Modernidades. Fotografia Brasileira (1940 – 1964)

Programa Gulbenkian Próximo Futuro

Exposição coletiva com obras dos fotógrafos Marcel Gautherot (1910-1996), José Medeiros (1921-1990), Thomaz Farkas (1924-2011) e Hans Günter Flieg (1923), integrada no Programa Gulbenkian «Próximo Futuro». A convite de António Pinto Ribeiro, coordenador do programa, reuniu-se em Lisboa uma seleção de obras produzidas entre 1940 e 1964, com diferenciadas linguagens fotográficas.
Collective exhibition of works by photographers Marcel Gautherot, José Medeiros, Thomaz Farkas and Hans Gunter Flieg included in the Gulbenkian Next Future Programme. Programme director António Pinto Ribeiro brought together a diverse selection of photographic works produced between 1940 and 1964.

A exposição «Modernidades. Fotografia Brasileira (1940-1964)» foi apresentada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e em Paris, entre 20 de fevereiro e 19 de abril, e 5 de maio e 26 de julho de 2015, respetivamente. A exposição, que reuniu obras de quatro paradigmáticos fotógrafos, Marcel Gautherot, José Medeiros, Thomaz Farkas e Hans Gunter Flieg, foi concebida pelo Instituto Moreira Salles (Brasil) e pelo Museu da Fotografia (Museum für Fotografie) de Berlim (Alemanha), coprodutores do Programa «Próximo Futuro» e da Delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian nesta iniciativa.

Foram várias as circunstâncias que estiveram na origem da mostra «Modernidades. Fotografia Brasileira (1940-1964)», apresentada pela primeira vez entre setembro de 2013 e abril de 2014 no Museu da Fotografia de Berlim. Nessa altura, teve lugar o projeto «Alemanha + Brasil 2013-2014», designação oficial do intercâmbio cultural desenvolvido pela Alemanha, um programa estratégico que o país vinha a replicar há alguns anos como parte da sua política de ação externa. Em anos anteriores, havia sido organizado o programa cultural «Anos Culturais da Alemanha no Exterior», de periodicidade anual, envolvendo países como o Japão, a China, a Rússia e a Índia. O coordenador da secção brasileira do programa de 2013-2014, Claudio Struck, apresentou, no âmbito da organização da extensa iniciativa, os dois curadores que viriam a conceber a exposição «Modernidades. Fotografia Brasileira (1940-1064)»: Ludger Derenthal, diretor do Museu da Fotografia de Berlim, e Samuel Titan Jr., do Instituto Moreira Salles.

Se, por um lado, o Instituto Moreira Salles – entidade privada que tem como missão uma ampla promoção da cultura do Brasil – tinha à sua guarda um conjunto significativo de acervos fotográficos de amplo valor histórico da cultura artística brasileira; por outro lado, o Museu da Fotografia de Berlim, organizava desde 2012 uma série de exposições dedicadas à fotografia nos anos do pós-guerra (de 1945 em diante), uma iniciativa que visava promover o potencial da disciplina como ferramenta essencial dos processos históricos e historiográficos dos diferentes países. Entre os dois curadores, desenhava-se um território comum, base estrutural da conceção e concretização da exposição «Modernidades. Fotografia Brasileira (1940-1964)», e do catálogo respetivo, cujo tema se enuncia no referido título.

O Programa «Próximo Futuro» da Fundação Calouste Gulbenkian (2009-2015) dedicava-se, de um modo geral e a partir de uma esfera geográfica muito abrangente, à investigação e criação artística contemporâneas na Europa, em África, na América Latina e nas Caraíbas. A oportunidade de acolher uma versão desta exposição, ainda que reduzida a metade das obras em relação à sua primeira mostra em Berlim, apresentava-se como determinante para o estudo da formação da fotografia moderna brasileira e um projeto de uma relevância significativa para a compreensão contemporânea do potencial da categoria artística da fotografia nas suas diversas dimensões, nomeadamente na sua vertente intercultural, tão explícita nesta mostra, enquadrando-se inteiramente, desta forma, na missão do entretanto extinto programa da Fundação. Por esse motivo, a curadoria da exposição em Portugal é feita a três mãos, juntando-se António Pinto Ribeiro, coordenador do Programa «Próximo Futuro», a Samuel Titan Jr. e a Ludger Derenthal.

