Em torno da ideia de máscara
«Persona significa na origem “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social.»
— Giorgio Agamben
A procura de uma máscara, ou seja, de uma identidade, nem sempre teve um sentido negativo: na Roma antiga, lutava-se por alcançar uma máscara, com um intuito de reconhecimento social. Este «espelho», ou «reconhecimento da sua pessoa», foi durante muito tempo o modo de reconhecimento da identidade pessoal. Mas, como nos conta Agamben, há uma transformação fundamental na segunda metade do século XIX que vai alterar a ideia de identidade: a tentativa de identificar os criminosos reincidentes. A partir daqui, já não são os outros que garantem esse reconhecimento, mas «dados biológicos», isto é, as impressões digitais.[1]
A situação de dupla identidade e duplo sentido não é muito vulgar no trabalho de Jorge Molder, mas justifica em grande parte a referência à duplicidade como característica central da sua obra.
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Na série Não tem que me contar seja o que for, constituída por 32 fotografias impressas a jato de tinta, há referências diretas ao cinema. A obra na qual podemos ver o reflexo de Henry Fonda, num espelho partido, reporta ao filme The Wrong Man [O Falso Culpado], de 1956. O espelho é aqui um fator exemplar da obra de Molder que revela precisamente essa duplicidade e fabricação de uma cópia, perspetivando e questionando o problema da imagem como dupla identidade.
A abordagem em torno da multiplicação das máscaras, que por sua vez cria a falsa ilusão das múltiplas identidades e das memórias, reflete o estado atual da persona.
Hein Semke também procurou no seu trabalho esta relação entre máscara-retrato-duplo, quer em peças de cerâmica – que, habilmente, através de máscaras-rostos representou expressões faciais –, quer por meio de aguarelas que realizou nos anos de 1950.
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Num tom mais autorreferencial, mas, contudo, envolto de uma espécie de névoa, ocultação, máscara, tecidos translúcidos que levam o rosto a formar-se e a esfumar-se, Pedro Cabrita Reis, em Os Cegos de Praga XII, autorrepresenta-se. Embora o autorretrato surja como apagamento – de praticamente todos os traços do rosto – com o contorno claro da caixa craniana, a identidade (para quem conhece o rosto do artista) é facilmente reconhecida.
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Gaëtan, a partir de 1981, dá novas formas ao seu rosto numa série de desenhos que são autorretratos que vai concretizar regularmente. A forma como os realiza vai variando: «Serão máscaras esses rostos desenhados? E sendo máscaras serão máscaras de teatro, de Carnaval ou máscaras funerárias?»[2] Nos cinco desenhos que compõem Troppa Lucce, os retratos do artista são modelados pela luz e pela sombra, alterando a intensidade do registo, através de um traço mais leve ou mais rígido. O registo do rosto revela uma outra identidade, também aqui persona ou duplo do artista.
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Álvaro Lapa introduz, na série que intitula Auto-auto-retratos, de 1971 e 1972, a representação do próprio corpo, contudo focado num conjunto de rostos. Completados com inscrições, traços e cores, os rostos retratados são também máscaras ou rostos ausentes, em que a obra Voici nos Acteurs é disso exemplo.
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O clown, ou palhaço, é também uma persona, considerado um símbolo vivo da nossa cultura, o palhaço toca no cerne da metafísica pelo seu exagero e extrema simplicidade.
Segundo Burnier[3], clown e palhaço são termos que se distinguem, mas em que ambos têm a sua origem na baixa comédia grega e romana e nas apresentações da commedia dell’arte. Em todo o caso, procuram pôr a nu a estupidez humana e relativizar regras e normas sociais.
A figura do palhaço surgiu na cultura popular medieval renascentista em torno do riso. Ao ocupar as ruas, praças, picadeiros e palcos, o palhaço entrou também nas artes visuais, num «novo lugar». Assim, o clown apresenta-se ausente de personagem, imbuído de realidade da humanidade. O clown recupera a natureza humana, nos seus ímpetos sentimentos de alegria e tristeza, dignidade e fraqueza. Talvez por isso haja uma autenticidade do clown: o efeito da máscara está sobretudo direcionado para o exterior, criando uma figura. Ao usar a máscara revela em vez de esconder o que está dentro de si.
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[1] Giorgio Agamben, Nudez, Lisboa: Relógio d’Água, 2009, pp. 61-64.
[2] Gaëtan-Cavaterra, Funchal, Museu de Arte Contemporânea do Funchal – Fortaleza de São Tiago, 1999, p. 5.
[3] Luís Otávio Burnier, A arte de ator: da técnica à representação, 2.ª edição. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2009.