Homenagem e Esquecimento

Neste conjunto de obras do CAM, reflete-se sobre ideia de homenagem e do seu inverso, o esquecimento.
Leonor Nazaré 19 mar 2021 4 min
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Há na história da escultura uma tradição celebrativa que é provavelmente tão antiga quanto a arte. No conjunto de obras da coleção do CAM aqui reunidas, pretendo identificar as intenções de homenagem e as do seu inverso, o esquecimento, a diferentes níveis e a partir de formulações contrastantes. Apesar de centrada na escultura, esta proposta abrange também pintura, fotografia e gravura, principalmente nos casos em que a escultura é tomada por objeto ou referência. Só o retrato escapa aparentemente, a essa condição.

A presença de obras como a Maqueta de Estátua Equestre de Cutileiro ilustram, comentando-a, a mais corrente das consagrações da estatuária, a que se faz por exemplo ao Soldado Desconhecido ou a figuras da iconografia religiosa.

 

João Cutileiro, «Maqueta de Estátua Equestre», 1978. Inv. 90E490
José Pedro Croft, Sem título, 1986. Inv. 86E846

 

Stonehenge (série de litografias de Henry Moore), ligado ao culto dos mortos, ou a peça de José Pedro Croft, também relacionável com o imaginário tumular, acentuam o lado ritual dessa conservação da memória dos que já viveram e nos precederam na decifração do mundo. É ainda o caso da pintura da série Porta Etrusca, de Graça Pereira Coutinho, que atualiza uma referência cultural ancestral.

 

 

A estranha instalação de Noronha da Costa, O Azul Eterno do Mediterrâneo, mantém-nos nesse imaginário do limiar e da penumbra em cujo limbo vida e morte se permutam. Também a série Tasso, de Daniel Blaufuks, coloca, entre nós e as estátuas fotografadas, véus parcialmente encobridores, que obscurecem o nosso acesso à sua presença física. O anonimato dessas figuras de pedra é partilhado pela representação nas obras já referidas e exponenciado em Toucador de Ana Vieira – delicada evocação de um arquétipo feminino, no âmago do qual se podem projetar todos os rostos que visarem o espelho da composição.

 

 

O arquétipo passa a alegoria nas esculturas de Canto da Maya: Tragédia e Comédia surgem personificadas de modo a que a sua complementaridade figurativa evoque princípios essenciais da representação teatral e do entendimento da existência.

 

Canto da Maya, «Tragédie», 1926. Inv. 81E437
Canto da Maya, «Comédie», 1926. Inv. 81E438

 

O retrato e o autorretrato singularizam ao ponto de homenagear pessoas concretas (a autorreferência será também uma forma de homenagem?): em contornos identificáveis, como no caso dos autorretratos de Almada Negreiros e de Gaëtan; surrealizantes, apesar de nítidos, no caso dos artistas fotografados por Fernando Lemos; designados por metonímia fantasiosa, como no caso da referência de Maria Beatriz a Almada.

 

 

Outros tipos de homenagem se perfilam: ao Natal, na escultura de Rui Sanches, que dá corpo ou volume crítico a estruturas simbólicas; a um grupo de música eletrónica dos anos de 1970, os Kraftwerk, através da desconstrução do seu fraseado musical, no vídeo de João Onofre.

 

 

Mundo profano e essências são convocados em simultâneo neste movimento recorrente de fixação do espírito das coisas e dos seres. Mas a dissolução de identidades em arquétipos ou de arquétipos em objetos pode ser lida como uma forma de esquecimento, uma transposição voluntária de conhecimentos empíricos para planos em que se tornam ora evocação sublimada dos seus princípios, ora apagamento deles. A Casa do Esquecimento, de Cabrita Reis, inscreve-se nesse território. A proposta de Alexandre Estrela, TV’s Back, comenta, de forma radical, o circuito fechado em que a televisão nos absorve, apesar de considerada «janela aberta sobre o mundo». E todas as outras obras, se agora regressássemos a elas com esta consciência, se deixariam ler em função dessa dupla tentativa de homenagear e de esquecer.

 


Nota: Entre 4 de junho e 6 de setembro de 2009 foi apresentada uma exposição com obras da coleção do Centro de Arte Moderna da FCG na Fundação Eugénio de Almeida, em Évora. Teve curadoria de Leonor Nazaré e intitulou-se Homenagem e Esquecimento. Este texto apresentava-a sumariamente.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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