Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C

Programa «Espaço Projeto»

Através de uma seleção de obras de Al Cartio e Constance Ruth Howes, Ana Jotta e Ricardo Valentim propõem um projeto conceptual que questiona os conceitos de autoria e curadoria. A mostra focou-se na exposição como objeto, explorando os modos de produção e apresentação no espaço do museu.
Through a selection of works by Al Cartio and Constance Ruth Howes, Ana Jotta and Ricardo Valentim present a conceptual project that interrogates ideas of authorship and curation. The show focused on the exhibition as object, exploring modes of production and presentation in the museum space.

Ana Jotta (1946) nasceu em Lisboa, onde vive e trabalha. Frequentou o primeiro ano da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, mudando-se depois para Bruxelas para estudar tapeçaria na École d'Arts Visuels de l'Abbeye de la Cambre (1965-1968). Ao longo da década de 70 do século XX, de regresso à capital portuguesa, dedicou-se ao teatro, tendo colaborado, entre 1976 e 1979, como atriz e cenógrafa na com as «Produções Teatrais» (Teatro Universitário, Lisboa). A década seguinte ficaria marcada pelo retorno da artista às artes visuais, numa atividade que se prolongaria até aos dias de hoje; Jotta tornara-se uma figura mediática e uma presença incontornável no meio artístico, com reconhecimento internacional.

Vencedora do Grande Prémio Fundação EDP (2013), do prémio AICA (2014) e do Prémio Rosa Shapire, Kunsthalle Hamburg (2017), a sua obra distingue-se por uma inteligência e um sentido de humor inconfundíveis. Através de uma economia de meios, Ana Jotta propõe-se trabalhar sobre questões de autoria, com as quais brinca, desconstruindo e reconstruindo entidades, conceitos e projetos, numa tentativa de apagar os seus próprios passos e de desmantelar uma ideia de estilo único e preconceitos sobre as mitologias modernistas e pós-modernas (Galeria Miguel Nabinho \ Ana Jotta).

Ricardo Valentim (1978) nasceu junto à costa sul do país, em Loulé. Estudou Belas-Artes na Ar.Co, em Lisboa, e Antropologia na Universidade Lusófona (1999-2003), realizando depois um mestrado em Escultura na School of Visual Arts, em Nova Iorque (2004-2006). A partir desse momento, passou a dividir o seu tempo entre Lisboa e Nova Iorque, e afirmou-se como artista, começando a expor com regularidade tanto em exposições coletivas como em individuais (Bolsa das Artes \ Ricardo Valentim).

Ana Jotta e Ricardo Valentim conheceram-se em 2010, na inauguração de uma exposição da artista na Galeria Miguel Nabinho. Por essa altura já Valentim, sediado em Brooklyn e arredado da cena artística portuguesa, tinha ouvido falar de Ana Jotta, sobretudo através de amigos em comum e de figuras do meio, como Ricardo Nicolau (1976) e Pedro Barateiro (1979). Em março de 2012, por ocasiões profissionais de um e de outro – Valentim preparava a exposição «Ricardo Valentim: Crescimento e Cultura», no Museu de Serralves, e Ana Jotta viera ao Norte para inaugurar uma escultura pública em Guimarães –, voltaram a encontrar-se, iniciando uma troca de ideias que rapidamente se transformaria numa comunicação regular estabelecida por e-mail, carta, postal e telefone (Projeto «… quase tudo o que ninguém sabe!», dez. 2016, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível, p. 2]).

O projeto expositivo «Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C» nasceu desta amizade inusitada entre os dois artistas, e de uma vontade de concretizar um dos muitos projetos que nunca passaram do papel. Em dezembro de 2016, Rita Fabiana, curadora, recebeu um documento precioso, um esboço do que viria a ser a exposição, sintomaticamente intitulado «… quase tudo o que ninguém sabe!». O documento contava a história deste encontro, dos vários projetos partilhados e apresentava a obra de Al Cartio (1951) e de Constance Ruth Howes (1947), pseudónimos de Ana Jotta e Ricardo Valentim, respetivamente (Ibid., [p. 4]).

