O projeto arquitetónico de Kengo Kuma para o CAM – Centro de Arte Moderna é uma referência ao conceito de engawa [縁側], um espaço de passagem nas casas tradicionais japonesas que não é considerado nem interior nem exterior. Embora o engawa da casa tradicional japonesa, tão central nos filmes de Yasujiro Ozu, seja frequentemente ignorado na atualidade, foi recentemente usado para evocar múltiplos espaços relacionais fora do espaço doméstico.
Assim, o engawa pode ser visto como metáfora para um «espaço liminar», tendo encontrado uma forte ressonância na década de 1980, no Japão e no mundo ocidental, através do conceito de ma [間]. Esse «espaço liminar» facilitou um diálogo comum entre os movimentos artísticos multidisciplinares do Japão no período pós-guerra, dos quais emergiram múltiplas narrativas paralelas que questionam as ficções da história oficial que informava a identidade japonesa.
Engawa constituiu-se, então, como o lugar tangível das gerações do período Heisei (1989-2019), marcado pela rutura da bolha económica e pelo terramoto de Hanshin-Awaji (1995), dois eventos que, em conjunto, representam um ponto de viragem histórico na sociedade japonesa. As suas consequências político-sociais afetaram memórias e mitos, bem como a relação entre a esfera privada e pública. Nas palavras de Timothy Morton, cujo livro O Pensamento Ecológico propõe uma aproximação das noções do estruturalismo e do budismo, trata-se de «observar o que está a mudar perante os nossos olhos, lenta e coletivamente, e de como podemos partilhá-lo com o outro»*. Este pensamento ecológico encontra uma ressonância particularmente forte no Japão. O emaranhamento, nas suas infinitas ligações e diferenças infinitesimais, encontra a sua origem no espaço íntimo, na assim chamada «dividualidade» do indivíduo, o que pode ser traduzido como a multiplicidade do ser correspondente a cada uma das relações que cada entidade (humana ou não-humana) cria. Por outras palavras, levando à confrontação com mundos múltiplos tão habilmente descrita por Keiichiro Hirano**.
Não será assim coincidência que o «Todo-Mundo» de Édouard Glissant tenha conquistado tanta importância no Japão nos últimos vinte anos. O «pensamento de arquipélago», conceito desenvolvido por Glissant, oferece a possibilidade de quebrar o impasse insular e reafirmar uma cultura profundamente multifacetada e em permanente metamorfose: acolhe a experiência subjetiva, redefine a questão da identidade e das fronteiras, abraça o feminino, a vulnerabilidade, a fragilidade e a incerteza, e amplifica a nossa perceção do mundo. Foi a partir desta área de interconectividade ecológica e digital que surgiram novas práticas artísticas inspiradas por um regresso a noções culturais de animismo e pela sua inclusão numa sociedade tecnológica em forte desenvolvimento, servindo de suporte a uma nova geração que emergiu após o desastre de Fukushima, questionando a tangibilidade da nossa vida enquanto seres humanos.
A temporada japonesa no CAM apresentará estes tópicos através de exposições de arte temporal e projetos site-specific, bem como de obras e eventos especificamente encomendados para esta ocasião. Num profundo processo colaborativo com o contexto multicultural de Lisboa e de Portugal, a temporada tem como objetivo evidenciar de que modo as inter-relações entre perceção e emoção criam outras realidades, articuladas com situações sociais e políticas nelas incorporadas, para sugerir poderosas transformações.
* Timothy Morton, The Ecological Thought. Massachusetts: Harvard University Press, 2010 [Edição brasileira: Timothy Morton, O Pensamento Ecológico. São Paulo: Quina Editora, 2023].
** Keiichiro Hirano, La dernière métamorphose. Paris: Philippe Picquier, 2007.