Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te

Programa «Espaço Projeto»

Primeira exposição de Sara Bichão na Fundação Calouste Gulbenkian, desenvolvida a partir de uma experiência de quase-morte. Através de desenhos, objetos escultóricos e intervenções, a mostra exibiu os mais recentes trabalhos da artista, e traçou uma narrativa imaginada de um ponto de vista animista, explorando a arte como forma de expiação.
Sara Bichão’s first exhibition at the Calouste Gulbenkian Foundation was inspired by a near death experience. Through drawings, sculptural objects and interventions, the show presented the artist’s most recent work, tracing a narrative imagined from an animist perspective, exploring art as a means of atonement.

Sara Bichão (1986) nasceu em Lisboa, onde vive e mantém o seu atelier. Formada em Pintura, que estudou na licenciatura (2008) e no mestrado (2011), realizados na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, é autora de uma obra promissora, distinguida em 2008 com o BPI Bank Prize/FBAUL (categoria de Pintura), e em 2009 com o prémio Fidelidade Mundial Jovens Pintores, na competição da Anteciparte. O seu percurso conta com várias participações em residências artísticas, entre as quais Residency Unlimited (2012, EUA), ADM-PIRA (2016, México), Cité Internationale des Arts (2019, França) e Porta 33 (2020, Madeira), por exemplo, e com a exposição regular da sua obra, sobretudo em cidades europeias e norte-americanas. Atualmente é representada pela Galeria Filomena Soares (Lisboa) e pela Barbara Davis Gallery (EUA) (Sara Bichão \ Contacts).

A obra de Sara Bichão sempre refletiu uma atração pelo mundo à sua volta. Recorrendo a diversos media, e combinando pintura, vídeo, desenho, instalação, pequenos elementos naturais e objets trouvés, a artista cria os seus trabalhos com a mestria de uma «artesania» informada, procurando estabelecer um diálogo entre as suas idiossincrasias pessoais e o ritmo da poesia mágica e ancestral (Residency Unlimited \ Residencies: Sara Bichão).

Em meados de 2017, enquanto participava numa residência artística em Clermont-Ferrand, uma região limitada pela cadeia montanhosa de Chaîne des Puys, em França, Sara Bichão experienciou o que define como «um encontro com o abismo»: no centro de um lago vulcânico, a artista, hábil nadadora, perdeu as coordenadas do corpo e a certeza de conseguir escapar com vida (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 3]). Num momento que lhe pareceu ter durado uma infinitude, sentiu-se incapaz de avistar as margens e de se mover, como se a realidade magnética da cratera a puxasse para o fundo e para o centro da Terra. Desesperada e esmagada por uma força maior da natureza, viu-se «desligada de si», reduzida à insignificância de uma «partícula menor, sem importância […], memória [ou] história» (Ibid.).

Esse momento fê-la acreditar na possibilidade de uma morte iminente uma possibilidade provável e absolutamente real que se impôs com toda a sua grandeza e a despertou, levando-a a questionar-se sobre o valor da vida e o lugar que ocupamos no universo, como identidades singulares com corpos próprios e como parte de um todo (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 3]).

Envolta na complexidade do plano emocional desencadeado na artista, a experiência na cratera do vulcão tornava-se um marco equiparável a uma epifania, e ganhava um peso determinante (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 4]). Interiormente, registava-se uma mudança de paradigma na forma de ver o mundo e de o sentir, que se refletia na expressão da artista, nos modos de pensar e de agir ao realizar obra e em tudo aquilo que a sustenta: natureza, meios, forma e processo de trabalho. Concretizando essa mudança, a sua obra passou de fruto de um exercício de recoleção livre, a produto de uma operação mais estrita, combativa e documental, além de mais rigorosa na sinalização através da cor e na referência a memórias que confundem a ficção e a emoção «fetichizada» com a crua realidade (Salema, Público, 21 mar. 2018, p. 22).

De facto, a natureza daquela experiência revelara-se inédita desde o princípio: Sara Bichão havia sido escolhida por esse acontecimento que, nas suas palavras, a atacou e quase comeu, e não o contrário (Ibid.). Assim, quando o Museu Calouste Gulbenkian a desafiou a realizar a sua primeira exposição na instituição, a artista admite não ter tido dúvidas sobre o tema a tratar.

A premissa do projeto artístico concebido para a exposição «Encontra-me, Mato-te» partiu da reinterpretação desse grande acontecimento, e das situações por ele provocadas, aos quais a artista acrescentou referências a memórias afetivas, convocadas através de obras que lhes estavam indexadas, e que iam pontuando o espaço da exposição.

Preparada ao longo de vários meses, e especialmente pensada para as salas Espaço Projeto e Polivalente, a exposição reuniu um conjunto de obras composto por uma série de desenhos (Agosto, 2017), uma intervenção (Volta, 2018) e seis obras escultóricas trabalhadas manualmente: Vertigem (2018), Direção (2018), Porto Seguro (2018), Grave (2017), X (2018), Estela (2018).

