«Afinal o que importa é não ter medo»
Este percurso intitula-se Afinal o que importa é não ter medo, frase retirada do poema Pastelaria, um poema de crítica à ditadura em Portugal do artista e poeta Mário Cesariny. Nele propõe-se uma abordagem da arte em relação com o seu contexto social e político. Não ter medo era também um posicionamento dos artistas contra a censura e a repressão e um libelo pela liberdade criativa e de expressão.
Quando a Fundação Calouste Gulbenkian é criada, em 1956, impera em Portugal a ditadura do Estado Novo, instaurada em 1933, prolongando-se até à Revolução de Abril de 1974. O regime vive uma oposição política crescente à qual irão aderir muitos artistas ligados, sobretudo ao Movimento de Unidade Democrática. Foi, por isso, de enorme importância a decisão da Fundação, começar, durante a década de 1960, a constituir uma coleção de arte portuguesa.
Ao mesmo tempo, a Fundação desenvolve um conjunto de apoios que se manterão ao longo das décadas seguintes, refletidos em aquisições, na realização de exposições nacionais e internacionais e num programa de bolsas para apoio à criação, no país e no estrangeiro. Hoje, a Coleção do CAM é dos mais relevantes acervos de arte moderna e contemporânea do país.
Entrada da Exposição / Mural
Ofélia Marques, Sem título, sem data.
Ofélia Marques é uma das figuras representativas do Modernismo português, tendo iniciado o seu trabalho na década de 1910. A sua obra só recentemente tem sido valorizada, aspeto comum a outras artistas que permaneceram na sombra dos seus companheiros, como foi o seu caso em relação a Bernardo Marques.
Este retrato de criança tem datação provável de 1941 e faz parte de um tema recorrente tanto no seu desenho como na sua pintura. Contudo, o seu trabalho não se reduz a retratos da infância.
Os retratos e cenas femininas de caráter erótico são vertentes inesperadas da sua obra, apenas mostradas na década de 1980. É o caso da obra Sem Título, que evidencia um universo feminino oposto ao da moral e dos bons costumes.
Revela igualmente uma faceta íntima e libertadora do trabalho da artista, em oposição às suas ilustrações para revistas femininas, que representavam o universo da mulher portuguesa conformado à sociedade do seu tempo.
Primeiras Aquisições
Nesta primeira sala podemos ver um conjunto de 7 obras-chave da Coleção do CAM, todas adquiridas na década de 1960.
Este período coincide com um programa de exposições itinerantes da Fundação. A primeira destas exposições inaugurou nos Açores, contribuindo para a descentralização da divulgação da arte contemporânea.
A exposição foi depois realizada na Madeira e no continente, em várias localidades. Alguns dos espaços escolhidos foram pouco comuns, como o Castelo de Leiria, o Grémio Comercial da Figueira da Foz, o Quartel dos Bombeiros Voluntários de Castanheira de Pera ou o Lusitano Ginásio Clube de Évora.
José de Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa, 1964
Este retrato, da autoria de José de Almada Negreiros, foi encomendado pela Fundação ao autor, sendo a segunda versão de uma pintura realizada dez anos antes para o restaurante e hotel Irmãos Unidos.
Nesta pintura, o artista retrata o poeta Fernando Pessoa, um dos membros mais notáveis da sua geração. Almada vai definir a imagem futura do poeta através do destaque dos seus atributos: o chapéu, os óculos e o bigode. Esta obra evidencia a influência do cubismo e a importância da pesquisa sobre o sistema matemático grego, que procurava o cânone perfeito de proporções, baseado nas formas do círculo e do quadrado, como vemos aqui.
Artista multidisciplinar autodidata, Almada, tal como Fernando Pessoa, pertencia ao grupo de modernistas, designado de geração d’Orpheu, associada à revista que se pode ver na pintura. A revista espelhava as principais preocupações dos artistas associados à estética modernista, como interpretar e criticar a dura realidade em que viviam e romper com a pintura naturalista.
Ao longo de quase seis décadas, Almada manteve-se na vanguarda da arte portuguesa, tornando-se o grande mentor das gerações de artistas que se seguiram.
O Início
José Escada, Sem título, 1965
José Escada é um dos representantes da geração de artistas que vai recuperar alguns valores da geração anterior, a que pertencia Almada Negreiros. Valores como a crítica social e política, e a liberdade de expressão marcam esta neovanguarda.
Em 1958, Escada criou, juntamente com os artistas Lourdes Castro, René Bertholo, António Costa Pinheiro, João Vieira e Gonçalo Duarte, o grupo KWY, em Paris. Descontentes com o ensino artístico e com a situação sociopolítica nacional, emigram como bolseiros da Fundação Calouste Gulbenkian.
A revista KWY, impressa com serigrafias dos próprios artistas, foi considerada uma inovadora forma de linguagem e suporte artístico.
Esta pintura pertence a uma série intitulada «Iluminações», aludindo aos efeitos de luz por ela provocados. O artista explora um género de alfabeto, de formas contornadas e cores vibrantes. Uma composição dinâmica que, nas palavras do artista, pretendia «estimular a participação do espectador na obra de arte e forçar, portanto, a sua participação espiritual».
