Yto Barrada. Moi Je suis la Langue et Vous êtes les Dents

Programa «Espaço Projeto»

A obra da etnóloga Thérèse Rivière é o ponto de partida da artista franco-marroquina neste projeto, que cruza história contemporânea, etnografia e história natural. Reunindo um conjunto de trabalhos em fotografia, vídeo e escultura, Yto Barrada questiona o colonial e o pós-colonial através da análise das relações de poder que se formam no seio da família, da comunidade ou do país.

Entre 1934 e 1936, Thérèse Rivière (1901-1970), etnóloga francesa e irmã do museólogo Georges-Henri Rivière (1897-1985), desenvolveu trabalho de campo sobre a etnia Chauia, nas montanhas do Aurés, na Argélia, então colónia francesa. Os Chauias pertencem à família dos povos berberes ou Imazighen, que significa «homens livres». Enquanto pesquisava no Musée du quai Branly, em Paris, o fundo documental de Thèrese Rivière, nomeadamente o núcleo composto por brinquedos e jogos trazidos do Norte de África para França durante o período colonial (1830-1962), Yto Barrada (1971) encontrou os cadernos de notas e as inúmeras fotografias e desenhos que Thérèse realizara durante esse período.

Thérèse nascera em França e fora para a Argélia em representação do então Musée d’Ethnographie du Trocadéro, em Paris. À época, terá sido das poucas mulheres a quem foi permitido conduzir um estudo de etnologia, uma responsabilidade exclusiva dos militares oficiais franceses (Miller, Flash Art, 11 abr. 2019). Os registos que deixou revelam um espírito atento, inteligente e curioso, que se distinguia pela sua abordagem humanista, e pela forma como tratava os envolvidos e incentivava a sua livre expressão. Além disso, expressam a sua faceta de etnóloga crítica da etnologia, dos seus protocolos científicos e da sua natureza coerciva e promotora da manutenção dos regimes coloniais, como aquele que grassava justamente na Argélia por imposição francesa, nos anos de 1930 (Yto Barrada. Moi je suis la langue et vous êtes les dents, 2019, [p. 3]).

A expressão «Moi je suis la langue et vous êtes les dents», que seria adotada como título da exposição, fora anotada num dos cadernos que Thérèse mantivera durante esse período, e dizia respeito a um conto familiar berbere ao qual a etnóloga fez corresponder a palavra «magia» (Ibid., [p. 2]). Neste conto, avó e neto estabelecem uma relação interessante, traduzida numa «missão que confirmaria um pacto de obediência»: o neto, Saddok, deveria trocar umas tâmaras que lhe haviam sido confiadas pela avó, por um texto redigido por um peregrino. No entanto, oferecendo resistência à autoridade superior, Saddok cede à gula e opta por comer as tâmaras. O texto que escreve em francês (língua escrita), para substituir o texto do peregrino, viria a selar o «pacto de desobediência» (Ibid., [p. 3]).

«Moi je suis la langue et vous êtes les dents» pode traduzir-se por «Eu sou a língua e tu és os dentes». A língua, que em francês, tal como em português, é o órgão, o idioma, a fala e a linguagem, é «quem» comanda, porque veio primeiro que os dentes (Ibid., [p. 2]). Os dentes facilitam a ingestão dos alimentos. É através deles que, segundo Rita Fabiana, ao comer, por um lado, se «ritualiza a internalização do poder e da ordem [e, por outro, se fecha o círculo da] emancipação do sujeito em relação a esse mesmo poder» (Ibid., [pp. 2-3]). No final do conto, a velha anciã guarda as palavras do neto e leva-as para o leito da morte, exibindo esse «troféu», assim lhe chama a curadora, como prova de que, por vezes, os opressores acabam a ser «domados pelas suas próprias palavras» (Ibid., [p. 3]).

Enigmática e complexa, esta expressão condensa a presença das marcas de poder transfiguradas na «língua» – ordem – e nos «dentes» – resistência. Assim, fala de opressão, de resistência, e da força necessária «para inverter a posição do subordinado» para uma estabilidade insubordinada (Nunes, Contemporânea, 19 jun. 2019).

