Desvendar a misteriosa floresta que temos dentro de nós

18 nov 2021

Tornam-se parte de nós assim que vimos ao mundo e acompanham-nos durante toda a nossa vida. São milhares as bactérias que habitam o ser humano, estabelecendo com ele, o seu hospedeiro, uma relação de interdependência. Elas precisam de nós e nós delas. Parece estranho falar assim de bactérias, uma vez que a maior parte das vezes que nos referimos a elas não é por um motivo assim tão bom. No entanto, nem todas as bactérias causam doenças. Algumas podem até ser a razão pela qual algumas doenças não têm hipóteses de se desenvolverem.

Enquanto as bactérias patogénicas, como a Legionella ou a Salmonella, são virulentas, ou seja, têm a capacidade de causar desequilíbrios graves no nosso organismo e levar até à morte, as bactérias comensais vivem em harmonia com o ser humano, chegando a ser uma barreira de proteção contra as patogénicas. E é nos intestinos que habita uma das mais variadas e importantes comunidades de bactérias comensais. O seu nome é microbiota. “Penso nesta comunidade como uma floresta com diferentes espécies”, simplifica Karina Xavier, investigadora principal do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), especialista em microbiologia e responsável pelo grupo de trabalho dedicado à microbiota. “Temos quase o mesmo número de bactérias no nosso intestino como temos de células humanas no nosso corpo. E evoluímos durante milhares de anos com esta comunidade.”

Afinal quais são as funções da microbiota? Para além de estas bactérias servirem de barreira protetora à entrada de patogénicas, têm funções tão importantes como garantir nutrientes. “Consumimos vegetais e fibras e retiramos muitos benefícios deles, mas se não tivéssemos bactérias não os íamos conseguir absorver. São essenciais na produção de vitaminas, compostos que nós não conseguimos produzir”, aponta a investigadora. “São ainda importantes para estimular o sistema imune, para combater infeções.” Por tudo isto, a comunidade científica está a aperceber-se que preservar a microbiota tem um impacto fortíssimo na nossa saúde e na forma como vivemos e podemos viver melhor.

“Estamos a assistir a uma revolução da microbiota. Há cada vez mais investigadores interessados neste assunto”, aponta a investigadora. Haverá dois motivos por detrás desta revolução, sendo o primeiro o melhoramento das tecnologias de identificação de bactérias. “Há dez anos, tínhamos de cultivar as bactérias para as estudar. Agora só precisamos de extrair o ADN de um órgão ou do ambiente, perceber que bactérias estão lá e usá-las”, afirma Karina Xavier. O segundo motivo será o investimento que tem sido feito pelos grupos de trabalho na cooperação e entreajuda. “De dois em dois anos organizamos no IGC uma escola de verão com investigadores internacionais onde falamos sobre os avanços na área e construir pontes”, diz ainda a investigadora. E qual é o papel que o grupo de Karina tem dado para este assunto? É impossível sublinhar apenas um.

 

Uma conversa sem fim

O percurso académico de Karina Xavier começou na Faculdade de Ciências de Lisboa, onde se formou em Bioquímica. Avançou para um doutoramento no Instituto de Tecnologia Química e Biológica – NOVA, onde estudou o metabolismo de hidratos de carbono em microrganismos hipertermófilos, mas a rendeu-se às bactérias quando avançou para pós-doutoramento na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. “Nos anos 2000 fui a uma convenção e conheci uma professora (Bonnie Bassler) que estava a trabalhar num assunto que na altura era muito novo: como é que as bactérias conseguem comunicar entre si por sinais químicos”, conta Karina Xavier.

Até então pensava-se que as bactérias, sendo seres unicelulares, não tinham capacidade de atuação em grupo. No entanto, uma bactéria marinha chamada Vibrio fischeri veio mudar o paradigma. Esta vive em simbiose com as lulas e é capaz de produzir luz para que as suas hospedeiras não produzam sombra ao nadar e possam escapar aos predadores. No entanto, só quando há bactérias em determinado número é que a luz é produzida, uma vez que, por exemplo, uma ou duas bactérias a produzirem luz não seriam suficientes para eliminar a sombra. Tornava-se até contraproducente que o fizessem.