O projeto foi pensado de forma cuidada e introspetiva, numa espécie de negociação «entre o que poderia ter acontecido e o que não aconteceu», explica a artista (Ribeiro, Correio da Manhã, 23 mar. 2018, p. 54). O título escolhido «Encontra-me, Mato-te» , coincidentemente provocante e ameaçador, comportava essa natureza ambígua, traduzindo um desejo profundo de reproduzir essa «zona de charneira» que vivenciou, apenas para a poder desafiar (Ibid.). Neste sentido, o percurso da exposição seguia o desenho de um «mapa geométrico» traçado no espaço. Tratava-se, afinal, de uma constelação de momentos que guiavam o visitante, dando conta dos vários pontos do acontecimento por que a artista passara, numa réplica do percurso que teve de fazer para se resgatar a si própria (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 4]).

Volta (2018), uma intervenção no átrio do edifício da Coleção Moderna, marcava o início da exposição. Colocada à entrada para o Espaço Projeto, no topo da escadaria que dá acesso ao bengaleiro, permitia alumiar o espaço banhado pela escuridão, como se de um farol se tratasse. Remetendo, desde logo, para «a imagem circular de um poço ou de uma cratera» uma imagem que se viria a repetir ao longo de toda a exposição , era composta por 18 lâmpadas LED que formavam um círculo; entre o vermelho de umas e o azul de outras, duas das lâmpadas permaneciam apagadas, indicando dois pontos cardeais à orientação necessária (Ibid., [p. 5]).

No interior da galeria, o vermelho e o azul das luzes LED emergiam da penumbra. Alastrando-se, criavam a ambiência necessária, análoga ao fundo do mar: bioluminescência ou sobrevivência? Segundo Leonor Nazaré, tratava-se de uma referência à memória somatizada, referência ao quente do corpo, e da reação, ou ao frio da água, do abismo e da perda de sensibilidade (Ibid., [p. 4]).

De uma ponta à outra da sala, em duas paredes opostas, impunha-se Direção (2018), a gigantesca «pista de natação» composta por uma longa tira de pano suspensa pelas pontas, que pendia com o peso de dedeiras de látex insufladas com água. Engolido em tensão pelos quilómetros de tecido em equilíbrio, esse peso tomava como medida de referência o corpo da artista (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 5]).

Vertigem (2018) seguia o mesmo raciocínio: as medidas da manilha de cimento, e das anotações a azul na parede interior, simulavam um poço de cimento com a altura e a largura exatas dos ombros da artista, e a referência a «uma cabeça imaginária a salvo, fora dele» (Ibid.).

X e Grave dispunham-se em dois cantos da sala. Duas figuras antropomórficas cosidas à mão, e que, não surpreendentemente, voltavam a apresentar as dimensões de Sara Bichão. De forma simbólica, cada uma representava um estado de alma.

Se X, «sem pés nem mãos», podia representar a figura condenada pela falência do corpo, a obra Grave era, para a artista, uma «entidade [simultaneamente] protegida e protetora» (Ibid., [pp. 4-5]).

Obedecendo a uma intenção animista, Grave que pode ser «sepultura», em inglês, reenviando para a gravidade da situação, ou que pode estar apenas a falar de uma das forças fundamentais da natureza fora criada num impulso de dádiva e gratidão (Lenot, Artecapital.net, 2018). Encaixando-se numa categoria habitual no corpo de trabalho de Sara Bichão a dos objetos híbridos, construídos através do molde com cimento, ou da justaposição de pequenos desenhos e finas camadas de tinta, da costura de caroços de pêssego comidos por amigos, ou de bocados de um tecido antigo recuperado de uma velha mala que pertencia à sua avó , Grave dava lugar a imagens simbólicas, cheias de significado.

Em Porto Seguro (2018), Sara Bichão elegia uma coleção de pequenas relíquias através de um inventário de materiais pelos quais nutre apego, como por exemplo: terra, algodão, madeira, café, batom de cieiro ou borracha. Um exercício já feito em terra, com os pés assentes no chão, numa lógica semelhante a outras práticas reveladoras de um cuidado e de uma atenção rigorosa, como o desenhar sobre tecido esticado e em tensão Agosto – ou o coser cada ponto e costura num ato de meditação (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 5]).

O trajeto expositivo terminava com um convite para olhar o teto. Na Sala Polivalente, encimando as cadeiras do auditório, fora colocada uma grande esfera de tecido tensionado que circunscrevia uma estrela de 16 pontas, uma obra a que a artista chamou Estela. Se stela é latim para «estrela», em grego significa «pedra alçada», um objeto historicamente usado para comunicar, através de símbolos e inscrições. Mais uma vez, a artista fazia uso desse duplo sentido, criando um objeto votivo pontuado por costuras e medições que dão pistas, e ao qual deu o nome de um astro que guia, por via de uma luz fixa e permanente.

