Rins saudáveis podem ser o segredo para sobreviver à malária

Investigadores do IGC desvendam um novo mecanismo que permite escapar a complicações graves da doença
13 fev 2023

Têm apenas dez cm de comprimento, mas podem mesmo ser o fator decisivo entre a vida e a morte na malária. Ao tomar as rédeas da reciclagem do ferro, os rins impedem que o corpo sucumba ao parasita invasor, revelam os investigadores da Gulbenkian. Publicada na revista Cell Reports, a descoberta tem implicações importantes para o prognóstico dos doentes infetados e para o desenvolvimento de terapêuticas dirigidas, o que poderá vir a colocar um travão no número de mortes por malária.

As complicações mais graves e potencialmente letais da malária, como a insuficiência renal aguda, surgem quando o parasita Plasmodium, transmitido pela picada de mosquitos, invade os glóbulos vermelhos do hospedeiro. À medida que o parasita se multiplica exponencialmente, destrói estas células e causa anemia, debilitando a saúde do hospedeiro. Em condições normais, são os macrófagos, células especializadas do sistema imunitário, que reciclam o ferro libertado dos glóbulos vermelhos deteriorados ou envelhecidos para formar novas células. Mas este sistema é facilmente saturado quando há uma destruição em massa, como na malária. Na incapacidade de repor os glóbulos vermelhos, o doente desenvolve anemia grave e fica em maior risco de morte.

Dados do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) mostram que quando ocorrem em simultâneo, a insuficiência renal aguda e a anemia criam uma sinergia que aumenta consideravelmente o risco de morte dos doentes. Estas conclusões vêm diretas do Hospital Josina Machel-Maria Pia, em Angola, onde a malária é a principal causa de morte. Quatrocentas pessoas internadas com esta doença foram incluídas neste estudo que resultou de uma colaboração com Euclides Sacomboio, um investigador angolano que se juntou ao grupo de Inflamação no IGC através do programa “ENVOLVE Ciência PALOP” da Gulbenkian.

O laboratório, liderado por Miguel Soares, estuda o metabolismo do ferro em modelos animais da malária há vários anos. “É fácil de perceber, pela cor, que os ratinhos que estudamos eliminam os produtos da destruição dos glóbulos vermelhos pela urina”, observa Susana Ramos, investigadora que inspirou e coliderou o mais recente trabalho do grupo. “Fomos percebendo que estes animais excretavam também muito ferro na urina, mas não podiam estar a eliminá-lo na totalidade, até porque os ratinhos doentes não comem o suficiente para manter níveis adequados deste elemento essencial. Então pensámos que deveria existir uma população de células no rim que reabsorve e recicla o ferro da urina, para manter algum nível de normalidade nestes animais anémicos”, explica. Num estudo anterior, esta população conhecida como células epiteliais do túbulo proximal renal, já tinha revelado a sua importância para eliminar produtos tóxicos que promovem formas graves da malária.

Neste novo estudo, esta população celular voltou a dar provas do seu incrível papel na prevenção da mortalidade por formas graves de malária. Qian Wu, o primeiro autor do estudo, descobriu que estas células do rim alteram o seu programa genético de tal modo que passam a ser capazes de absorver e armazenar o ferro. Mais tarde, devolvem-no à circulação, permitindo que novos glóbulos vermelhos se formem. “Não estávamos à espera de que os rins tivessem um papel tão imediato para reestabelecer a formação destas células do sangue”, confessa o investigador.

Ao tornar-se o principal órgão responsável pelo armazenamento e redistribuição do ferro na malária, os rins são determinantes para o desfecho da doença. Para perceber as implicações deste mecanismo, a Unidade de Transgénicos do instituto criou ratinhos nos quais a ferroportina, o gene que permite às células renais exportar o ferro, foi eliminado. As observações foram surpreendentes: os animais desenvolveram anemia grave e morreram, um exemplo claro de como um simples mecanismo celular pode ter efeitos profundos em todo o corpo. Ao restabelecer o circuito do ferro e o número de glóbulos vermelhos, os rins colocam um travão na anemia, garantindo que os diferentes órgãos recebem oxigénio e continuam a funcionar quando o hospedeiro é infetado. “Esta descoberta é uma clara demonstração de como o metabolismo de um hospedeiro infetado pode ser modificado para determinar o desfecho de uma doença infeciosa, neste caso a malária”, explica o investigador principal Miguel Soares.

Estas descobertas podem ser importantes para fazer prognóstico dos doentes infetados com mais segurança, e de forma personalizada. “Pessoas com algumas mutações genéticas neste exportador do ferro nas células do rim têm uma menor probabilidade de desenvolver anemia grave e de morrer”, esclarece Miguel. Por outro lado, se as células renais não conseguem exportar o ferro que absorvem, os doentes podem tornar-se mais suscetíveis à insuficiência renal aguda e à anemia. Os investigadores podem agora também começar a pensar em estratégias terapêuticas dirigidas a esta via metabólica.

Este estudo foi desenvolvido pelo Instituto Gulbenkian de Ciência em colaboração com o Instituto de Ciências de Saúde, Angola, a Medical University of Innsbruck, na Áustria, o Paris Cardiovascular Center (PARCC), em França, e o The First Affiliated Hospital, Zhejiang University School of Medicine, na China. O trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, os Oeiras-ERC Frontier Research Incentive Awards, a Fundação La Caixa e apoiado pelo programa “ENVOLVE Ciência PALOP” da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

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