Apropriando-se do conto cuja fórmula replicaria ao longo da exposição, Yto Barrada parece ter querido transmitir o seguinte: que as marcas de poder podem ser facilmente encontradas no seio de famílias, bem como no interior das relações que se estabelecem entre pares dicotómicos, como, por exemplo: ocidental/magrebino, colonizador/colonizado, individual/coletivo, família/país, mulher/homem, pai/filho, neto/avô (Ibid.).

Assim, depois de uma primeira apresentação do seu trabalho em Portugal, na Casa de Serralves, em 2015 («Salon Marocain»), a artista franco-marroquina seguia as pistas de Thérèse Rivière para desenvolver um projeto que se revelaria mais pessoal do que, à partida, parecia sugerir. «Moi je suis la langue et vous êtes les dents», apresentado em 2019 na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), decorreu de um convite feito pela instituição um ano antes, para a conceção e produção de um trabalho especialmente pensado para o Espaço Projeto.

Para formalizar a encomenda, celebrou-se um contrato entre a artista e a FCG: à artista cabia investigar, conceber e produzir a obra, além da obrigatoriedade de apresentar à instituição, no máximo até três meses antes da inauguração, um projeto artístico e uma lista de materiais a utilizar (Barrada, Declaração, 17 nov. 2018, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível], p. 1). A Fundação comprometia-se a assegurar todas as despesas relacionadas com a produção da obra encomendada, incluindo, por exemplo: honorários de assistentes, materiais de construção, comunicação, produção de filme e som, responsabilizando-se também pelos custos inerentes ao transporte da obra no regresso ao estúdio da artista, em Nova Iorque, uma vez acabada a exposição (Ibid., p. 2). A mostra beneficiou ainda dos apoios da Embaixada de França em Portugal e do Instituto Francês, que contribuíram financeiramente para a execução do projeto e da publicação associada.

«Moi je suis la langue et vous êtes les dents» expôs o trabalho de uma artista com «um percurso internacional consolidado e [uma] excelente receção crítica» (Relatório final da exposição, 7 jun. 2019, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível], p. 5). Nesse mesmo ano, Yto Barrada vencia os prémios Roy R. Neuberger, atribuído pelo Neuberger Museum of Art, em Nova Iorque, e o 47.º Prémio Internacional de Arte Contemporânea (2019) da Fondation Prince Pierre de Monaco, pela obra Tree Identification for Beginners (Ibid.).

Como no caso de Thérèse Rivière – cuja carreira, interrompida pelo agravamento de uma doença psiquiátrica e pelo internamento hospitalar, seria esquecida –, é, segundo a curadora Rita Fabiana, com as narrativas silenciadas, com «os vazios da história» e com os ausentes e os despossuídos de língua, memória e cultura material que Yto Barrada mais se identifica (Yto Barrada. Moi je suis la langue et vous êtes les dents, 2019, [p. 3]).

A artista é, de facto, uma contadora de histórias, e uma resistente à imposição das narrativas oficiais. É através destas histórias que coleciona, e das quais se apropria para depois as misturar e sobrepor, que produz as suas obras, num processo de liberdade criativa e experimental. O resultado é uma intermitência de imagens, memórias e figuras que habitam o mesmo espaço, mas que são trazidas de diferentes contextos, correspondendo, com frequência, ora à história coletiva, ora a uma herança de foro privado ou familiar (Ibid.).

No tratamento de assuntos sérios, Yto Barrada recorre ao jogo e a um sentido de humor curioso e inventivo. Para a artista, esta é uma abordagem eficiente na desconstrução das hierarquias e dos estereótipos patentes. Além disso, a educação e a aprendizagem, ou, mais concretamente, como e com quem escolhemos aprender e porquê, é outra das suas principais linhas de investigação, e aquela por que enveredou na conceção da exposição (Miller, Flash Art, 11 abr. 2019). Assim, além de figuras «históricas» – como Thérèse Rivière, Maria Montessori (1870-1952), Lourdes Castro (1930-2022) e Frank Stella (1936) –, a artista elegeu figuras familiares, como a mãe e a avó.

A referência a Lourdes Castro era feita no átrio do Espaço Projeto, à entrada da exposição. Os vazios das pratas dos bombons que Barrada comeu antes de fotografar, imortalizando-os na série de fotogramas Untitled (Bonbon series) (2015-2017), são uma homenagem às colagens que Lourdes Castro fez de pratas de bombons, em 1965, e ao grupo KWY, do qual a artista portuguesa fez parte, entre 1958 e 1964. As letras «KWY» são, por sua vez, afirmação da ausência, já que, à época, ainda não faziam parte do alfabeto português (Yto Barrada. Moi je suis la langue et vous êtes les dents, 2019, [p. 7]).

