Juntar as peças do puzzle – o trabalho de um investigador na ciência fundamental

Considera que a teoria da relatividade de Einstein ou a forma como as bactérias combatem uma infeção são temas interessantes, mas pouco relevantes? Não se precipite!
18 ago 2022

Embora possa nunca ter imaginado – os cientistas por trás destas descobertas decerto também não, na altura –, mas a precisão do GPS no seu telemóvel assenta na teoria de Einstein e o antigo mecanismo de defesa usado pelas bactérias inspirou terapias genéticas que são agora usadas no tratamento do cancro. Isto para nomear apenas algumas das descobertas científicas que tiveram origem na curiosidade.

Os cientistas têm, desde sempre, trabalhado para preencher lacunas no conhecimento, ao colocar perguntas essenciais. Mas, contrariamente àqueles que trabalham na investigação aplicada, os cientistas que se dedicam à investigação fundamental, ou básica, não são movidos pelas aplicações práticas das suas descobertas, mas sim pela vontade de compreender o mundo à sua volta. Apesar deste tipo de investigação ser a força motriz por trás de diversos avanços tecnológicos, as suas aplicações podem levar décadas, senão séculos, a ver a luz do dia. E muitas vezes as descobertas não conduzem a grandes avanços para além do progresso do conhecimento em si.    

Por estes motivos, a relevância da ciência fundamental é frequentemente questionada. Alguns argumentam que as questões colocadas por curiosidade são insignificantes para a sociedade, uma vez que não oferecem soluções rápidas para problemas urgentes. No entanto, devemos ter em mente que o avanço científico não é um mero acaso, mas sim algo que se vai construindo com vários anos de descobertas. Ao longo do tempo, vários investigadores foram desvendando peças-chave de evidência científica, o que contribuiu para a integridade do nosso conhecimento atual. Aos poucos e poucos, novas peças foram sendo adicionadas ao puzzle, permitindo que os cientistas fossem tendo uma visão cada vez mais clara da realidade, o que, por sua vez, inspirou novas descobertas e aplicações. Se algumas peças essenciais, ou seja, de conhecimento fundamental, fossem removidas deste puzzle, os cientistas perderiam de vista esta imagem abrangente. Isto é, o nosso conceito atual de ciência e tecnologia desapareceria.

Uma peça essencial neste puzzle é a estrutura do ADN. Esta longa molécula é a base da vida: fornece as instruções necessárias para o desenvolvimento, a função e a reprodução de todos os seres vivos. Se a sua estrutura não tivesse sido desvendada na década de 1950, a nossa compreensão atual das doenças genéticas e da hereditariedade desapareceria. Para além disso, as tecnologias que dependem da manipulação do ADN, como a produção de insulina e a terapia genética, não existiriam. Ou seja, se este pedaço de conhecimento científico fosse eliminado, os cientistas não teriam sequer avistado estas possibilidades.

Um puzzle sem limites

A compreensão atual dos sistemas vivos e do mundo é bastante surpreendente, mas ainda há muitos mistérios por resolver. Novas respostas inspiram novas questões, e é por isso que, apesar de ter sido descoberto há mais de 100 anos, ainda há muito por descobrir sobre o ADN.

As cadeias longas de ADN organizam-se em estruturas compactas nas nossas células – os cromossomas. Estas estruturas assemelham-se a novelos de lã que se desenrolam quando a informação genética é lida. Esta informação pode então ser transcrita em instruções para sintetizar proteínas que são necessárias ao funcionamento da célula. Quando as células se dividem, para assegurar o desenvolvimento do organismo, ou para substituir células mortas ou danificadas, estas têm que distribuir o ADN de forma equitativa, garantindo que nenhuma informação genética é perdida. Mas ainda não se compreende como as células são capazes de fazer isto de forma tão rigorosa.

Esta “dança de cromossomas” é o foco da investigação de Raquel Oliveira, investigadora principal do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) que foi recentemente nomeada Membro da EMBO em reconhecimento do seu contributo para a área das ciências da vida. O fascínio de Raquel pelo processo de divisão celular (mitose) surgiu durante o seu doutoramento em Biologia Experimental e Biomedicina. Estava a observar o processo de mitose ao microscópio quando experienciou a sensação de “amor à primeira vista”. Desde então, Raquel tem dedicado a sua carreira a “estudar a divisão celular, em particular, as mudanças que ocorrem na estrutura dos cromossomas para garantir uma segregação adequada do ADN”. Depois do seu pós-doutoramento na Universidade de Oxford, regressou a Portugal e estabeleceu o Laboratório de Dinâmica dos Cromossomas no IGC, em 2012. O ambiente multidisciplinar e a oportunidade de comunicar abertamente com outros cientistas foram decisivos no seu regresso. Isso e, claro, o desejo de contribuir para o desenvolvimento da ciência no seu próprio país.

