António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa

Exposição retrospetiva da obra de António Ole (1951), percorrendo mais de 50 anos da sua produção criativa. As cidades de Luanda, Los Angeles e Lisboa surgem como estações-base nesse percurso de interculturalidade. Da pintura à escultura, da assemblagem ao cinema, a exposição privilegiou o caráter multifacetado do trabalho do artista angolano.
Retrospective exhibition of the work of António Ole (1951), tracing more than 50 years of the artist’s career. The cities of Luanda, Los Angeles and Lisbon emerge as bases in this intercultural journey. The display of artworks, which range from paintings to sculptures, assemblage to cinema, showcased the multifaceted nature of the Angolan artist’s work.

No trajeto biográfico e artístico de António Ole (1951) há uma triangulação geográfica que sobressai: Luanda, Los Angeles e LisboaFoi esse trânsito intercontinental que deu o mote e o título para a retrospetiva do artista na Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). A exposição inaugurou a 16 de setembro de 2016, ficando patente entre o dia seguinte e 9 de janeiro de 2017. Ocupou o Hall e a Nave do edifício do Centro de Arte Moderna (CAM) da FCG.

Com curadoria de Isabel Carlos, ex-diretora do CAM, e Rita Fabiana, curadora do CAM, o projeto selecionou obras realizadas entre 1970 e 2014, permitindo acompanhar cerca de cinquenta anos da viagem artística de Ole. As fotografias arquivadas revelam como, no espaço expositivo, essa antologia se desdobrava de um modo descontínuo, explorando ligações internas na obra de Ole que não eram meramente regidas pela cronologia.

No Hall do CAM, a introdução ao universo do autor era dada por peças de vários períodos, sintonizando o visitante com algumas das temáticas fundamentais de Ole e com a proliferação de diferentes media que a sua obra envolve. Destaca-se um dos vários murais que intitula Township Wall, neste caso datado de 2004. Consiste em grandes assemblagens de objetos encontrados, apropriados e intervencionados – sinais da via pública, materiais de construção, chapas de zinco, portas e janelas, objetos domésticos e de trabalho –, que sublinham a semiótica da cidade e das suas margens como elemento flagrante da sua produção mais recente.

As dinâmicas sociais que a linguagem da arquitetura denuncia constituem uma parte importante da dimensão sociopolítica que a obra de Ole nunca deixará de afirmar, embora o faça de modos sempre muito diversos e variáveis consoante a obra. O sincretismo com que cruza referências etnológicas com a história contemporânea de Angola e com a atualidade fica bem patente na assemblagem O Mural de Maculusso, de 2014, igualmente apresentada no Hall do CAM, e que era a peça mais recente em exposição. Atualiza em pleno século XXI, de modo assertivo, a conexão de Ole com a Pop Art, que marcou o arranque do seu percurso artístico no final dos anos 60.

Na Nave do CAM consignava-se espaço a esse início, ocorrido em plena Guerra Colonial. Eram mostrados trabalhos sobre papel, realizados a guache e lápis de cor, afirmando proximidades com a banda desenhada e as artes gráficas, nomeadamente imagens da série Paisagem Doméstica (1974) e a obra Sobre o Consumo da Pílula, de 1970 – que suscitou polémica à data da sua primeira apresentação, e que era a mais antiga a ser exposta nesta retrospetiva. Fotografias arquivadas mostram Ole comentando esta peça na visita de imprensa, acompanhado pela diretora, Penelope Curtis (Arquivo Digital Gulbenkian, ID: 3321)

O pós-25 de Abril trouxe uma presença maior da fotografia e do audiovisual à obra de Ole. Nos primeiros anos da independência, o artista trabalha como realizador para a Televisão Popular de Angola, viajando pelo país. Resultam daí algumas das séries fotográficas expostas, como Sem título (série Retratos), de 1973-1979. Também ela aparecia logo no Hall do CAM, adiantando essa fase mais documental do trabalho do autor, e que a exposição desenvolvia a partir da exibição de três filmes seus: O Ritmo do N'Gola Ritmos (1978); No Caminho das Estrelas (1980); Conceição Tchiambula, Um Dia, Uma Vida (1982). Assinalavam a importante etapa cinematográfica do final dos anos 70 e viragem para a década de 1980.