Observando este comportamento, que parecia mais de grupo do que individual, o grupo de cientistas onde se incluía a investigadora portuguesa estudou a questão mais a fundo e percebeu que este era, de facto, um comportamento em comunidade. Além disso, viram que este não era um mecanismo exclusivo deste tipo de bactérias: todas as bactérias, comensais e patogénicas, conseguem comunicar entre si. “O que faz cada bactéria com essa informação difere de umas para as outras. Por exemplo, uma bactéria patogénica quando invade o hospedeiro não vai começar a produzir toxinas porque está em baixo número e não seria produtivo. Então multiplica-se silenciosamente e só quando percebe que está em alto número é que ataca, produzindo toxinas”, clarifica Karina Xavier. É assim que garantem que a invasão será eficaz.

A esta capacidade de produção e receção de sinais chamamos quorum sensing, ou deteção de quórum em português. “Os sinais químicos são parecidos com as feromonas ou os odores que nós produzimos e permitem à bactéria saber se está numa comunidade com muita ou pouca densidade de outras bactérias”, aponta Karina Xavier, comparando este mecanismo com uma situação que nos acontece muitas vezes a nós, seres humanos. “Se estivermos num autocarro com os olhos fechados conseguimos perceber se está cheio ou vazio pelos cheiros, pelos sons…” As bactérias estão assim equipadas com emissores e recetores de moléculas que lhes permitem produzir, receber e responder a sinais, encadeando uma conversa perfeita e sem fim.

Acompanhemos então o percurso de uma bactéria desde que chega a um determinado ambiente até à colonização eficaz: depois de se instalar num ambiente, a bactéria começa a absorver nutrientes e a fazer aquilo que melhor sabe, dividir-se para se multiplicar. À medida que se vai dividindo, vai emitindo sinais químicos para perceber se já há resposta de bactérias iguais a si em quantidade suficiente para que ocupem a maioria do espaço disponível — ou seja, não se trata de uma bactéria estar em número suficiente, mas se está em elevada densidade. Quando isso acontece, elas alteram o ser perfil de expressão genética para deixarem de se comportar como indivíduos e adquirirem comportamentos de grupo. Esses podem ser a produção de luz, de nutrientes, de toxinas, entre outros, dependendo do tipo de bactéria.

 

E. coli, a rainha do pedaço

A bactéria escolhida por Karina Xavier para estudar em Princeton foi a Escherichia coli (E. coli), presente no nosso trato intestinal e uma das mais estudadas do mundo pela facilidade de, antes dos avanços tecnológicos, poder ser cultivada e manipulada. No grupo de trabalho da norte-americana Bonnie Bassler, a microbióloga portuguesa quis dar um passo à frente e perceber se, para além da linguagem que as bactérias utilizam entre si, haveria uma linguagem universal para todas as bactérias. “Misturei Vibrios, com E. coli, Streptococcus e bacilos num tubo de ensaio e percebi que duas delas conseguiam comunicar, ou seja, que os Vibrios conseguiam produzir um sinal que as E. coli detetavam e respondiam”, explica a investigadora. Hoje em dia sabemos, então, que cada bactéria “fala” uma linguagem própria com as bactérias da sua espécie e uma linguagem universal. “Isto permite que, numa comunidade complexa como a microbiota, uma espécie consiga não só determinar a sua própria densidade, como perceber se está numa comunidade com muitos organismos de espécies diferentes”, aponta a investigadora.

A partir desta descoberta, a E. coli passa a ocupar um espaço central na vida profissional de Karina Xavier, presenteando-as com algumas surpresas. “No final do meu período em Princeton observei que a E. coli, à medida que se dividia, ia aumentando a molécula que é o sinal de quorum sensing para as restantes bactérias. No entanto, assim que atingia o quórum, a molécula começava a degradar-se e desaparecia”, explica a investigadora, afirmando que isto é um comportamento que vai contra as regras da deteção de quórum.

E se tudo mostrava que as bactérias eram, afinal, capazes de trabalhar em equipa e até comunicar com outras espécies, porque é que esta bactéria em específico estava a ter este comportamento? “Ainda não temos a certeza, mas tudo indica que a E. coli faça isto para perturbar a linguagem das outras bactérias e a sua capacidade de saberem se atingiram o quórum ou não”, aponta Karina Xavier. A E. coli conseguirá então manipular os sinais para ficar em vantagem em relação aos seus pares e os impedir de cumprirem as funções que cumpririam se soubessem que estavam em densidade suficiente.

 

Quando vem o fogo

Voltemos agora à imagem da microbiota enquanto floresta. Já sabemos que não há ‘silêncio’ ali dentro e que cada bactéria fala a sua língua e a língua universal. Há até bactérias que conseguem manipular as conversas das outras para ficarem em vantagem. No entanto, este ecossistema não está sempre em equilíbrio e as coisas nem sempre funcionam como descrito. De vez em quando aparecem incêndios que destroem vários componentes da floresta, alguns deles de uma forma irreversível.