Valentim tomara contacto com a obra de Al Cartio no verão de 2014; uma figura mítica e surpreendente, que podia equiparar a Constance Ruth Howes. O cenário estava montado: ambas as figuras tinham propriedade, biografia e obra próprias, e alicerçavam a sua existência em participações pontuais relativas à prática de cada artista (Ibid.).

Al Cartio fora criado em 1981 por Ana Jotta. O norte-americano, e amigo de longa data, passara uma temporada na casa da artista, em Lisboa, altura em que produzira alguns trabalhos e participara na bienal de desenho Lis’81, em Belém, que ardera antes da exposição. Se uma parte da obra se perdeu para esse incêndio, a outra parte, que incluía cadernos, desenhos, esculturas e fotografias, ficara guardada na casa de Ana Jotta. Pouco depois, a artista tentaria realizar uma outra exposição, desta vez em conjunto, na Galeria Módulo, mas esta nunca se veio a concretizar (Ibid.).

Constance Ruth Howes fora criada por Ricardo Valentim em 2010. A académica de nacionalidade americana dedicara a sua vida profissional ao ensino de ciência política no Graduate Center, em Nova Iorque. O seu percurso contava com várias publicações referenciadas e algumas colaborações com Ricardo Valentim.

Se Al Cartio reunira um corpo de trabalho considerável, datado nos anos 80, Howes despertara só mais recentemente para um novo passatempo: o da pintura de aguarelas. Em 2015, a reforma proporcionara à autora um longo período de férias no Algarve, durante o qual realizou uma série de aguarelas retratando as paisagens marítimas do sudoeste português, articulando a observação da natureza com as suas próprias reflexões (Fundação Calouste Gulbenkian, CAM – Centro de Arte Moderna \ Agenda: Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C, 2018). Para Howes, a experiência fora única e excecional, resultado do tédio da ocasião, não guardando, por isso, qualquer pretensão de ser exposta, ou de a afirmar como artista. Este conjunto de obras fora, afinal, produzido voluntariamente por Ana Jotta, num cenário em tudo semelhante: aguarelas feitas na praia, durante uma temporada passada no sul do país (Wavelet; Jotta, Coreia, ed. 1, 2019).

Dada a subtileza na criação destas personagens, não se levantariam dúvidas nem aos olhares mais experientes. Com obra e características distintas, partilhavam o mesmo tipo de origem e de existência, cuidadosamente alimentadas pela fantasia dos seus criadores, através de técnicas de simulacro e camuflagem. Além disso, haviam sido criadas inadvertidamente, de forma autónoma, o que levou Ana Jotta e Ricardo Valentim, motivados pela surpreendente coincidência da situação, a decidirem usá-las, partilhando narrativas e questões autorais, mas atuando sempre «a partir dos bastidores» (Projeto «… quase tudo o que ninguém sabe!», dez. 2016, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível, p. 2]).

Assim surgiu a ideia: organizar uma exposição do trabalho recente de Al Cartio e de Constance Ruth Howes, sem desfazer as personagens, ou seja, não revelando ao público a verdadeira natureza do projeto. Al Cartio e Howes seriam apresentados como artistas independentes, postos em diálogo numa exposição comissariada por Ana Jotta e Ricardo Valentim e programada por Rita Fabiana. Tratava-se de um projeto arriscado, profundamente experimental, desenvolvido na esteira de movimentos internacionais como a Crítica Institucional ou a arte conceptual, e que, dada a sua natureza, não podia disponibilizar ao público toda a informação.

Para viabilizar o projeto, os artistas teriam de desenvolver trabalho capaz de o suportar, nutrindo a narrativa ficcional, o universo das personagens, a sua vida e obra. A exposição só alcançaria os seus objetivos, se houvesse material do exterior que a legitimasse, oferecendo provas e alguma explicação do projeto que a sustentava. Assim, além da publicação sobre Al Cartio editada em 2015, procedeu-se à compilação de material inédito, nunca publicado, fruto de uma correspondência regular que Jotta e Valentim iniciaram quando se conheceram, em 2010.