Joaquim Rodrigo, Trás-os-Montes, 1964
Joaquim Rodrigo foi pioneiro, juntamente com Paula Rego, da Nova Figuração, mas afirmou-se com um percurso singular no campo do abstracionismo geométrico. No seu trabalho encontramos um discurso crítico sobre o contexto político e social português dos anos de 1960, dando particular atenção às questões sociais e políticas mais fraturantes da época, como a pobreza ou a guerra colonial.
As suas obras relacionam-se também com culturas consideradas originárias, dando primazia a signos e simbologias de elementos naturais, pinturas pré-históricas, aborígenes e africanas.
Na presente pintura, o artista questiona a realidade portuguesa através de sinais, ícones, letras e palavras fragmentadas. Trás-os-Montes era então uma das regiões mais pobres e isoladas do país e o artista enuncia alguns dos seus problemas sociais, entre os quais a extrema pobreza, a que pode aludir a palavra Bread [Pão] e a consequente vaga de emigração na década de 1960.
Rodrigo confronta esta situação com outra oposta, o investimento político no turismo que levou à celebração do recorde de um milhão de turistas, precisamente em 1964, através da mordaz frase «Tourismo Bah!»
Jorge Vieira, Sem título (Escultura n.º 3), 1966
Jorge Vieira é responsável por uma renovação na produção escultórica. O artista esteve ligado ao Movimento Unidade Democrática e ao Partido Comunista Português, tendo realizado obras de conotação política, como o projeto para o Monumento ao prisioneiro político desconhecido.
A obra que vemos na exposição pertence a um período posterior e é uma possível homenagem às artes populares e aos povos nativos. A tridimensionalidade da escultura é obtida através de linhas de contornos vazados, criando uma sensação de transparência e de integração no espaço envolvente.
«É indispensável inaugurá-lo»
António Areal, See, the Conquering Hero Comes, 1965
O percurso artístico de António Areal foi marcado pelo dualismo entre figuração e abstração e por uma reflexão teórica sobre arte contemporânea.
Nesta tela, o artista mistura formas geométricas que sugerem uma tridimensionalidade, através de composições que jogam com noções de equilíbrio e desdobramento. O autor refere-se a estas obras no seu percurso como figurações abstratas.
O título da obra alude à terceira ária da oratória Judas Maccabaeus do compositor barroco Handel, datada de 1746, que é uma homenagem à resistência e vitória do povo judeu face ao império sírio, no século II a.C. O título da pintura pode estar também associado ao regresso do general Humberto Delgado para se candidatar à Presidência da República, numa clara oposição ao regime, e ao seu subsequente assassinato.
Fernando Azevedo, António Domingues, António Pedro, João Moniz Pereira, Marcelino Vespeira, CADAVRE EXQUIS (1.ª Experiência colectiva pelo processo Cadavre Exquis), 1948
O título Cadavre-exquis [cadáver esquisito] refere-se à técnica aplicada às artes visuais, mas que surgiu originalmente por via da literatura. Baseia-se numa ideia de subversão, jogo, acaso e participação coletiva, ligada ao movimento surrealista.
Para executar a pintura segundo esta técnica, a tela foi dividida pelo número de artistas e cada um pintou a sua parte sem ver a dos outros intervenientes, sendo a obra final uma revelação inesperada para todos os seus autores.
Esta obra é relevante por ser considerada uma das obras de maiores dimensões, a nível mundial, efetuadas segundo esta técnica, mas também pela dimensão política da sua apresentação pública.
Em janeiro de 1949, o Grupo de Surrealistas de Lisboa fez a sua única exposição, da qual esta obra também fez parte. Numa clara atitude política, os artistas utilizaram como capa de catálogo o cartaz da candidatura do general Norton de Matos à presidência, o oponente ao candidato da ditadura. Por isso, a publicação do catálogo foi censurada e simbolicamente substituída por uma folha de papel branco na qual se inscreveu a habitual cruz azul, utilizada pelos censores do regime.
Júlio Pomar, Odalisque à L’Esclave II, d’après Ingres, 1969
Júlio Pomar foi uma figura-chave do Neorrealismo em Portugal e da resistência contra o Estado Novo. Em 1963, Pomar instalou-se em Paris, sendo bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian nos três anos seguintes. Neste período, a sua pintura altera-se e o artista começa a usar a técnica da pintura acrílica, abordando uma grande variedade de temas como o erotismo, a literatura e a História da Arte.
É neste último contexto que podemos situar a presente obra. Como o próprio nome indica, alude a Jean-Auguste-Dominique Ingres, importante nome da pintura francesa do século XIX. Pomar pintou, dentro da mesma linguagem, uma série de retratos de personalidades da cultura portuguesa, entre as quais Almada Negreiros, a quem havia vendido o seu primeiro quadro.