“Na placenta estamos estéreis, mas começamos a ser colonizados por estas bactérias assim que passamos o canal de nascimento. E depois pelos micróbios da pele da nossa mãe, do leite, dos nossos irmãos e primos. A microbiota das crianças é uma floresta em desenvolvimento. Mas temos de tratar dela ao longo da nossa vida”, explica Karina. “As bactérias alimentam-se de fibras, por isso é necessário manter uma boa alimentação para que elas não se extingam por falta de alimento. Hábitos de higiene extrema também podem resultar numa diminuição da diversidade. Depois há os antibióticos…” Os antibióticos são, segundo a investigadora, uma “bomba que cai aleatoriamente” na nossa microbiota. O seu objetivo principal é exterminar as bactérias patogénicas, mas, infelizmente, não são capazes de filtrar os bons e os maus da fita. “Se for um tratamento prolongado, pode demorar anos até que a floresta fique recuperada.”

As investigações atuais do grupo de Karina Xavier prendem-se então com este processo de recuperação depois de perturbações, desde perceber como é que se dá, ao tipo de processos que podem ajudar, passando por selecionar as bactérias que são mais importantes estarem presentes numa primeira fase de recolonização. Para tal, Karina Xavier pegou naquilo que já tinha observado com a E. coli nos tubos de ensaio e escalou para o ambiente natural desta bactéria, a microbiota, para colocar a questão: será que a deteção de quórum tem alguma influência neste processo de recuperação?

A equipa avançou então com a modificação de bactérias para formar três tipos de E. coli: uma que produzisse muito sinal de quorum sensing, uma que produzisse um sinal normal e outra que produzisse pouco sinal.  “A E. coli é uma das primeiras a colonizar o intestino porque não é sensível ao oxigénio. Uma das suas principais funções é exatamente remover o oxigénio junto do epitélio para que outras bactérias que sejam sensíveis possam colonizar”, específica. Estas bactérias foram depois postas em ratinhos com microbiotas saudáveis, mas que tiveram perturbações devido a um tratamento de um mês com antibiótico. “O que observámos é que nos ratinhos que tinham a E. coli com produção de sinal aumentada, o grupo de bactérias mais afetado pelo antibiótico foi protegido. E fomos os primeiros a mostrar isto”, afirma.

O grupo está agora testar o papel do quorum sensing na recuperação após outra perturbação: a dieta. “Temos ratinhos a serem alimentados com uma dieta normal, rica em fibras, e temos ratinhos a serem alimentados com uma dieta de alto teor de gordura, açúcares simples e baixas fibras, a que chamamos dieta desequilibrada do estilo ocidental”, aponta Karina Xavier. Os resultados iniciais indicam que a microbiota perde muitas funcionalidades quando exposta a uma dieta desequilibrada, uma vez que há bactérias que perdem o seu alimento — fibras —e desaparecem. Além disso, e fruto de trabalhos colaborativos com outro grupo de investigação do IGC, o da bióloga evolutiva Isabel Gordo, conseguiu-se perceber que, ao mudar o ambiente onde as bactérias vivem, as próprias bactérias também mudam: “As bactérias são seres que evoluem rapidamente, por isso quando mudamos a alimentação elas também se mutam para se poderem alimentar de maneiras diferentes.”

Estes ensaios não seriam verdadeiramente inovadores se não surgissem descobertas surpreendentes. No caminho, os investigadores descobriram ainda uma bactéria muito pouco estudada que, depois de passar o incêndio, consegue, sozinha, servir de barreira protetora contra o ataque de bactérias patogénicas. “Depois do ensaio tivemos resultados diferentes. Alguns ratinhos isolados conseguiam recuperar as capacidades de proteção, outros não, enquanto os que estavam em grupo recuperavam mais facilmente. Identificámos que os que conseguiram recuperar tinham em si a Klebsiella michiganensis, uma bactéria comensal que tem um metabolismo muito eficiente e competir por nutrientes numa situação pós-antibióticos, conferindo proteção”, explica a investigadora. Os próximos passos são agora cruzar esta bactéria com os mecanismos de deteção de quórum, para perceber se, por exemplo, esta pode ser utilizada como probiótico.

O maior esforço desta equipa e dos milhares de investigadores que, por todo o mundo, têm tentado desvendar os mistérios da floresta que habita dentro de nós é o de provar que, para o nosso bem e o da nossa espécie, devemos tratá-la com o maior cuidado, da alimentação à forma como tratamos doenças.

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