Ole parte para Los Angeles logo em 1981, onde estudará cinema e também cultura afro-americana na University of California. Curiosamente, será após esta etapa norte-americana que o seu trabalho no campo das artes plásticas mais intensificará temáticas de africanidade. Na entrevista do artista por Isabel Carlos, transcrita no catálogo desta retrospetiva, o artista reflete sobre a importância da experiência norte-americana para evidenciar o seu trabalho como um lugar de síntese entre uma cultura africana e uma cultura europeia (António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa, 2016, pp. 93-111). E se a experiência da distância motiva um olhar subjetivo para as raízes culturais, ela revela-se também fundamental, por outro lado, para o esclarecimento de algo que o artista sublinha num testemunho à imprensa a propósito desta retrospetiva: «Sou um artista do mundo [e] considero o rótulo de artista africano demasiado pesado. Não preciso de afirmar a minha africanidade no meu trabalho. Está aqui estampada. Sou um artista que viajo em trânsito. Os sítios onde estive marcaram-me, absorvi sempre deles alguma coisa.» (Marmeleira, Público, 15 set. 2016)

É com essa mentalidade que o artista incorpora referências mais telúricas no regresso a Luanda, num reforço de atenção às mitologias locais, à religiosidade animista, ao fetichismo, rituais, relíquias. Ole reforça que tudo isso são influências inalienáveis de uma cultura tradicional que o afetou, mas que deverá servir como instrumento vocabular para uma obra de contemporaneidade, e não de tradicionalismo (Saraiva, Sol, 16 set. 2016). Entrecruza as suas pesquisas etnológicas com um olhar mais sociológico sobre a realidade de um país historicamente enclausurado entre o colonialismo, do qual se livrara, e o tormento da guerra civil, que agora versava.

Ole começa então a utilizar mais recorrentemente objetos apropriados, processo que se adensará nas assemblagens e instalações dos anos 90, que se tornam cada vez mais multifacetadas nos materiais e tecnologias que integram. Um exemplo notável, entre os vários apresentados nesta retrospetiva, é Hidden Pages, Stolen Bodies (1996-2001), adquirida pela FCG na sequência desta exposição (Inv. 16E1823). Compõem-na o vídeo Luanda, em dupla projeção; oito módulos que apresentam a mesma fotografia fotocopiada, estrategicamente sobreposta com objetos; um conjunto em que a mesma imagem convive com signos gráficos e mais alguns objetos apropriados; dois murais de objetos apropriados e intervencionados pelo autor. O tema de fundo é a escravatura, na exigência por uma outra história que não a oficial, em que o fenómeno do colonialismo possa ser desbravado a partir de uma plataforma de maior autenticidade.

Chegados ao início do século XXI, a prática artística de Ole continua a distribuir-se pelos diversos domínios que o artista foi explorando até então. Esta antologia não deixou de dar nota de como instalações mais intimistas como Pai, de 2006, seriam sucedidas por ambiciosos projetos de grande escala como The Entire World / Transitory Geometry (2010) – intervenção sobre contentores de mercadorias instalados em frente ao Hamburger Bahnhof. A enorme instalação foi instalada em frente à entrada dessa antiga estação de caminho de ferro da ligação Berlim-Hamburgo, transformada em museu de arte contemporânea, e cobria uma boa parte da fachada de um edifício situado nessa praça. Esse projeto é contemplado no catálogo desta retrospetiva, através de vários stills do filme Who Knows Tomorrow, de Heiner Mühlenbrock (António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa, 2016, pp. 178-179).

Com esta exposição, promoveu-se um confronto alargado com a obra de um dos artistas angolanos contemporâneos mais aclamados a nível internacional. O programa de atividades paralelas – que incluiu visitas orientadas e uma visita-oficina centrada no desenho – abriu com uma visita-conversa entre o artista e as curadoras, a 17 de setembro de 2016 (Caderno de exposição. António Ole, 2016).

Segundo documentação interna, a grande afluência de público para esse evento exigiu uma extensão excecional da habitual lotação ótima de 25 pessoas para iniciativas que decorrem no espaço expositivo. Com os ingressos esgotados, mas remanescendo imensas solicitações, a atividade acabaria por contar com cerca de 60 participantes, medida que, ainda assim, não garantiu que todos os interessados pudessem assistir convenientemente à conversa, motivando reclamações de dois visitantes.

