António Areal (1934-1978) é uma das referências maiores da mediação entre o contexto artístico português e as neovanguardas internacionais nas décadas de 1960 e 70. Da obra artística à crítica, o seu trabalho habitua-nos a constantes questionamentos sobre as linhas mestras da história da arte ocidental. Se isso é transportado discursivamente para a sua escrita, é na pintura, no desenho, na escultura, nas assemblagens e na gravura que se encontram ora os ímpetos, ora a materialização da faceta mais teórica dos seus textos. Fruto de uma digestão atenta dos principais fenómenos artísticos que o rodeavam, a sua obra resultou num caminho multifacetado de inquirição e experimentação, que partiu do surrealismo, ainda nos anos 50, para o informalismo, desembocando depois num neofigurativismo perspicaz, que se problematiza a si próprio e que traz nisso a abstração que lhe servia de antagonista. Em cada um destes volte-faces, Areal terá atingido sempre um terreno consequente, ainda que dedicando pouco tempo a cada uma das muitas fases do seu percurso.

Em fevereiro de 1995, o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) expõe a totalidade de A História Dramática de um Ovo – icónica e longa série que, como várias obras do autor, pronuncia as preocupações reflexivas da sua arte. O folheto editado pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) informa que esta era apenas a segunda vez que se expunha na íntegra este conjunto de 29 peças. Tal só tinha acontecido na sua primeira apresentação nas salas do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), em 1967 (António Areal (1934-1978). A História Dramática de um Ovo, 1995).

Datada desse mesmo ano, a série é composta por 27 pinturas a óleo e esmalte sobre platex e por dois objetos em madeira pintada. Todos estes 29 elementos enunciam geometrias poligonais, sempre nos mesmos tons de vermelho, preto e cinzento, aplicados «a cheio». São planos de cor que perfazem uma espacialidade ambígua – entre uma lógica perspética e a sua perfeita anulação. O dito ovo é recebido nesse ambiente dúbio, testando também ele os limites entre a figuração, a figuralidade e a abstração.

As 27 pinturas são sequenciais. Cada uma delas é como que uma vinheta de uma cadeia de acontecimentos. O ovo, protagonista desta situação, surge «estrelado» ou, se preferirmos, afirmado como círculo amarelo sobre uma forma branca ondulada. Balões de fala e de pensamento – como os da banda desenhada mas vazios de palavra – expressam aparentes interlocuções com este objeto aparentemente tão banal mas aqui tornado tão enigmático. As interpelações vêm do espaço pictórico em volta e das suas extremidades, parecendo até indicar um interlocutor que já está fora do plano do quadro, que está já do lado de cá, do espectador, do público. O ovo vai respondendo, provavelmente interrogando-se também ele sobre a sua natureza. Em duas das pinturas, surge em duplicado, como balão de fala de si próprio, ao passo que, noutras, se eclipsa totalmente.

Desenrolam-se assim 27 etapas de uma mesma situação, de um mesmo enredo mudo. As ancoragens na banda desenhada e no cinema de animação conferem um pendor pop à imagética da série, que se desdobra, por fim, nos dois objetos em madeira que a completam.

Um deles é um cubo – entidade cuja representação era intuída nos planos cromáticos das 27 imagens, e pintado com as mesmas cores que neles predominavam: preto, vermelho e cinzento. O ovo estrela-se agora numa das faces (rachada, por sinal) desse sólido de madeira. Vai aparecer depois esculpido em estado cru, a encimar – intacto e «triunfante» – o outro objeto de madeira que fecha a série.

Com A História Dramática de um Ovo, Areal reveste de humor o debate entre figuração e abstração, parecendo sentenciar uma certa caducidade que esse binómio já apresentava no final da década de 1960. Sobrevoa, a um tempo, a chamada nova figuração, dialogando com as tendências abstracionistas que se lhe iam apondo.

Um artigo de José Luís Porfírio adianta que a série foi instalada no Hall do CAMJAP, o que, segundo o crítico, não deixa de absorver um certo simbolismo, dado que se tratava da antecâmara para as mostras permanentes da coleção de arte moderna portuguesa da FCG. Sendo elas um plano de consagração e legitimação para a arte portuguesa do século XX, o Hall era geralmente lugar para os que Porfírio apelida como «pais» das correntes modernistas em Portugal, como Amadeo, Almada ou Vieira da Silva (Porfírio, Expresso, 25 fev. 1995). O que significaria então encontrar aqui Areal, e com uma proposta tão transgressora de algumas das ideias fortes e debates mais acesos dos modernismos?

À data desta exposição, a então coleção do Centro de Arte Moderna da FCG contava já com as 27 pinturas que tem hoje (Invs. 79P383 a 79P409) e com o cubo em madeira (Inv. 79E1049), pertencente à série. Tinham feito parte de uma volumosa doação dos pais de Areal, em 1979 (ano seguinte ao da morte do artista). O objeto S/ Título (Inv. 13E1752) só seria adquirido em 2013, sendo uma das últimas incorporações do vasto núcleo de peças do autor que atualmente integram a coleção do Centro de Arte Moderna – provavelmente o mais extenso da obra deste artista. Esse acervo reúne presentemente 197 peças registadas. Contempla inclusivamente outras séries «historiadas», igualmente de 1967, e em que também predominam planos em preto, vermelho e um cinza de tonalidade próxima dos 36% – considerado o «neutro» nas escalas da fotografia. Nomeadamente, três óleos da série Scène de Confidence (Invs. 79P1092 a 79P1094) e os seis de O Fantasma de Avignon (Invs. 79P833, 79P646, 79P645, 79P834, 79P835, 79P644). Nesta última série, as meditações autorreflexivas da arte de Areal manifestam-se na relação com a seminal pintura Les Demoiselles d'Avignon (c. 1907), de Pablo Picasso.

É precisamente no texto de apresentação de A História Dramática de um Ovo que Areal coloca o vanguardista espanhol entre «os numerosos autores académicos da pintura moderna [cujo] significado do seu afastamento expressionista [perante o visível] era, ainda, uma dramatização respeitadora e cautelosa» (António Areal (1934-1978). A História Dramática de um Ovo, 1995).

Prémio de desenho na «I Exposição de Artes Plásticas» da FCG (1957), Areal usufruiria de uma bolsa nacional Gulbenkian entre 1960 e 1961 – ano em que participa na «II Exposição de Artes Plásticas» da FCG. Naturalmente, a sua obra tem cruzado a atividade da Fundação em muitas outras ocasiões. Destacam-se a grande retrospetiva de 1990 («António Areal. Primeira Retrospectiva», 1990) ou «António Areal. Duas Sequências Narrativas», de 2000, que voltou a apresentar a série A História Dramática de um Ovo, desta feita em conjunto com O Fantasma de Avignon.

Daniel Peres, 2019