A obra The Telephone Books (The Recipe Books) (2010-2018), composta por duas fotografias de grande formato que mostram as agendas telefónicas da sua avó materna, apresentava-se na entrada da galeria. A curadora explica que nestes pequenos cadernos a avó de Yto, analfabeta, «inventa […] um sistema gráfico de anotação para identificar e registar os contactos dos seus familiares» (Ibid.).

Entre outras obras, como o filme Hand-Me-Downs (2011), o grupo escultórico Jeu de construction Thérèse (Thérèse Unit Blocks) (2018) e Untitled (Unruly Objects) (2016) – a série de fotografias que retrata os vários objetos coletados por Thérèse Rivière no Aurés –, na galeria do Espaço Projeto foram exibidos mais sete trabalhos, intitulados Untitled (After Stella) (2018).

A partir da série produzida por Frank Stella – Marrocos (1964-1965) –, em que cada pintura, construída no seu clássico esquema de linhas alternadas de cores vibrantes, se associa a uma cidade marroquina, Yto Barrada recria Untitled (After Stella), recorrendo a têxteis produzidos por mulheres e tingidos por si, através de processos tradicionais de extração dos pigmentos de plantas. Deste modo, a história da arte ocidental como a conhecemos, maioritariamente feita no masculino, é revertida, num processo de emancipação das narrativas artísticas (Ibid., [pp. 7-8]). Em termos museográficos, destaca-se o desenho de luzes com focos geométricos que iluminava cada uma destas obras.

Finalmente, Tree Identification for Beginners (2017) fechava o circuito da exposição com uma projeção na Sala Polivalente. Nesta obra, a artista faz uma introdução à sua árvore genealógica, relatando um período de vida em que a sua mãe, jovem e estudante socialista, ingressou numa viagem de autodescoberta pelos EUA, depois de lhe ter sido concedida uma bolsa de estudos. Ao longo da viagem são narrados documentos dos arquivos do Amistad Research Center, de Nova Orleães, e fala-se de empoderamento feminino e civil e do movimento Black Power (Ibid., [p. 6]). Mas as imagens que o vídeo devolve não correspondem aos relatos, mostrando antes uma animação de volumes pertencentes a jogos sensoriais. Trata-se de uma série de peças de madeira volumétricas que Maria Montessori, uma das pioneiras da educação para as crianças no início do século XX, desenvolveu. Ao longo do filme, as peças encaixam e desencaixam, gestos ciclicamente repetidos que acompanham a metáfora do encaixe e do desencaixe dos jogos de poder e dos discursos politizados descritos nos episódios da viagem (Ibid.).

Juntamente com os projetos de Filipa César (1975) e de Irineu Destourelles (1974), que se seguiram na programação do Espaço Projeto no ano de 2019, a mostra inaugurou um ciclo temático, durante o qual foram apresentados três artistas de geografias diferentes, focado no «legado do colonialismo e nos processos de descolonização das narrativas, dos saberes e da imaginação» (Comunicado de imprensa, 1 fev. 2019, Arquivos Gulbenkian, ID: 119937).

Encabeçando esse primeiro momento do ciclo temático, pode dizer-se que o projeto de Barrada, desenvolvido a partir da análise de narrativas tanto coletivas como individuais, se relacionou com a exposição «Francisco Tropa. O Pirgo de Chaves», que, decorrendo em simultâneo no edifício da Coleção do Fundador, integrava o ciclo «Conversas» (Valentina, Umbigo, 15 abr. 2019). Uma vez que as mostras partiram da premissa da história e da passagem do tempo, através da etnologia e da arqueologia, respetivamente, seria por via da antropologia que comunicavam entre si, refletindo acerca da forma como, enquanto civilização, nos relacionamos com o nosso passado mais próximo e mais distante (Ibid.).

Além deste diálogo com a mostra do escultor Francisco Tropa, o projeto de Barrada relacionou-se ainda com Lisboa e as pessoas que a habitam, servindo de plataforma para pensar as narrativas do colonialismo português e a história das várias comunidades afrodescendentes.