A escolha dos quatro fotógrafos, paradigmáticos da história da fotografia moderna do Brasil, procurou representar uma múltipla diversidade, tanto mais necessária quanto a essência do país assim o determinava. Sintoma de um país com uma extensa área geográfica, com uma história colonial viva, com largos milhões de habitantes, de natureza muito heterogénea, de enormes contrastes paisagísticos, com atmosferas rurais e urbanas muito marcadas, de enormes clivagens políticas, culturais, socioeconómicas, raciais e de costumes, o Brasil resiste permanentemente, quando pensado a fundo, a uma fixação unitária da sua identidade nacional. Por outro lado, o chapéu da modernidade no país, considerando o intervalo cronológico concreto desta mostra, de 1940 (logo após o início da Segunda Guerra Mundial) até 1964 (ano do golpe militar que conduz à instauração da ditadura no Brasil), foi, em grande parte, impulsionado pelas migrações em massa de uma Europa modernista em fuga à guerra, contribuindo ativamente para um desenvolvimento generalizado já em marcha havia pelo menos vinte anos no Brasil (data das primeiras vanguardas modernistas no país), como as efervescentes mudanças políticas, sociais, culturais, e o progresso tecnológico e económico da época faziam notar (nomeadamente do setor da indústria).

Esta circunstância de contágio intercultural reforçou a condição pluralista do Brasil, produzindo variações discursivas, nomeadamente artísticas, declaradamente antagónicas, sem consensos e, muitas vezes, ambíguas. Estas múltiplas camadas de um Brasil plural em modernização estiveram patentes em diversas escolhas na curadoria da mostra, que pretendia revisitar estas questões da época, desde logo apontadas, em literalidade, no título da exposição, através do uso do termo «Modernidades», ao invés de «Modernidade».

A proposta do estudo da formação da fotografia moderna brasileira edificou-se, nesta mostra, através da seleção de quatro fotógrafos com trabalho desenvolvido entre 1940 e 1964, sintetizando estes agentes a força primordial de uma deliberada representatividade cultural: Marcel Gautherot, José Medeiros, Thomaz Farkas e Hans Gunter Flieg são fotógrafos com origens, percursos e interesses distintos, cujos pontos de vista formais e temáticos se complementam e interpelam, sem se confundirem os estilos. Apenas um deles era brasileiro, José Medeiros. Thomaz Farkas era húngaro, Marcel Gautherot era francês, e Hans Gunter Flieg, o único ainda vivo à data, é alemão. Para além da variedade geográfica, estes fotógrafos representam sentidos distintos para a linguagem fotográfica dita moderna. No seu texto de catálogo, Samuel Titan Jr. vai sugerindo um curioso inventário de epítetos para os autores: Marcel Gautherot, «a síntese moderna», Thomaz Farkas, «o vanguardista», José Medeiros, «o fotojornalista», e, poderíamos completar, Hans Gunter Flieg, «o profissional».

Das cerca de 250 fotografias a preto-e-branco apresentadas em Berlim, e especialmente impressas para a mostra, 112 foram mostradas em Lisboa, todas emolduradas em caixilho idêntico e regular, fazendo contrastar, deste modo, a disposição espacial linear das imagens com as múltiplas leituras que as próprias se dispunham a oferecer. Encontravam-se dispostas na sala numa divisão por autor, fazendo uso das paredes simétricas já existentes no espaço. Os núcleos de cada fotógrafo foram enriquecidos por um texto de parede de Vitor Hugo Brandalise, compilado, na íntegra, na 17.ª edição da revista do Programa «Próximo Futuro».

A exposição abria com o núcleo da autoria de José Medeiros, célebre fotojornalista brasileiro, reconhecido pelo seu trabalho nas décadas de 40 e 50 para a revista ilustrada O Cruzeiro. A sua linguagem será indissociável da relação com a imprensa: desde o seu dinâmico registo cosmopolita da cidade do Rio de Janeiro – das praias, das ruas, das festividades da cidade, como o Carnaval, e da representação dos eventos da vida social de várias classes –, até à produção de imagens das tribos do Xingu ou das noviças do Candomblé da Bahia, dotadas de grande carga expressiva. Fruto de uma ação de propaganda, estas séries superaram em muito o mote, dada a sua inegável qualidade artística: «Medeiros chega aqui a um dos pontos altos de sua carreira e faz da imagem não o lugar de uma evidência ingénua, mas uma encruzilhada de vetores ritualísticos, históricos, éticos, e estéticos.» (Modernidades Fotográficas, 2013, p. 15)

A dimensão narrativa e por vezes humanista da sua obra, prodigiosamente captada, não descura um equilíbrio formal dedicado, que se faz notar, nomeadamente, através do valor interpretativo aplicado no enquadramento das imagens, do qual a fotografia de 1952 (capa do catálogo da mostra), Pedra da Gávea, o morro dos Dois Irmãos e as praias de Ipanema e do Leblon, Rio de Janeiro, é exemplar. Na década de 60, Medeiros acaba por afastar-se dos rumos do fotojornalismo, dedicando-se ao cinema, nomeadamente como diretor de fotografia.