Tendo recebido a primeira bolsa do European Research Council (ERC) em 2014, a equipa liderada por Raquel Oliveira tinha em mãos as ferramentas necessárias para começar a explorar uma infinidade de mistérios em torno da arquitetura dos cromossomas e da sua influência na mitose e na estabilidade do genoma. Os investigadores colocaram várias questões, desde a forma como o ADN difuso na célula se organiza rapidamente em cromossomas, até como problemas neste processo podem afetar a estabilidade do genoma e o desenvolvimento do organismo. Apesar destes processos já serem observados ao microscópio há mais de um século, como ocorrem estas mudanças drásticas na forma dos cromossomas é ainda um mistério, explicou Raquel.

 

“E então?”

Só depois de estudar os mecanismos por trás da dinâmica dos cromossomas a um nível básico é que podemos abordar as consequências do seu mau funcionamento. A divisão celular “é um processo tão fundamental que tem, claro, implicações em muitas doenças”, afirma Raquel.

Ao estudar como as células, os tecidos e os organismos lidam com os erros mitóticos, o grupo poderá vir a identificar novas causas para o aparecimento de aneuploidias – a presença de um número anormal de cromossomas nas células. A aneuploidia tem consequências graves: na maioria dos casos não é compatível com a vida e, quando é, está geralmente associada a doenças, como distúrbios do desenvolvimento, infertilidade e cancro. Sem compreender como a informação genética é devidamente segregada, é bastante difícil entender como ocorrem as falhas nesse processo e como corrigi-las. “É o conhecimento fundamental que nos permite pensar em novas abordagens terapêuticas e em novas ferramentas de diagnóstico”, relembra a investigadora.

O seu estudo mais recente com Sara Carvalhal, antiga investigadora no laboratório de Raquel e agora líder de grupo júnior no Algarve Biomedical Center Research Institute, é um claro exemplo disto. Usando moscas-da-fruta como modelo de estudo, descobriram que a perda parcial da coesina, a “cola molecular” que mantém os cromossomos unidos, levava a movimentos erróneos e problemas inesperados na mitose. Com este conhecimento fundamental, Sara, a primeira autora deste estudo, questionou se algo semelhante se passava em doenças humanas relacionadas com problemas nesta “cola” dos cromossomas. Então, trocou as moscas-da-fruta por células humanas de pacientes para estudar o impacto dos erros na divisão celular e da perda de coesão cromossómica no desenvolvimento. E acabou por descobrir muito mais do que esperava. As cientistas ficaram surpresas ao descobrir que dois dos pacientes envolvidos no estudo tinham mutações em ambas as cópias de um gene crítico para a divisão celular – BUB1 –, o que até então se pensava ser incompatível com a vida. Seguidamente, exploraram como as variantes patológicas desse gene afetavam a divisão celular e como os defeitos mitóticos resultantes poderiam estar na origem de um distúrbio raro do neurodesenvolvimento apresentado pelos pacientes. Notavelmente, o que descobriram no laboratório poderá evitar o diagnóstico incorreto de pacientes com as mesmas mutações no futuro, com consequências diretas para o seu tratamento, prognóstico e acompanhamento clínico. E tudo começou com uma questão que foi colocada apenas por curiosidade.

Claro que se torna mais fácil explicar a relevância do trabalho de Raquel quando pensamos em todas as aplicações que este poderá vir a ter no futuro. Mas nem toda a investigação fundamental tem essa aplicabilidade óbvia ao virar da esquina. A verdade é que o conhecimento que se produz atualmente pode, a longo prazo, “tornar-se importante para a humanidade (…) por motivos imprevistos”. Existem vários exemplos de descobertas fundamentais que foram feitas “sem qualquer expectativa” de benefícios práticos e “que hoje são usadas na clínica”, realça a investigadora. Um exemplo disto é a descoberta de que as células cancerígenas se dividem a uma taxa mais elevada do que as células normais. Com base nisto, os cientistas estão agora a desenvolver estratégias anticancerígenas que eliminam seletivamente as células em divisão, explicou Raquel.

Mas o valor da ciência fundamental vai para além da sua eventual aplicabilidade. Nas palavras de Isaac Newton, “se vi mais longe, foi por estar aos ombros de gigantes”, o que retrata que os cientistas só podem fazer novas descobertas ao trabalhar à luz daquelas feitas pelos seus pares. Todas as peças do puzzle são necessárias para criar uma imagem inteligível, e até as perguntas mais simples podem avançar a nossa compreensão e inspirar uma revolução científica.

 

Desafiar os limites do conhecimento

Para além da curiosidade, o ambiente interdisciplinar e as tecnologias de ponta são fundamentais para desafiar os limites do conhecimento.

