Engawa

Temporada de arte contemporânea japonesa

Intitulada Engawa, esta programação parte do conceito que está na base do projeto do arquiteto japonês Kengo Kuma para o edifício do CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian, que designa um espaço de passagem, simultaneamente interior e exterior, característico das casas tradicionais japonesas.

Reunindo diferentes colaborações com artistas e instituições culturais na cidade de Lisboa, a temporada traz a Lisboa um conjunto de criadores do Japão e da diáspora japonesa, muitos destes pela primeira vez em Portugal.

O seu primeiro momento decorreu entre 20 e 23 de julho de 2023, mês em que se comemorou o 40.º aniversário do CAM, com três eventos muito distintos que aconteceram na Fundação Gulbenkian e noutros espaços da cidade de Lisboa. Do programa fizeram parte uma instalação em movimento criada pelo coletivo artístico 目[mé], um concerto do artista visual e sonoro Ryoji Ikeda – com a colaboração do ensemble francês Les Percussions de Strasbourg –, e uma performance/paisagem comestível da artista Lei Saito, criadora do conceito de «cozinha existencial».

Ainda em 2023, o ano em que se assinalou também o 480.º aniversário das relações entre Portugal e o Japão, apresentaram-se mais dois momentos da temporada, em setembro e em novembro.

FluxFest, o segundo momento de Engawa, foi um tributo à vertente japonesa do movimento internacional Fluxus, fundado na década de 1960, com um programa que homenageava Mieko Shiomi, figura-chave no desenvolvimento do Fluxus. Entre 8 e 10 de setembro, o CAM programou um documentário, uma conversa e uma série de performances com a participação de Christian Marclay, compositor e artista visual, Ami Yamasaki, vocalista e artista multimédia, e o músico shō Ko Ishikawa.

O terceiro momento da temporada de arte contemporânea japonesa decorreu entre os dias 11 e 19 de novembro, com uma intervenção do coletivo Chim↑Pom from Smappa!Group (CPfSG) no bairro de Marvila, em Lisboa. Coproduzido e coapresentado pela Fundação Gulbenkian e pelo Alkantara, como parte do Alkantara Festival 2023, o projeto foi desenvolvido em colaboração com associações e grupos comunitários locais, como a Kriativu, a 4 Crescente e o estúdio ETC. Contou também com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. 

Em setembro de 2024, a temporada Engawa regressa para a reabertura do edifício do CAM, ocupando vários dos seus espaços e o jardim com uma programação vasta e variada de exposições, performances, concertos, sessões de poesia, debates e outras práticas artísticas. Do programa fazem parte os projetos expositivos de Go Watanabe e Yasuhiro Morinaga. 

Curadoria de Emmanuelle de Montgazon, com Rita Fabiana.


Texto da curadora

O projeto arquitetónico de Kengo Kuma para o CAM – Centro de Arte Moderna é uma referência ao conceito de engawa [縁側], um espaço de passagem nas casas tradicionais japonesas que não é considerado nem interior nem exterior. Embora o engawa da casa tradicional japonesa, tão central nos filmes de Yasujiro Ozu, seja frequentemente ignorado na atualidade, foi recentemente usado para evocar múltiplos espaços relacionais fora do espaço doméstico.

Assim, o engawa pode ser visto como metáfora para um «espaço liminar», tendo encontrado uma forte ressonância na década de 1980, no Japão e no mundo ocidental, através do conceito de ma [間]. Esse «espaço liminar» facilitou um diálogo comum entre os movimentos artísticos multidisciplinares do Japão no período pós-guerra, dos quais emergiram múltiplas narrativas paralelas que questionam as ficções da história oficial que informava a identidade japonesa.

Engawa constituiu-se, então, como o lugar tangível das gerações do período Heisei (1989-2019), marcado pela rutura da bolha económica e pelo terramoto de Hanshin-Awaji (1995), dois eventos que, em conjunto, representam um ponto de viragem histórico na sociedade japonesa. As suas consequências político-sociais afetaram memórias e mitos, bem como a relação entre a esfera privada e pública. Nas palavras de Timothy Morton, cujo livro O Pensamento Ecológico propõe uma aproximação das noções do estruturalismo e do budismo, trata-se de «observar o que está a mudar perante os nossos olhos, lenta e coletivamente, e de como podemos partilhá-lo com o outro»*. Este pensamento ecológico encontra uma ressonância particularmente forte no Japão. O emaranhamento, nas suas infinitas ligações e diferenças infinitesimais, encontra a sua origem no espaço íntimo, na assim chamada «dividualidade» do indivíduo, o que pode ser traduzido como a multiplicidade do ser correspondente a cada uma das relações que cada entidade (humana ou não-humana) cria. Por outras palavras, levando à confrontação com mundos múltiplos tão habilmente descrita por Keiichiro Hirano**.

Não será assim coincidência que o «Todo-Mundo» de Édouard Glissant tenha conquistado tanta importância no Japão nos últimos vinte anos. O «pensamento de arquipélago», conceito desenvolvido por Glissant, oferece a possibilidade de quebrar o impasse insular e reafirmar uma cultura profundamente multifacetada e em permanente metamorfose: acolhe a experiência subjetiva, redefine a questão da identidade e das fronteiras, abraça o feminino, a vulnerabilidade, a fragilidade e a incerteza, e amplifica a nossa perceção do mundo. Foi a partir desta área de interconectividade ecológica e digital que surgiram novas práticas artísticas inspiradas por um regresso a noções culturais de animismo e pela sua inclusão numa sociedade tecnológica em forte desenvolvimento, servindo de suporte a uma nova geração que emergiu após o desastre de Fukushima, questionando a tangibilidade da nossa vida enquanto seres humanos.

A temporada japonesa no CAM apresentará estes tópicos através de exposições de arte temporal e projetos site-specific, bem como de obras e eventos especificamente encomendados para esta ocasião. Num profundo processo colaborativo com o contexto multicultural de Lisboa e de Portugal, a temporada tem como objetivo evidenciar de que modo as inter-relações entre perceção e emoção criam outras realidades, articuladas com situações sociais e políticas nelas incorporadas, para sugerir poderosas transformações.

* Timothy Morton, The Ecological Thought. Massachusetts: Harvard University Press, 2010 [Edição brasileira: Timothy Morton, O Pensamento Ecológico. São Paulo: Quina Editora, 2023].

** Keiichiro Hirano, La dernière métamorphose. Paris: Philippe Picquier, 2007.


Emmanuelle de Montgazon

Mestre em História da Arte Contemporânea, Emmanuelle de Montgazon trabalha sobre abordagens artísticas abertas e transversais que unem diferentes formas de arte, mantendo ligações privilegiadas com o Japão. Entre 1997 e 2006 foi nomeada adida cultural na Embaixada de França em Tóquio e em Nova Iorque. Desde 2012 é diretora do Estúdio de Ryoji Ikeda em Paris e Quioto e Conselheira da Fundação de Arte de Odawara, fundada pelo artista Hiroshi Sugimoto 


Rita Fabiana

Rita Fabiana é curadora desde 2006, incorporando na sua prática projetos participativos, interdisciplinares e experimentais centrados nos processos de relação institucionais, na memória/história, no storytelling e nas identidades/subjetividades. Em 2011, juntou-se à equipa do CAM como curadora e responsável pelas coleções de escultura e instalação. Entre 2016 e 2021 foi coordenadora de programação no Museu Calouste Gulbenkian. Atualmente, é coordenadora de Live Arts no CAM. É mestre em História da Arte (Université Paris I – Panthéon-Sorbonne) e pós-graduada em Estudos Curatoriais (FBAUL).

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