Seguia-se o núcleo de Thomaz Farkas, nascido em Budapeste, instalado no Brasil, em São Paulo, em 1939. Farkas foi membro do «Foto Cine Clube Bandeirante», ponto de encontro de uma geração de jovens fotógrafos que procuraram introduzir na fotografia os princípios das vanguardas modernistas dos anos 20 no Brasil. Farkas militou, inclusivamente, pela integração da fotografia na categoria das artes visuais. O seu trabalho foi, nos primeiros anos, marcado por um contínuo jogo de experimentação formal. O seu regresso sistemático, entre 1942 e 1946, à captação de imagens do Estádio de Pacaembu, incluídas na mostra, será um exemplo dessa incansável busca por novas linguagens visuais, variando entre apropriações mais abstratas e outras mais concretas.

As suas imagens apresentam eficazes contrastes de luz e sombra, uma utilização consciente da ferramenta da desfocagem, a produção de enquadramentos invulgares e impregnados de movimento e o recurso a jogos geométricos variados, compostos por linhas, volumes e formas, contribuindo para uma desmaterialização dos elementos fotografados. Na imagem de 1945, Telhas, demoramos a identificar, se nos abstivermos do título, a reprodução dos objetos cerâmicos encaixados uns nos outros, sendo sobretudo o jogo de uma sucessão de linhas repetidas de semicírculos que se impõe ao olhar. Será um exemplo da mencionada perda de referência material, na qual sobressaem valores estritamente estéticos e formais.

Ao longo dos anos, Farkas vai perdendo alguma rigidez visual, e explora certos princípios do fotojornalismo mais próximos de uma componente narrativa. A sua série dos anos 60 de Brasília, descoberta aquando da organização desta exposição, é uma das mais invulgares e criativas abordagens da cidade já produzidas. Não será a monumentalidade da inovadora arquitetura de Oscar Niemeyer que estará no centro do seu registo, mas a relação das pessoas com a cidade (que surge surpreendentemente em segundo plano), apelando a uma certa essência documentalista, caminho que virá a seguir mais tarde, quando se dedicará sobretudo ao cinema.

Marcel Gautherot, francês, foi um declarado amante de viagens. Através das suas múltiplas expedições fotográficas, Gautherot desenvolveu um importante trabalho de redescoberta e reinvenção do encontro entre a cultura popular e a arte moderna, sem folclore, programa vanguardista muito caro aos primeiros modernistas dos anos 20 no Brasil. A sua relação de amizade com Niemeyer foi também determinante na produção das séries fotográficas da cidade de Brasília, à qual teve um acesso privilegiado durante os anos da sua construção. Assim, soma-se ao registo dos «rituais populares e festividades, na selva e entre os pescadores de Belém» e da paisagem da Amazónia virgem, a captação notável dos edifícios modernistas do arquiteto.

O seu estilo será uma combinação cuidada, em grande equilíbrio, entre «narrativa e impacto visual» (Brandalise, Próximo Futuro, 2015, p. 3)), somando ainda a esse fator uma simbologia estética (e também de base política) de grande fluidez formal. A atribuição de valor idêntico a elementos temáticos tão díspares como a natureza, os edifícios, as pessoas e os objetos, bem como a constante sugestão de formas geometrizadas na natureza ou nos cultos ritualísticos, e vice-versa, são exemplos da abordagem característica de Gautherot: a sua imagem Folha de carnaúba, planta do Messejana, no Ceará, c. 1942, poderia ser facilmente confundida com os traços de um edifício modernista. Escreve Samuel Titan Jr., no seu texto de catálogo: «[…] o sabor distintivo da obra de Gautherot não está apenas nessa diversidade de interesses, mas sobretudo em seu desejo de sugerir, pelos meios da fotografia, uma síntese moderna de todos eles. Os ecos formais que perpassam suas imagens são o índice mais patente desse desejo.» (Modernidades Fotográficas, 2013, p. 13) As imagens de Brasília, captadas nos anos 60, atingem uma qualidade reconhecível; nelas, a arquitetura ganha um enorme dramatismo, por vezes quase cenográfico e escultórico: «As suas imagens dos edifícios de Niemeyer […] moldaram a nossa perceção do modernismo brasileiro», fazendo do fotógrafo «o cronista ideal da construção de Brasília» (Brandalise, Próximo Futuro, 2015, p. 7).

