René Lalique e a Mulher-flor
René Lalique (1860-1945) e Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) conheceram-se provavelmente em meados da década de 1890, através da atriz Sarah Bernhardt, grande admiradora do artista.
A amizade de ambos viria, entretanto, a desenvolver-se e a aprofundar-se ao longo de cinquenta anos, tendo o colecionador comprado diretamente ao artista, entre 1899 e 1927, a quase totalidade (com apenas uma exceção) dos cento e setenta e cinco objetos que ainda hoje se conservam no Museu Calouste Gulbenkian.
Motivo de inspiração incontornável na obra de René Lalique, e totalmente impregnado pelo espírito do estilo Arte Nova, a imagem obsessiva da mulher foi simultaneamente sujeito e objeto de algumas das mais ousadas criações do artista.
Este período, que decorreu entre as décadas de 1890 e de 1900 e que correspondeu à fase áurea da sua produção joalheira, coincidiu, não por acaso, com o momento da sua relação amorosa com Alice Ledru, sua musa e mulher.
Inserido no universo mais vasto da imagética feminina omnipresente na obra do artista – de que o peitoral Libélula, a representação de uma figura híbrida de mulher/inseto é o triunfo absoluto –, o tema específico da mulher-flor, tão caro à poesia da época, marcou também de forma determinante a originalidade criativa de Lalique.
O pendente Rosto Feminino (inv. 1141), com centro moldado em vidro opalino, de onde se suspende uma pérola barroca, de influência renascentista, encontra-se envolto por quatro papoilas abertas, em prata patinada, flor emblemática no período Arte Nova, cuja simbologia se encontra associada ao mundo onírico.
O pendente em esmalte vitral Orquídea, símbolo da beleza, símbolo da fecundação, no qual quatro pétalas são rematadas por uma quinta onde surge moldado um rosto feminino em vidro despolido, dá forma ao motivo do eterno encontro entre a mulher e a flor (azul), ou à metamorfose que resulta dessa assimilação, neste caso uma reminiscência romântica do poeta alemão Novalis.
Encontramo-nos, assim, perante um momento único na obra de Lalique, onde o artista atingiu e como confidenciou ao joalheiro Henri Vever em 1895, «quelque chose qu’on n’aurait pas encore vu» [algo nunca antes visto]1.
Pode afirmar-se, por isso, que as suas representações femininas pertencem a um mundo onde, como já foi dito, tudo é referência e correspondência, tudo é eco e resposta, um mundo onde «le labyrinthe de “l’œuvre d’art totale” commence partout et toutes les entrées sont legitimes» [o labirinto da «obra de arte total» começa em qualquer lado e todas as entradas são legítimas]2.
1 Henri Vever, La bijouterie française au XIXe siècle (1800-1900), Paris, 1908, p. 710
2 Claude Quiquer, Femmes et machines de 1900, lecture d’une obsession, Paris, 1979, p.20.