Reunido durante a preparação da mostra, este material – constituído por esboços, desenhos, textos e cartas, ações e obras intervencionadas pelos próprios artistas – seria publicado no formato de um livro. A ideia era dar corpo ao diálogo entre as práticas artísticas de um e de outro, e testemunhar a intensa colaboração pessoal e artística entre Ana Jotta e Ricardo Valentim, dois artistas de gerações diferentes. O título escolhido – Moer – espelhava a relação de partilha e cumplicidade, uma vez que decorria, mais uma vez, de um jogo: na palavra «moi», inscrita num cartão de visita de Ana Jotta, Ricardo Valentim acrescentara à mão as letras «E» e «R», para que se lesse «moer», verbo que sugere uma ação familiar à dos verbos amassar, esmagar, mastigar, esfarelar, e ainda importunar ou chatear (Fundação Calouste Gulbenkian, CAM – Centro de Arte Moderna \ Publication: Moer, 2018).

Desta forma, Moer apresentava-se como um «atlas», um convite a explorar o universo dos artistas, através das conversas mais ou menos visuais sobre tipografia e espécies tipográficas, ou sobre os conceitos fundadores da própria prática artística – autor e autoria, curador, objeto «exposição», e os seus modos de produção e apresentação no espaço do museu (Ibid.).

A publicação seria igualmente entendida como uma exposição. De facto, ocorrendo no espaço das clássicas edições «Série de Cultura Portuguesa» da Fundação Calouste Gulbenkian, desenhadas pelo designer Sebastião Rodrigues (1929-1997), afirmava-se como uma outra forma de expor, através da apropriação de um objeto físico e tipográfico com autoria própria (Ibid.). Moer foi selecionado como um dos 17 livros no âmbito da edição nacional do Prémio Design de Livro 2019. A edição contou com a coordenação editorial de Rita Fabiana e com a participação da designer gráfica Márcia Novais, distinguida por este trabalho no Best Book Design from all over the World 2020, um prémio atribuído pela fundação alemã Stiftung Buchkunst (Ibid.).

Entre 19 de outubro de 2018 e 14 de janeiro de 2019, a exposição «Al Cartio e Constance Ruth Howes. de A a C» ocupou a sala do Espaço Projeto, localizada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Através de um display de natureza escultórica, apresentou um conjunto de 29 obras em papel, pintura e escultura, pondo em diálogo e ritmo alternado palavras, linhas e paisagens marítimas, em articulação com as suas próprias reflexões (Fundação Calouste Gulbenkian, CAM – Centro de Arte Moderna \ Agenda: Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C, 2018).

Pensada como uma apresentação das obras mais recentes dos dois artistas americanos – Al Cartio e Constance Ruth Howes –, a mostra incluiu ainda uma aguarela do artista português João Marques (1882-1973), datada de 1912. Se a ficção criada por Jotta e Valentim declarava que esta obra havia sido adquirida por Howes aquando da sua viagem a Portugal em 2015, o que sugeria uma associação mnemónica ou até mesmo influência sobre a produção das suas aguarelas, a escolha curatorial podia revelar outras ideias, como a vontade de encontrar um contraponto escultórico (derivado da pesada moldura) para dialogar com exit C, de Al Cartio, ou sugerir ainda um questionamento sobre a ideia de cópia, original e autoria no mundo artístico.

À exceção do simples facto de ambos terem visitado Portugal – em 1981 e em 2015, respetivamente –, a obra dos dois artistas carece de outros tipos de coincidência ou território comum. Al Cartio usa a palavra e a linguagem, que indexa em numerosas listas, como uma prática quotidiana de meditação, experimentação artística e crítica (Ibid.).

Apesar do ritmo, o conjunto de pinturas minimalistas com texto, da autoria de Al Cartio, parece ganhar contornos reflexivos quando entra em diálogo com as paisagens abstratas de Constance, realizadas em viagem e resultantes da observação de paisagens marítimas (superfícies rochosas e diversos elementos marinhos).