Por último, Hans Gunter Flieg partiu da Alemanha para se instalar no Brasil em 1939. Dos quatro fotógrafos selecionados para a mostra, foi o único que se estabeleceu como profissional com um estúdio fotográfico, trabalhando sobretudo por encomenda para grandes empresas, nomeadamente do setor da indústria e do setor comercial. Nunca dissociará da fotografia um lado funcional, essencialmente pragmático e técnico. A sua qualidade de execução, reveladora de um grande conhecimento técnico, produz um legado fotográfico tão importante do ponto de vista do imaginário formal modernista, como do ponto de vista do registo histórico da industrialização do país.

A sua modernidade é indiscutivelmente marcada pela dimensão técnica, progressista e industrial: as suas imagens «metálicas» apresentam monumentais «interiores de fábricas e estruturas de engenharia como complexos industriais, a par de fotografias de stands de feiras profissionais e produtos industriais» (Ibid., p. 9). Mesmo considerando o seu contexto utilitário, estas imagens apresentam um grande dramatismo e um invulgar e dinâmico enquadramento dos elementos fotografados, marcados por vezes por um certo erotismo nas formas, elemento privilegiado da captação de Flieg, e por uma carga onírica própria de uma expressividade em completa dissonância com a despretensão estética e autoral de Flieg. Escreve Samuel Titan Jr.: «Expulsas pela porta da frente, a autoria e a natureza orgânica voltaram pela porta dos fundos e se instalaram no coração desse mundo artificial, dotando-o de uma enigmática vida interior, de uma beleza que não se deixa localizar perfeitamente, e percorrendo uma gama afinal muito rica, que vai do belo ao insólito, do geométrico ao ambíguo». (Modernidades Fotográficas, 2013, p. 18)

Além do universo próprio de cada um dos fotógrafos e dos seus percursos diversos, o inventário temático da mostra, patente nas centenas de obras apresentadas, é nitidamente rico: «[…] a Amazónia intocada; as praias e o quotidiano do Rio de Janeiro; o Carnaval, o futebol; ritos de iniciação de religiões africanas; portos fluviais e pescadores no Norte; indústrias e fábricas; igrejas barrocas; tribos indígenas; ferramentas mecânicas; festas populares; edifícios modernistas; a nova capital, Brasília. Temas tão díspares que aspiram integrar, na mesma época, um retrato do Brasil.» (Brandalise, Próximo Futuro, 2015, p. 4)

A exposição teve uma inscrição mediática bastante ampla, da qual se destaca o extenso artigo de Lucinda Canelas para o jornal Público, intitulado «Absolutamente Modernos». Entre 2013 e 2018, a exposição circulou pelo mundo, tendo sido apresentadas versões dela em Berlim, em Lisboa, em Paris, em Madrid, no Rio de Janeiro e em Poços de Caldas (Minas Gerais). Foi considerada, em 2015, pelo agregador de notícias americano Huffington Post, uma das cinco melhores exposições do mundo para se visitar.

Vera Barreto, 2020


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

[Modernidades. Fotografia Brasileira (1940 – 1964)]

28 fev 2015 – 18 abr 2015
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede – Galeria de Exposições Temporárias (piso 01)
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

Da Guerra ao Golpe (1940/1964). Perspetivas de um Brasil Moderno

28 mar 2015
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Visita(s) guiada(s)

[Modernidades. Fotografia Brasileira (1940 – 1964)]

19 fev 2015
Fundação Calouste Gulbenkian / Edifício Sede – Galeria de Exposições Temporárias (piso 01)
Lisboa, Portugal
Programa cultural

Programa Próximo Futuro

2009 – 2015
Fundação Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Teresa Patrício Gouveia
António Pinto Ribeiro (à esq.), Rosa Figueiredo e Leonor Nazaré (à dir.)
António Pinto Ribeiro (à esq.)
Artur Santos Silva

Multimédia


Documentação


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 106630

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa). 2015

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 106762

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 2015


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