Um auto-retrato é sempre uma forma de revelação. Por definição revelação do próprio, tanto espelha aquele que representa como codifica a presença deste em práticas operativas que se inscrevem em lógicas plásticas conceptuais, ou de subversão da própria representação.
Dos dois auto-retratos de Fernando Lemos (o outro é Luz do Olhar), é este aquele em que a dimensão onírica e de encenação estão mais presentes. Numa primeira leitura, aparentemente sai da cabeça de Fernando Lemos uma nuvem de fumo em que flutua uma carta de Tarot. No entanto, é nos detalhes, e na aproximação à imagem, que se descobrem outras realidades: a teatralidade de um rosto, iluminado por um candeeiro seguro pelo próprio; o olhar que se desvia do observador; o fumo, que é uma «cabeleira» de lã de vidro; o chão que serve de parede de fundo à imagem; ou a lâmina de uma faca que surge ao lado da carta de Tarot (o Arcano XII do Tarot de Marselha – Le Pendu), com uma segunda imagem da carta em espelho.
A fabricação desta imagem, que Lemos disse que gostaria de ter como fotografia no seu passaporte, só é possível através da realização de múltiplas exposições sobre o mesmo negativo. Deste modo, permite variadas leituras, das quais a do sentido de sacrifício – tradicionalmente associado ao simbolismo da carta de Tarot escolhida por Lemos – não pode ser excluída. Outra leitura, mais diretamente associável ao autor, é a de uma situação pendurada pelos pés, de um país às avessas que politicamente condenava a sua elite cultural a subterfúgios de leituras dissimuladas. Neste caso, Lemos terá achado no surrealismo um modo particular de enunciar estas e outras questões.
JO
Maio de 2010