequentar o curso livre da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). No Brasil, na década de 50, foi na exploração do desenho e do grafismo que o artista concentrou a sua maior energia, fruto ainda da actividade profissional que tinha desenvolvido em Portugal como artista gráfico, desenhador e impressor de litografia industrial, para, no final da década seguinte, voltar à pintura, que já tinha experimentado nos anos quarenta, porém agora de um modo mais informado e emancipado.

A fotografia apareceu na carreira de Fernando Lemos como uma necessidade da criação de uma identidade, de uma imagem, que, na sua óptica, Portugal não tinha na altura. De facto, no fim da década de 40 e início de 50 a fotografia portuguesa dividia-se entre a foto-reportagem, o pitoresco, e a propaganda, patrocinada pelas publicações do Estado Novo, e a imagem veiculada pelos salões fotográficos, com preocupações de concurso, e que espelhavam a estética dos foto-clubes amadores, entretanto formados. Os artistas politicamente mais activos, organizados em torno do neo-realismo, não tinham na fotografia uma forma de expressão plástica consistente, e a presença desta nas Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946-1956), por eles organizadas, foi esparsa, não tendo constituído um vector importante de intervenção estética.

Fernando Lemos teve a intuição de perceber que havia laços fortes de companheirismo, criatividade, partilha e cumplicidade, entre um corpo de intelectuais, escritores, artistas e gente do teatro, alicerçado num mesmo sentimento de liberdade. Havia uma identidade nova que nascia como um «contra-poder» de um Estado Novo da censura, e que se opunha a esse «modo funcionário de viver», como dizia Alexandre O’Neill. Havia por isso necessidade de fazer o registo dessa geração não como simples retratos fotográficos de estúdio, mas com uma estética que se perfilasse com esse espírito de liberdade e aventura, valores que Fernando Lemos encontrou no Surrealismo. Foi o único a fazê-lo de uma forma consciente e consequente. Porém Lemos nunca se reviu como fotógrafo, antes considerando-se como um «primitivo da fotografia», e afirmando em entrevista: «[…] sou um poeta, artista plástico, responsável e irresponsável por imagens. Fui atrás da fotografia como poderia ter ido atrás da cerâmica […]» .

Essa faceta multidisciplinar ficou aliás bem patente logo na sua primeira exposição (1952), em parceria com Fernando Azevedo e Marcelino Vespeira , em que participou com 20 óleos, 22 guaches, 28 desenhos e 55 fotografias, apresentando-se no catálogo não com os seus dados biográficos, mas como uma poesia da sua autoria, vertente igualmente presente e importante na obra do artista. A polémica provocada por esta exposição (uma casa de móveis de luxo totalmente «remodelada» por um conjunto de artistas jovens, os abaixo assinados do comércio local para fechar a exposição, as filas dos curiosos à volta do quarteirão, os comentários jocosos dos artistas consagrados), levou a uma agitação fora do normal no âmbito da criação artística, tendo sido suficiente para provocar uma atenção redobrada da polícia política que passou a controlar os movimentos e encontros daqueles jovens.

Foi este mau estar e o sentir-se cerceado na sua liberdade, que levou Lemos a equacionar, no ano seguinte, a sua saída de Portugal, país ao qual regressaria de visita só depois do 25 de Abril de 1974. A sua ligação à distância a Portugal manteve-se entretanto através da sua intervenção no periódico Portugal Democrático (1956-1975), criado por exilados políticos portugueses no Brasil, e mais tarde como colaborador – de uma maneira irregular mas logo no seu primeiro número (Fevereiro de 1971) – da revista Colóquio/Artes (“Carta de São Paulo”). A sua expressão plástica também não passou despercebida em Portugal tendo exposto desenho na Galeria de Março em 1954. No ano seguinte voltou novamente ao desenho expondo com Vespeira e Cargaleiro na Galeria Pórtico, em 1959 participou na mostra 50 Artistas Independentes na SNBA, em 1961 integrou a II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1973 participou na Exposição Inaugural Colectiva da Galeria Quadrum e, no mesmo ano, expôs pintura na Galeria Dinastia.

Porém, aquelas imagens fotográficas de uma geração (alguns exilados por circunstâncias políticas) que resistiu como pôde à censura, e que constituía efectivamente uma expressão importante da vanguarda intelectual e artística portuguesa da altura, só puderam ser revistas depois do 25 de Abril de 1974. Foi pela mão do crítico Fernando Pernes que, ao organizar a exposição A Fotografia na Arte Moderna Portuguesa, em 1977, foram recuperados, dos anos cinquenta, as ocultações de Fernando Azevedo e as fotografias de Fernando Lemos. Mais tarde, em 1983, as suas imagens voltaram a Lisboa para integrarem a mostra Refotos – Anos 40, na SNBA. Mas a exposição de referência da sua obra fotográfica foi À Luz da Sombra, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1994, com a edição de um catálogo com grande parte da produção de Lemos e textos críticos. Mais recentemente, e no seguimento de uma retrospectiva da sua obra fotográfica na Pinacoteca de S. Paulo denominada À Sombra da Luz – À Luz da Sombra (2004), foi organizada em Sintra, no Museu de Arte Moderna – Colecção Berardo, a exposição Fernando Lemos e o Surrealismo (2005), que integrou algumas peças do movimento surrealista português pertencentes à Fundação Cupertino de Miranda, obras de artistas internacionais ligados a este movimento pertencentes à Colecção Berardo, e uma mostra substantiva da obra fotográfica de Fernando Lemos.

De permeio ao seu labor artístico ficou a criação, ainda em Lisboa, da Galeria de Março (1952-1954), em parceria com José-Augusto França, as encomendas da decoração de pavilhões da representação brasileira em feiras internacionais (Nova Iorque – 1957, Tóquio – 1963), a actividade docente na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de S. Paulo, a presidência da Associação Brasileira de Design Industrial, e a criação de uma editora de literatura infantil em 1963 (Giroflé), entre outras actividades. Em 2019 Fernando Lemos vivia em S. Paulo e continuava a sua actividade artística com o mesmo espírito multidisciplinar que sempre o orientou afirmando aos 82 anos, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo: «Escrevo como se fizesse fotografia, faço fotografia como se pintasse, pinto como se estivesse fazendo desenho […] As pessoas têm dificuldade de me encaixar em algo, não sabem onde me colocar.»

 

José Oliveira

Outubro de 2010

Atualização em 09 agosto 2023

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