A estatística interna da FCG adianta um total de 32 616 visitantes durante os cerca de três meses em que a retrospetiva esteve patente. Merece nota o número significativamente superior de visitantes estrangeiros (24 460, face a 8156 portugueses contabilizados), um padrão que, segundo a mesma documentação, foi comum às outras exposições então patentes (FCG. Museu e Exposições. 16-09-2016 a 09-01-2017, 13 jan. 2017).

Na imprensa, regista-se uma cobertura bastante alargada desta retrospetiva, destacando-se a utilização de testemunhos diretos do autor. Refira-se também uma recensão da mostra, da autoria de Memory Holloway, publicada mais recentemente na revista universitária Portuguese Literary & Cultural Studies, n.º 30/31, 2018).

Daniel Peres, 2019

The life and art of António Ole (1951) revolves around a surprising triangle of locations: Luanda, Los Angeles and LisbonThis intercontinental travel provided the name and the theme of a retrospective of the artist at the Calouste Gulbenkian Foundation (FCG). The exhibition opened on 16 September 2016 and ran until 9 January 2017. It occupied the Hall and the Main Hall of the FCG Modern Art Centre (CAM) building.

Curated by Isabel Carlos, former director of the CAM, and Rita Fabiana, curator of the CAM, the exhibition featured works produced between 1970 and 2014, allowing us to trace almost fifty years of Ole’s artistic journey. Archive photographs show the non-sequential arrangement of works within the exhibition space, exploring connections within the work of Ole that are not defined by chronology alone.

In the Hall of the CAM, visitors were invited into the artist’s world by pieces from various periods, introducing some of the major themes of Ole’s work and the multitude of different media he employs. An immediate highlight is one of a series of Township Walls, this example dating from 2004. It consists of a large assemblage of found, appropriated or modified objects – road signs, building materials, zinc sheeting, doors and windows, household and work-related items –, illustrating how the semiotics of the city and its margins are a vital element of his recent output.

The social dynamics exposed through the language of architecture are an important part of the socio-political dimension that is always present in Ole’s work, under different guises different depending on the piece. The amalgamation of ethnological references with contemporary Angolan history and the present day is palpable in the most recent piece exhibited, 2014 assemblage O Mural de Maculusso, also displayed in the Hall of the CAM. Here, Ole’s affinity with pop art, which defined the beginnings of his artistic career in the late 1960s, are confidently brought up to date for the 21st century.

In the Main Hall of the CAM, space was dedicated to these early years, which coincided with the Portuguese Colonial War. Gouache and coloured pencil works draw stylistically on comic strip art and graphic design, particularly in the images from the Paisagem Doméstica (1974) series and 1970 the piece Sobre o Consumo da Pílula (On Taking the Pill), the subject of great controversy when it was first shown and the earliest piece to feature in this retrospective. Archive photographs show Ole commenting on this piece during the press visit, accompanied by the director Penelope Curtis (Gulbenkian Digital Archive, ID: 3321).

After 25 April 1974 (the end of the dictatorship in Portugal) photography and film would feature more prominently in Ole’s practice. In the early years of Angolan independence, the artist worked as a director for television channel Televisão Popular de Angola, travelling the country. This resulted in some of the photographic series featured, such as the Sem título (Retratos) series from 1973-1979. Also appearing in the Hall of the CAM, this represented a period of the artist’s career more focused on the documentary, which the exhibition explored further by screening three of his films: O Ritmo do N'Gola Ritmos (1978); No Caminho das Estrelas (1980); Conceição Tchiambula and Um Dia, Uma Vida (1982). These reflected his interest in film in the late 70s and the turn of the 1980s.