Como Sara Bichão conclui, estas obras são «obcecadas pela ideia de gravidade, do centro, do que é pesado e leve, e como isso determina uma posição identitária no mundo» (Nunes, JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 mar. 2018, p. 23). Informadas por outros saberes, as obras sinalizam o espaço, desenham-no, e revelam-se como testemunho de que «a origem da forma é um mistério bem guardado pela matéria» (Sara Bichão. Encontra-me, Mato-te, 2018, [p. 14]).

Durante os setenta dias em que esteve aberta ao público, a exposição atraiu perto de 12 mil visitantes. Das cinco exposições realizadas até então no âmbito do Espaço Projeto, esta mostra foi das mais visitadas. Os números confirmam o interesse que «Encontra-me, Mato-te» suscitou no público, com avaliações dos níveis de satisfação decorrentes da aprendizagem pessoal, do interesse do tema e da recomendação da visita à exposição a rondar os 70% (Relatório, 6 jul. 2018, Arquivos Gulbenkian, [cota brevemente disponível], pp. 5-6).

No que diz respeito aos eventos paralelos, destacam-se duas visitas orientadas pela curadora e pela artista e uma mesa-redonda. Nesta última, simbolicamente intitulada «Círculo Vertigem», participaram, além de Sara Bichão e da curadora Leonor Nazaré, o geólogo César Freire de Andrade, a antropóloga Sónia Almeida, e Sílvia Rosado, especializada em estética e psicanálise.

A Fundação Calouste Gulbenkian publicou um dos habituais Cadernos de Exposição um projeto gráfico e editorial em formato bilingue português-inglês, que acompanha cada uma das mostras do programa do Espaço Projeto. Nesta quinta edição, a publicação incluiu uma série de fotografias da autora e vistas de pormenor das peças e do espaço expositivo, bem como uma lista de obras, um texto assinado pela curadora Leonor Nazaré e algumas linhas biográficas sobre a artista.

Além do impacto e da boa receção junto da comunidade artística nacional, a exposição recebeu uma atenção considerável por parte dos meios de comunicação social, entre os quais se destacam: uma reportagem televisiva na SIC Notícias (Edição da Manhã, 22 mar. 2018) e outra no programa As Horas Extraordinárias, da RTP, que contou com uma entrevista de Teresa Nicolau a Sara Bichão e a Leonor Nazaré (As Horas Extraordinárias, 4 abr. 2018).

Nos jornais, destaque para o artigo de Luísa Soares de Oliveira, intitulado «Sara Bichão confirma-se como uma das mais interessantes artistas surgidas nos últimos anos» (Oliveira, Público, 21 mar. 2018), e para as críticas de Isabel Salema, «A morte pintada de fresco por Sara Bichão» (Salema, Público, 21 mar. 2018), e de Celso Martins, «Encontra-me, Mato-te» (Martins, Expresso, 30 mar. 2018), que avaliaram a exposição com cinco e quatro estrelas, respetivamente. De notar o contraponto feito com a exposição coletiva «Chama», no Atelier-Museu Júlio Pomar, na qual a artista participava. Noutros dois artigos de natureza semelhante, Maria Leonor Nunes traça um breve e elogioso currículo da artista, admitindo a sua importância no contexto artístico português (Nunes, JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 mar. 2018), e Susana Moreira Marques realiza, antes da abertura da exposição, uma longa entrevista a Sara Bichão, revelando aspetos da sua infância e vida adulta e a forma como viria a profissionalizar-se no meio (Marques, Jornal de Negócios, 9 fev. 2018). «Encontra-me. Mato-te» foi ainda a escolha eleita das rubricas «Obrigatório», do Expresso, e «Fim-de-semana perfeito», da Time Out (21 mar. 2018, p. 43).

Na imprensa especializada salientam-se os artigos de Carolina Machado na revista Umbigo (8 mai. 2018) e de Marc Lenot no jornal francês Le Monde (rubrica «Amateur d’art», sob o pseudónimo Lunettes Rouges) (7 mai. 2018). O texto de Marc Lenot «Les cercles funèbres de Sara Bichão» foi traduzido para português e espanhol e difundido em plataformas online, como Artecapital.net (14 mai. 2018).

Madalena Dornellas Galvão, 2022


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

À Conversa com a Curadora Leonor Nazaré e com a Artista Sara Bichão

24 mar 2018 – 16 mai 2018
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal
Mesa-redonda / Debate / Conversa

O Círculo da Vertigem

2 jun 2018
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Espaço Projeto
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Leonor Nazaré (ao centro)
Sara Bichão

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Museu Calouste Gulbenkian), Lisboa / MCG 04822

Pasta com documentação referente à programação das atividades da FCG para os anos de 2017 a 2019. Contém correspondência interna e externa. 2016 – 2017

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa

Conjunto de documentos referentes à exposição. Contém materiais gráficos e caderno de exposição. 2018

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 51431

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2018

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 50928

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 2018


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