Ao longo de 77 dias, a exposição atraiu cerca de 12 300 visitantes, o número mais alto até à data para uma exposição do Espaço Projeto (Relatório, 7 jun. 2019, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível], p. 5). Além das três visitas guiadas, entre as quais se inclui uma orientada pela curadora e por Yto Barrada, foram registadas visitas extra para escolas e grupos de estudantes universitários (Ibid., p. 1). Associado à exposição, e enquadrado na Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), foi organizado o encontro-debate «Apagamentos, Silêncios, Invisibilidades», em colaboração com a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade e com o Alto Comissariado para as Migrações. Este encontro foi orientado por Rita Fabiana e contou com a participação de 25 pessoas, incluindo a secretária de Estado Rosa Monteiro (Nota interna, 21 mar. 2019, Arquivos Gulbenkian, ID: 229612).

Procurando alargar a discussão acerca da diáspora, da descolonização, das narrativas emancipatórias (como a do feminismo negro) e do Museu enquanto lugar de representação e produtor de conhecimento, o Espaço Projeto alargou a sua programação e associou-se a outros eventos, como o colóquio internacional «Where I (We) Stand», no qual participaram, entre outros, Ângela Ferreira (1958), Grada Kilomba (1968) e Irineu Destourelles (1974); a Mostra Ameríndia, com um ciclo de debates e de cinema indígena no Brasil, organizado em colaboração com o Doclisboa e com a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa; e o ciclo de cinema elemental, intitulado «Da Imagem Alquímica ao Ecofeminismo», com curadoria de Margarida Mendes (Comunicado de imprensa, 1 fev. 2019, Arquivos Gulbenkian, ID: 119937).

De acordo com Rita Fabiana, coordenadora e curadora do projeto expositivo, a exposição alcançou uma «muito expressiva» receção crítica nos meios de comunicação social (Relatório final da exposição, 7 jun. 2019, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível], p. 5). Destaque para a crítica de Celso Martins na Revista E, do Expresso (9 mar. 2019), e para os artigos «Yto Barrada. As nossas histórias estão muitas vezes cheias de buracos», de Lucinda Canelas, no Ípsilon, suplemento do jornal Público (15 fev. 2019), e «Expedição aos confins da história esquecida», de Sílvia Souto Cunha, na Visão (26 fev. 2016).

Nota ainda para o texto de Ana Vitória, no Jornal de Notícias (11 fev. 2019), que recomenda a visita. A exposição foi também alvo de múltiplas referências na Time Out (18, 20 fev. 2019), no JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias (13 fev. 2019), no Expresso (16 fev. 2019) e no Jornal i (1, 8 e 11 fev. 2019), neste com menções em várias rubricas. Foi igualmente noticiada online, a partir do take da Lusa, nas plataformas RTP e Gerador, bem como na Visão e no Diário de Notícias.

Na imprensa especializada são de salientar os artigos de Sofia Nunes, na Contemporânea (19 jun. 2019), de Bárbara Valentina, na revista Umbigo (15 abr. 2019), e de Peter Benson Miller, na Flash Art (11 abr. 2019), disponíveis nos formatos papel e online.

Madalena Dornellas Galvão, 2022

The work of ethnographer Thérèse Rivière provides the starting point for this project by the Franco-Moroccan artist, which combines contemporary history, ethnography and natural history. Bringing together photographic, video and sculptural works, Yto Barrada explores the colonial and post-colonial by analysing power dynamics that exist within the family, community or country.


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

À Conversa com a Curadora Rita Fabiana e a Artista Yto Barrada

8 fev 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Sobre a Memória e o Seu Apagamento – uma visita à obra de Yto Barrada [À Conversa com a Curadora Rita Fabiana]

8 mar 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Encontro

Diálogo entre Alguns Objetos Indisciplinados de Yto Barrada

13 mar 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Conferência / Palestra

Apagamentos, Silêncios, Invisibilidades

28 mar 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Sala Polivalente
Lisboa, Portugal
Ciclo de conferências

Encontros Internacionais «Where I (We) Stand»

22 nov 2019 – 23 nov 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Sala Polivalente
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Museu Calouste Gulbenkian), Lisboa / MCG 04822

Pasta com documentação referente à programação das atividades da FCG para os anos de 2017 a 2019. Contém correspondência interna e externa. 2016 – 2017

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, caderno de exposição e pressbook. 2019

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 119944

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2019


Exposições Relacionadas

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