António Areal. Duas Sequências Narrativas

Apresentação de duas das séries icónicas de António Areal (1934-1978): A História Dramática de um Ovo e O Fantasma de Avignon, ambas de 1967. A programação apostou no diálogo entre a linguagem narrativa de Areal e a mostra «Banda Desenhada Portuguesa. Anos 40 – Anos 80», que então decorria na sede da Fundação Calouste Gulbenkian.
Display of two iconic series by António Areal (1934-1978): The Dramatic History of an Egg and The Ghost of Avignon, both from 1967. The programme centred on the relationship between Areal’s narrative language and the Comic Art in Portugal 1940s-1980s exhibition, which was held in the main building of the Calouste Gulbenkian Foundation.

Durante a década de 1960, António Areal (1934-1978) cria várias séries que têm na narratividade uma problemática preponderante. Entre 10 de fevereiro e 9 de abril de 2000, a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) dedicou uma exposição a duas delas: A História Dramática de um Ovo e O Fantasma de Avignon, ambas de 1967.

Sob o título «António Areal. Duas Sequências Narrativas», a mostra foi montada na Sala de Exposições Temporárias do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) (atual Espaço Projeto). Decorreu em simultâneo com «Banda Desenhada Portuguesa. Anos 40 – Anos 80», apresentada na Galeria de Exposições Temporárias da Sede da FCG (piso 01). O CAMJAP, que organizou ambas as exposições, apostou no diálogo entre as linguagens da banda desenhada (BD) e na abordagem de Areal, que em muito as desconstrói (António Areal. Duas Sequências Narrativas, 2000).

É nas 27 pinturas de História Dramática de um Ovo que o autor mais se apropria do universo da BD e do cartoon. Há balões de fala e de pensamento a modelar «problemas de expressão» entre um ovo estrelado e o ambiente pictórico que o envolve. Essas locuções prescindem, no entanto, do uso de qualquer palavra ou onomatopeia fonética. Surgem num cinzento monocromático ou somente com um contorno a branco, dando a ideia de esvaziamento. Ao mesmo tempo que dotam o ovo de intelecto e do dom da fala, os balões reiteram também o seu emudecimento verbal – extensível aos restantes entes pictóricos destas cenas (também eles como personagens nestas sequências de Areal). Por vezes, os balões alocam o seu rastilho ao fundo ou ao sólido geométrico preto e vermelho (transversal a estas sequências), ou «nenhures», a um interlocutor que parece estar fora do plano da imagem (talvez no lugar do espectador, talvez situado noutra pintura). Em dois dos painéis, os balões assumem a forma do próprio ovo estrelado, um deles escondendo-se por trás de um plano bidimensional – idiossincrasias perspéticas que todo este enigmático storyboard promove. No último painel, há um balão que perde mesmo a sua cauda, transmutando-se, ainda mais evidentemente, em suma forma visual.

Ao contrário do que é referido na brochura desta exposição, A História Dramática de um Ovo já tinha sido exposta na íntegra após a sua estreia nas salas do Secretariado Nacional de Informação em 1967. Cinco anos antes desta mostra de 2000, o próprio CAMJAP havia organizado uma exposição em que constaram, para além dos 27 óleos agora revisitados, os dois objetos em madeira pintada que completam o conjunto. São objetos mais escultóricos, mas não menos gráficos. Num deles, o ovo aparece esculpido dentro da sua casca, mas à beira do precipício, equilibrado numa aresta do mesmo sólido preto e vermelho com que coabita nas pinturas. Essa entidade geométrica (transversal a estas sequências de Areal) é corporizada numa estela vertical, onde continua distorcida e bidimensional. O outro objeto tridimensional da série assume a forma de um tarolo de madeira cúbico, com uma pronunciada fissura numa das faces (justamente aquela em que o ovo se estrela novamente).

Como facilmente se percebe, o humor é tão denunciado quanto subtil nestas séries de Areal. Esse é, de resto, mais um dos vários traços a ligá-las à cultura da BD. Mas, como foca Leonor Nazaré no texto curatorial desta exposição, essa partilha começa, ulteriormente, na faculdade de engendrar sequencialidade a partir do que é fragmentário (António Areal. Duas Sequências Narrativas, 2000), pois a BD desenrola-se vinheta a vinheta, tal como estas obras de Areal acontecem de painel em painel. Em ambos os casos, a narratividade é imaginada no salto entre a fixidez de uma imagem e a fixidez da seguinte – processo normalmente mais linear na BD e aqui mais descompassado em Areal. O espectador opera no que é mostrado, mas também labora nas ameias do visível, i.e., trabalha com o que não é visto, e as sequências de Areal sublinham esse «invisível da imagem» como uma região de exercício crítico e conceptual.