Ole departed for Los Angeles in 1981, where he studied cinema and Afro-American culture at the University of California. Curiously, it was after this spell in North America that he began exploring themes of Africanness more intensely in his art. In an interview with Isabel Carlos, which appears in the catalogue of this retrospective, the artist reflects on the importance of his North American experience in making his work a place of mixing between African and European culture (António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa, 2016, pp. 93-111). While the experience of distance leads to subjective reflection on cultural roots, it is also a vital element in understanding the comments made by the artist in a press interview about this retrospective: “I am an artist of the world [and] I believe the label of “African artist” weighs too heavy. I do not need to assert my African identity in my work. It is imprinted on it. I am an artist who is always in transit. The places I have been have marked me, I have always absorbed something from them.” (Marmeleira, Público, 15 Sep 2016)

This mindset led the artist to incorporate more earthy references following his return to Luanda, increasingly inspired by local myths, animist spirituality, fetishism, rituals and relics. Ole stresses that while all of this was undeniably influenced by the traditional culture that shaped him, this vocabulary must be used to create works that are contemporary, rather than traditionalist, in their outlook (Saraiva, Sol, 16 Sep 2016). He combines his ethnological enquiry with a more sociological reflection on the reality of a country historically constrained by colonialism, from which it liberated itself, and the torment of the civil war, the aftermath of which it faces to this day.

During this period, Ole began to use more found objects, an approach that became more pronounced in the assemblages and installations of the 1990s, increasingly complex in terms of materials and techniques. One standout example, among the many presented in this retrospective, is Hidden Pages, Stolen Bodies (1996-2001), acquired by the FCG following the exhibition (Inv. 16E1823). This consisted of the video Luanda, projected on two screens; eight panels featuring the same photocopied photograph, strategically overlaid with objects; an assemblage in which the same image sits alongside graphic signs and found objects and two walls made of found objects modified by the author. The dominant theme is slavery, and the demand for a history to counter the official one, as a means of interrogating the phenomenon of colonialism from a more authentic perspective.

At the dawn of the 21st century, Ole’s practice continued to embrace the diverse fields of art he had explored up to then. This anthological exhibition observed how more intimate installations, such as Pai, from 2006, would be succeeded by ambitious large-scale projects like The Entire World / Transitory Geometry (2010) – a piece made of shipping containers located opposite Hamburger Bahnhof. The vast installation was constructed in front of this former station on the Berlin-Hamburg line, now a contemporary art museum, and covered a large proportion of the façade of another building situated in the same square. The project appears in the catalogue of the retrospective in a series of stills from the film Who Knows Tomorrow, by Heiner Mühlenbrock (António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa, 2016, pp. 178-179).

This exhibition presented ample opportunities for engagement with one of the most internationally acclaimed contemporary Angolan artists. The accompanying programme of events – which included guided tours and a tour and workshop focused on drawing – opened with a tour and conversation between the artist and the curators on 17 September 2016 (Exhibition booklet. António Ole, 2016).

According to internal documentation, the large visitor numbers at this event meant it was necessary to increase the usual optimum capacity of 25 for events in the exhibition space. With tickets sold out, there was still great demand and 60 people ultimately attended the event. Given the numbers, not everyone was able to participate in the conversation as they would have liked, leading to complaints from two visitors.

Internal FCG statistics indicate that a total of 32 616 people visited the exhibition over the nearly three months it was on display. It should be noted that a significant majority of visitors were foreign (24 460, compared to 8156 Portuguese), a pattern which, according to the same document, was mirrored by other exhibitions on show at the FCG at the time (FCG. Museum and Exhibitions. 16-09-2016 to 09-01-2017, 13 Jan 2017).

The retrospective received substantial coverage in the press, with comments by the artist himself featuring prominently. A review of the exhibition by Memory Holloway was also published more recently in the academic journal Portuguese Literary & Cultural Studies, n.º 30/31, 2018).


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

Hidden Pages, Stolen Bodies

António Ole (1951- )

Hidden Pages, Stolen Bodies, 1996-2001 / Inv. 16E1823

Hidden Pages, Stolen Bodies

António Ole (1951- )

Hidden Pages, Stolen Bodies, 1996-2001 / Inv. 16E1823


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

À Conversa com as Curadoras. Isabel Carlos e Rita Fabiana com António Ole

set 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

[António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa]

15 set 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Conferência de imprensa. Ana Vasconcelos, Rita Fabiana, António Ole e Penelope Curtis.
Rita Fabiana (à esq.) José de Guimarães (ao centro) e Isabel Carlos (à dir.)
Teresa Gouveia (à esq.) e Penelope Curtis (à dir.)
António Ole (ao centro)
Razmik Panossian (à esq.)

Multimédia


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 3322

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG-CAM, Lisboa) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 3320

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG-CAM, Lisboa) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 3321

Coleção fotográfica, cor: visita guiada à imprensa (FCG-CAM, Lisboa) 2016


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