Estar num ambiente estimulante e interdisciplinar é “absolutamente crucial” para que os grupos atinjam os seus objetivos. A investigadora afirma que a própria configuração dos laboratórios do instituto promove a interação e a discussão, tornando o IGC o lugar perfeito para que surjam novas ideias. De facto, uma parte substancial do trabalho conduzido atualmente no laboratório de Raquel foi bastante influenciada por uma colaboração frutuosa e interdisciplinar com Diogo Castro, antigo líder de grupo no IGC e agora investigador principal no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3s). Na altura, as equipas uniram forças para compreender como a expressão dos genes é regulada quando os neurónios se formam. Os seus resultados revelaram que, surpreendentemente, alguns fatores de transcrição, que induzem a expressão de genes específicos, permanecem ligados aos cromossomas durante a divisão celular. Os investigadores descobriram ainda que alguns desses fatores não permanecem ligados aos cromossomas para promover a expressão de genes ao longo da divisão celular, mas sim logo no seu final. Este mecanismo poderá garantir “que alguns genes são reativados antes dos outros”, com consequências para o destino das células, por exemplo, durante o neurodesenvolvimento, explica Raquel. Esta descoberta veio desafiar dogmas bem estabelecidos, uma vez que durante muitos anos se assumiu “que toda a maquinaria de transcrição era retirada dos cromossomas quando as células entravam em mitose”.

Simultaneamente, Raquel estava a colaborar com Rui Martinho, também um antigo investigador principal no instituto e agora na Universidade de Aveiro. Procuravam pelos genes que permitem aos cromossomas permanecer “colados” quando encontraram algo que parecia estar envolvido no silenciamento da transcrição. Em última análise, estas duas linhas independentes de investigação despertaram a curiosidade da equipa de Raquel, levando-a a investigar os mecanismos moleculares por trás deste processo pouco explorado: o silenciamento dos cromossomas durante a divisão celular. Quando as células não se encontram em divisão, o seu ADN comporta-se “como um livro aberto, para que a célula possa ler a informação genética e então transcrever e expressar todos os genes necessários”. Mas quando as células se dividem, “é quase como se o livro se fechasse e a maior parte da transcrição fosse interrompida”, explica a investigadora. Embora isto seja um fenómeno bem-estabelecido da biologia celular, ainda não se sabe bem como isto acontece e porquê. Este é agora o foco da sua mais recente bolsa ERC, atribuída no final de 2020.

Mas estudar a estrutura dos cromossomas ou a inativação da transcrição no decorrer da mitose não é fácil, visto que estes processos são essenciais para as células. Para desvendar o papel dos diferentes intervenientes, os cientistas precisam de garantir que estes apenas são removidos da célula no momento da mitose. O laboratório de Raquel Oliveira criou um método que permite ligar e desligar proteínas “numa questão de minutos”. Este sistema pode ser aplicado nas moscas-da-fruta, permitindo aos investigadores entender as consequências funcionais da desativação de certas proteínas num organismo em desenvolvimento, explica Raquel.

A presença de Unidades de Apoio Científico no IGC facilita bastante a implementação de novas técnicas e de protocolos como este. Raquel garante que o seu trabalho “não teria fluido tão facilmente” se não fossem estes serviços especializados que garantem, entre outras coisas, a manutenção das moscas-da-fruta e a análise quantitativa de imagens.

Na verdade, a disponibilidade de tecnologias é muitas vezes uma limitação para o desenvolvimento científico, observa a investigadora. “As perguntas estão lá: todos queremos saber como tratar o cancro, todos queremos saber como prevenir a diabetes, mas o conhecimento que temos é, no momento, limitado pela tecnologia”. Raquel acredita que avanços nesta área estão para breve, o que terá impacto numa “vasta gama de áreas científicas”.

Curiosidade, imaginação, conhecimento científico e trabalho em equipa são, sem dúvida, algumas das ferramentas mais importantes para prosperar na ciência fundamental. Mas não nos podemos esquecer de um componente imprescindível para este kit de ferramentas: o financiamento. Apesar de ser extremamente essencial gerar conhecimento, aplicável ou não, o potencial de translação e o impacto dos projetos de investigação ainda são alguns dos pré-requisitos para a obtenção de financiamento. À medida que a sociedade se concentra cada vez mais em objetivos a curto prazo, vamos perdendo de vista descobertas importantes que podem levar a grandes avanços no futuro. Os constantes cortes no financiamento na ciência fundamental é algo com que Raquel, como investigadora nesta área, está “muito preocupada”: se não conseguirmos “explorar ideias” estaremos “a restringir a criação de conhecimento”. Embora sejam necessários avanços práticos que resolvam rapidamente os desafios globais da sociedade, sem a ciência básica não teríamos os alicerces para a investigação aplicada, lembra. “É chamada fundamental por uma razão: é realmente a base para tudo”.

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