Engawa
Temporada de arte contemporânea japonesa
Desde 2023 que a Temporada Engawa tem vindo a apresentar um conjunto de artistas e pensadores do Japão e da diáspora japonesa, reunindo diversas colaborações com artistas e instituições culturais. Este programa investiga o modo como uma nova geração de artistas japoneses, num contexto de pressão social e psicológica, abraça uma diversidade de linguagens interligadas e considera o lugar da inteligência emocional como possibilidade de partilha para habitar o complexo mundo atual.
As obras que se apresentam no culminar desta temporada no CAM articulam-se e dialogam com o projeto do novo edifício, concebido pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, e com a ampliação do Jardim Gulbenkian. O título da temporada toma o nome de Engawa, que se manifesta no CAM sob a forma de uma magnífica pala inspirada nas casas tradicionais japonesas, o símbolo deste projeto arquitetónico, e que é visto como um espaço de transição para encontros e transformação.
Engawa pode ser tomado como uma metáfora para um «espaço liminar», uma ideia amplificada na década de 1980 no Japão e no mundo ocidental através do conceito de 間 [ma]. Esta noção de «espaço liminar» ou de transição materializou a possibilidade de um diálogo comum, refletida nos movimentos artísticos multidisciplinares do Japão a partir do pós-guerra, um período em que emergiu uma multiplicidade de histórias paralelas que questionavam a ficção da história oficial que construía a identidade japonesa.
Este capítulo da temporada desenvolve estes temas através de um programa de exposições time-based media art, projetos site-specific e obras encomendadas a artistas a meio de carreira, cujo trabalho é apresentado pela primeira vez em Portugal. As suas práticas levantam questões fundamentais sobre a nossa coexistência com os mais variados tipos de entidades na presente era de transformações tecnológicas, sociais e políticas, proporcionando perspetivas sobre questões que afetam todas as pessoas, relacionadas com os problemas sociais, históricos e ecológicos que o mundo enfrenta na atualidade.
Num profundo processo colaborativo com o contexto intercultural de Lisboa e Portugal, o programa tem como objetivo refletir sobre o modo como as inter-relações entre perceção e emoção criam outras realidades. Também se relaciona com as principais exposições inaugurais do CAM e outros eventos live arts, abrindo novas vias para a compreensão das ligações entre o Japão e o resto do mundo. No seu conjunto, estas ligações produzem uma circularidade prolífica, entrelaçando significados e narrativas, com destaque para as relações entre Portugal, o Japão e o Brasil.
Em 2023, apresentámos obras do coletivo artístico 目[mé], e dos artistas Ryoji Ikeda e Lei Saito na Fundação Gulbenkian e noutros espaços da cidade. A temporada incluiu um programa de homenagem a Mieko Shiomi, importante compositora japonesa do movimento Fluxus, bem como uma intervenção no bairro lisboeta de Marvila pelo coletivo Chim↑Pom from Smappa!Group (CPfSG), em parceria com o Alkantara Festival 2023.
Curadoria de Emmanuelle de Montgazon, com Rita Fabiana.
Texto da curadora
O projeto arquitetónico de Kengo Kuma para o CAM – Centro de Arte Moderna é uma referência ao conceito de engawa [縁側], um espaço de passagem nas casas tradicionais japonesas que não é considerado nem interior nem exterior. Embora o engawa da casa tradicional japonesa, tão central nos filmes de Yasujiro Ozu, seja frequentemente ignorado na atualidade, foi recentemente usado para evocar múltiplos espaços relacionais fora do espaço doméstico.
Assim, o engawa pode ser visto como metáfora para um «espaço liminar», tendo encontrado uma forte ressonância na década de 1980, no Japão e no mundo ocidental, através do conceito de ma [間]. Esse «espaço liminar» facilitou um diálogo comum entre os movimentos artísticos multidisciplinares do Japão no período pós-guerra, dos quais emergiram múltiplas narrativas paralelas que questionam as ficções da história oficial que informava a identidade japonesa.