Fernando Calhau, Espaço Verde, 1974
Fernando Calhau foi bolseiro da Gulbenkian em Londres, em 1973, onde estudou gravura na Slade School of Fine Art. Foi o responsável, no pós-25 de Abril, pela constituição de uma coleção de arte pública, no âmbito da Direção Geral de Ação Cultural. A sua relevância está na adoção de uma linguagem conceptual, minimalista e experimental, novas no panorama artístico português.
A presente tela verde faz parte de uma série mais vasta que explora a perceção ótica da cor. Foi uma série muito importante no trabalho do artista e reflete também a mudança estética da arte portuguesa. Refira-se também que uma das obras mais significativas desta série foi dada como perdida no período conturbado da Revolução de 1974. A tela seria redescoberta cerca de duas décadas depois, mas apresentando danos irreparáveis que levaram à sua destruição.
Depois das Belas-Artes
Manuel Botelho, Pietà, 1999
Manuel Botelho foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian na Byam Shaw School of Art e na Slade School of Fine Art, em Londres, na década de 1980. O seu trabalho é muito influenciado pela história da ditadura em Portugal e pelas suas repercussões. Utiliza recorrentemente a caricatura e as figuras alegóricas como retratos de uma crítica sociopolítica.
A obra aqui apresentada evoca dois universos antagónicos: o da iconografia religiosa e o da utopia modernista da arquitetura. O artista subverte uma das cenas mais relevantes da iconografia cristã quando apresenta o seu autorretrato, no lugar da Virgem, com Cristo nos braços, depois da descida da Cruz. No plano de fundo está representado um dos edifícios icónicos da autoria de Le Corbusier, o convento dominicano de La Tourette, em França. A convivência entre estes dois planos coloca a religião num patamar de esperança, ao contrário das obras da década anterior em que a religião era um lugar de opressão.
Permanentes e temporárias
Silvestre Pestana, Vídeo-Poema Vida Ovo, 1975
Silvestre Pestana pertence a um grupo de artistas que introduz a poesia visual e as artes performativas na neovanguarda portuguesa. Nos anos de 1960, estudou na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, altura em que se junta ao coletivo de Poesia Experimental Portuguesa PO.EX, cujo objetivo era a experimentação da comunicação poética, com um forte sentido político de resistência à censura. A sua obra irá explorar as novas tecnologias de comunicação, sendo um dos pioneiros na utilização artística do vídeo, a par de Fernando Calhau e Julião Sarmento.
Na obra aqui apresentada, o artista utiliza a fotografia como documento e prolongamento da sua ação performativa. É uma poesia expandida que se liberta das páginas dos livros e se constrói através da fotografia, do corpo e da linguagem.
Destaca-se a utilização do ovo, elemento recorrente na sua obra, símbolo de um novo começo e de esperança numa sociedade transformadora e pós-revolucionária.
Kiluanji Kia Henda, Compacted Distance, 2014
Kiluanji Kia Henda nasceu em Luanda quatro anos depois de o país ter conquistado a sua independência, facto que influencia muito o impacto do colonialismo no conjunto da sua obra.
O artista aposta na ficção, na crítica e no humor para explorar a complexa relação entre culturas. Esta obra enquadra-se num trabalho mais vasto em que o artista evoca os vestígios culturais e a sua transformação.
Nesta fotografia observamos um muro com duas aberturas, cujas formas se assemelham a silhuetas humanas e que deixam entrever uma paisagem desértica. Este muro pode evocar as atuais ideias de bloqueio e fronteira, mas também pode ser entendido como um fóssil de tempos passados.
Miguel Palma, Upa! União dos Povos de Angola, 2006
Miguel Palma é um dos protagonistas da geração de artistas dos anos de 1990 que encarou a arte como uma forma de questionamento social e político. A sua obra questiona a instrumentalização tecnológica moderna, desde a guerra ao quotidiano, e os seus efeitos sociais e ecológicos. Combina a ironia, a imaginação, a memória e a pesquisa histórica.
A obra aqui exposta evoca a primeira bomba de napalm fabricada em Portugal e utilizada nas frentes de guerra nas ex-colónias portuguesas. O artista apropriou-se de uma miniatura e uma maqueta do engenho, acompanhada de material de arquivo da sua produção, que encontrou na antiga fábrica de Fundição de Oeiras.
Através desta obra, o artista denuncia não só o desprezo pela memória histórica da guerra colonial, como evoca a luta desigual dos movimentos de libertação face ao colonizador.
Rosângela Rennó, Lagoa, da série «Frutos Estranhos», 2006
Rosângela Rennó trabalha o tema da memória coletiva e os seus processos político-ideológicos de construção e discriminação. Através da apropriação e recontextualização da fotografia de arquivo, reflete sobre questões de identidade e representação.
Desde retratos comuns a registos fotográficos de presos das ditaduras militares, por exemplo, o seu objetivo é questionar o sentido político do anonimato fotográfico. Esta obra contempla a dualidade entre a imagem analógica e digital e os diferentes processos da sua perceção.
Coordenação
Emília Tavares
Curadoria
Catarina Rebelo
Georgia Quintas
Laurinda Marques
Paula Nobre
Rita Cêpa
Sofia Pascoal
Parceria
Parceria entre o CAM e a Universidade Nova de Lisboa