No quadro do ciclo «Espaço Projeto», a Fundação Calouste Gulbenkian editou um dos Cadernos de Exposição, em formato bilingue português-inglês. Tendo em conta a natureza do projeto e a vontade de o cumprir, a publicação manteve o formato com lista de obras, biografia dos artistas e um texto dos curadores. É de notar, no entanto, a diferença entre a longa extensão dos textos biográficos dos artistas e o texto assinado por Ana Jotta e Ricardo Valentim, «"Folhas Caídas", a propósito de A a C», um texto curto, quase telegráfico, com ideias soltas sobre o que poderia ser a exposição.

Apesar da natureza conceptual do projeto, o número de visitantes registado – quase 10 mil, ao longo dos 76 dias de exposição – confirma o interesse por parte do público nas propostas apresentadas no Espaço Projeto. No que diz respeito aos eventos paralelos, foi organizada uma visita guiada orientada pelos artistas/curadores – Ana Jotta e Ricardo Valentim – e ainda lançado o livro Moer, que obteve grande sucesso, e no qual participaram cerca de 60 pessoas (Relatório de exposição «Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C», 25 fev. 2019, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível]).

Segundo Rita Fabiana, a exposição foi muito bem recebida junto da comunidade artística, que manifestou largamente a sua «franca aceitação» e apreço (Ibid.). Entre os meios de comunicação social, destacam-se uma reportagem televisiva no programa As Horas Extraordinárias, com uma entrevista de Teresa Nicolau à curadora e responsável de programação, Rita Fabiana (As Horas Extraordinárias, 23 out. 2018), uma menção especial na rubrica «Obrigatório», do Expresso, e referências nas edições online de Mundo Português, Guia da Cidade e Guia do Lazer (do jornal Público). Em conjunto com outras duas exposições que inauguraram nesse período no Museu Calouste Gulbenkian – «Pose e Variações» e «Arte e Arquitetura entre Lisboa e Bagdad» –, «Al Cartio e Constance Ruth Howes. De A a C» foi referida em várias notícias online, que replicaram o take da Agência Lusa, concretamente: Diário de Notícias, RTP, TSF, Porto Canal e Sapo.

Na imprensa especializada salientam-se os artigos de Bárbara Valentina na revista Umbigo (Valentina, Umbigo, 7 jan. 2019) e uma entrevista posterior de Christophe Wavelet a Ana Jotta, no jornal Coreia, na qual a relação entre as personagens Al Cartio e Constance Ruth Howes foi abordada (Wavelet; Jotta, Coreia, 21 set. 2019).

Madalena Dornellas Galvão, 2022


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

À Conversa com Ana Jotta e Ricardo Valentim

19 out 2018
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Diálogo entre – De A a C e o livro de artista Moer

9 jan 2019
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Lançamento editorial

Moer. Materials for an Exihibition on Hold

5 dez 2018
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Ana Jotta (à esq.)

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Museu Calouste Gulbenkian), Lisboa / MCG 04822

Pasta com documentação referente à programação das atividades da FCG para os anos de 2017 a 2019. Contém correspondência interna e externa. 2016 – 2017

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos, caderno de exposição, entre outros. 2018

Arquivos Gulbenkian (Serviço de Belas-Artes), Lisboa / SBA 10143

Conjunto de documentos referentes aos artistas Ricardo Valentim e a Rita Sobral Campos, com quem realizou a exposição: «Ricardo Valentim e Rita Sobral Campos»: subsídios, biografia, projeto de exposição. A exposição decorreu em maio de 2002 na Sala do Veado do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. 2002 – 2002

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 02154

Conjunto de documentos referentes à artista Ana Jotta: autos de entrega e certificados de autenticidade de obras, declarações de cedência de direitos de imagem, documentos de contabilidade e e-mails associados à aquisição de obras; ficha de inventário de obras; recortes de jornal do artigo «Zona Jotta» (Vanessa Rato, Ípsilon, 26 set., 2008, pp.34-35), e da crítica às exposições «21 artistes pour demain», na Lisboa20 Artes Plásticas, e «S/He is Her/e», no Chiado8. Arte Contemporânea (Luísa Soares de Oliveira, Ípsilon, 26 set., 2008, p.36), entre outros. 2006 – 2010

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 91677

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2018

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 91196

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 2018

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 89892

Coleção fotográfica, cor: montagem (FCG, Lisboa) 2018


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