Engawa constituiu-se, então, como o lugar tangível das gerações do período Heisei (1989-2019), marcado pela rutura da bolha económica e pelo terramoto de Hanshin-Awaji (1995), dois eventos que, em conjunto, representam um ponto de viragem histórico na sociedade japonesa. As suas consequências político-sociais afetaram memórias e mitos, bem como a relação entre a esfera privada e pública. Nas palavras de Timothy Morton, cujo livro O Pensamento Ecológico propõe uma aproximação das noções do estruturalismo e do budismo, trata-se de «observar o que está a mudar perante os nossos olhos, lenta e coletivamente, e de como podemos partilhá-lo com o outro»*. Este pensamento ecológico encontra uma ressonância particularmente forte no Japão. O emaranhamento, nas suas infinitas ligações e diferenças infinitesimais, encontra a sua origem no espaço íntimo, na assim chamada «dividualidade» do indivíduo, o que pode ser traduzido como a multiplicidade do ser correspondente a cada uma das relações que cada entidade (humana ou não-humana) cria. Por outras palavras, levando à confrontação com mundos múltiplos tão habilmente descrita por Keiichiro Hirano**.
Não será assim coincidência que o «Todo-Mundo» de Édouard Glissant tenha conquistado tanta importância no Japão nos últimos vinte anos. O «pensamento de arquipélago», conceito desenvolvido por Glissant, oferece a possibilidade de quebrar o impasse insular e reafirmar uma cultura profundamente multifacetada e em permanente metamorfose: acolhe a experiência subjetiva, redefine a questão da identidade e das fronteiras, abraça o feminino, a vulnerabilidade, a fragilidade e a incerteza, e amplifica a nossa perceção do mundo. Foi a partir desta área de interconectividade ecológica e digital que surgiram novas práticas artísticas inspiradas por um regresso a noções culturais de animismo e pela sua inclusão numa sociedade tecnológica em forte desenvolvimento, servindo de suporte a uma nova geração que emergiu após o desastre de Fukushima, questionando a tangibilidade da nossa vida enquanto seres humanos.
A temporada japonesa no CAM apresentará estes tópicos através de exposições de arte temporal e projetos site-specific, bem como de obras e eventos especificamente encomendados para esta ocasião. Num profundo processo colaborativo com o contexto multicultural de Lisboa e de Portugal, a temporada tem como objetivo evidenciar de que modo as inter-relações entre perceção e emoção criam outras realidades, articuladas com situações sociais e políticas nelas incorporadas, para sugerir poderosas transformações.
* Timothy Morton, The Ecological Thought. Massachusetts: Harvard University Press, 2010 [Edição brasileira: Timothy Morton, O Pensamento Ecológico. São Paulo: Quina Editora, 2023].
** Keiichiro Hirano, La dernière métamorphose. Paris: Philippe Picquier, 2007.
Emmanuelle de Montgazon
Mestre em História da Arte Contemporânea, Emmanuelle de Montgazon trabalha sobre abordagens artísticas abertas e transversais que unem diferentes formas de arte, mantendo ligações privilegiadas com o Japão. Entre 1997 e 2006 foi nomeada adida cultural na Embaixada de França em Tóquio e em Nova Iorque. Desde 2012 é diretora do Estúdio de Ryoji Ikeda em Paris e Quioto e Conselheira da Fundação de Arte de Odawara, fundada pelo artista Hiroshi Sugimoto.
Rita Fabiana
Rita Fabiana é curadora desde 2006, incorporando na sua prática projetos participativos, interdisciplinares e experimentais centrados nos processos de relação institucionais, na memória/história, no storytelling e nas identidades/subjetividades. Em 2011, juntou-se à equipa do CAM como curadora e responsável pelas coleções de escultura e instalação. Entre 2016 e 2021 foi coordenadora de programação no Museu Calouste Gulbenkian. Atualmente, é coordenadora de Live Arts no CAM. É mestre em História da Arte (Université Paris I – Panthéon-Sorbonne) e pós-graduada em Estudos Curatoriais (FBAUL).