Ora, se a tensão entre continuidade e fragmento relaciona a obra de Areal com a BD, relaciona-a também com as lógicas do cinema (em particular do desenho animado, por óbvia afinidade morfológica). Contrariamente à BD, a cinemática do filme – que também acontece de fragmento em fragmento (mas na velocidade que vai de um fotograma a outro) – induz a imagem em movimento através de um mecanismo percetivo subliminar. Faz desaguar o tempo suspenso de cada imagem num fluxo temporal sincronizado. Ainda assim, os cortes entre as cenas e segmentos de um filme não deixam de afirmar a natureza muitas vezes não linear ou descontínua das narrativas do cinema.

As distinções entre cinema e BD estiveram justamente sob análise no Ciclo «BD. Cinema e Espectáculos», paralelo à exposição de BD, que dialogou com esta mostra de Areal. Mas as problematizações da narratividade que o pintor nos traz encetam ainda uma derradeira exploração, igualmente relembrada por Leonor Nazaré. Ela prende-se com a história da pintura e, em particular, com a importância que nela teve o advento do espaço-tempo cubista, semente de tantas conceções antinarrativas. Além de plástico e formal, o questionamento ao cubismo manifesta-se nas «didascálias» visuais com que estas séries invocam a história dessa vanguarda modernista: desde o ovo estrelado (que aparece em obras de Braque), ao temperamental cubo (anedótico ao Cubismo), passando, claro, pela própria citação direta da obra Les Demoiselles d'Avignon (1907), de Picasso, nas seis pinturas da série O Fantasma de Avignon (série com que Areal integrou a representação portuguesa na IX Bienal de São Paulo em 1967).

De resto, tal como outras correntes maiores da arte moderna, o Cubismo é questionado reflexivamente por Areal em vários momentos da sua obra. Conhecido pelo seu empenho teórico, o autor esgrime esses debates ora plasticamente, ora naquilo que escreve. Isso está bem patente no texto «Figuração Abstracta», igualmente publicado no seminal ano de 1967, e reimpresso em ambas as brochuras das mostras do CAMJAP, quer em 1995, quer em 2000.

Segundo o convite para a inauguração, «António Areal. Duas Sequências Narrativas» contou com uma programação de visitas orientadas, a cargo de Emília Ferreira (nos dias 12 de fevereiro, 12 e 25 de março e 9 de abril), «sempre após a visita à exposição» «Banda Desenhada Portuguesa. Anos 40 – Anos 80» (Convite, Arquivos Gulbenkian, CAM 00486). A newsletter da FCG indica que essa atividade recebeu o título temático «A BD na Coleção do CAM» (Newsletter. Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 26, mar.-abr. 2000, pp. 6; 17-18).

As sequências de Areal sugerem que, para as artes plásticas, a narratividade era, na década de 1960, uma postura «antiga», mas contrária a algo de «antiquado». Reclamava um volte-face perante a marca antinarrativa de muita da arte moderna da primeira metade do século XX. No contexto das neovanguardas, as tendências integráveis na chamada «nova figuração» impunham-se agora como uma das pulsões de desatualização e desautorização de alguns dos mais consagrados modernismos. Com sagacidade e humor, Areal ironiza-os, especialmente no que concerne ao binómio abstração/figuração. Formula impasses no interior desse dualismo, estimulando a reflexão sobre o reducionismo excessivo dessa dicotomia – num tempo em que ela ainda animava tantas querelas.

O processo de incorporação destas duas sequências de Areal na Coleção Gulbenkian inicia-se em 1979. Nesse ano, ingressam as seis pinturas de O Fantasma de Avignon (Invs. 79P833, 79P646, 79P645, 79P834, 79P835, 79P644) e as 27 da série A História Dramática de um Ovo (Invs. 79P383 a 79P409), juntamente com a escultura cúbica que a complementa (Inv. 79E1049). O segundo objeto tridimensional do conjunto, com o ovo em vulto redondo, só seria incorporado em 2013 (Inv. 13E1752). Três óleos de uma terceira sequência narrativa, Scène de Confidence (Invs. 79P1092 a 79P1094), também do seminal ano de 1967, constam igualmente na coleção do Centro de Arte Moderna da FCG, cujo acervo inclui atualmente 197 peças do autor.

Daniel Peres, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

A História Dramática de um Ovo - 1 (a 27)

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 1 (a 27), 1967 / Inv. 79P383

A História Dramática de um Ovo - 10

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 10, 1967 / Inv. 79P392

A História Dramática de um Ovo - 11

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 11, 1967 / Inv. 79P393

A História Dramática de um Ovo - 12

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 12, 1967 / Inv. 79P394

A História Dramática de um Ovo - 13

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 13, 1967 / Inv. 79P395

A História Dramática de um Ovo - 14

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 14, 1967 / Inv. 79P396

A História Dramática de um Ovo - 15

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 15, 1967 / Inv. 79P397

A História Dramática de um Ovo - 16

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 16, 1967 / Inv. 79P398

A História Dramática de um Ovo - 17

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 17, 1967 / Inv. 79P399

A História Dramática de um Ovo - 18

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 18, 1967 / Inv. 79P400

A História Dramática de um Ovo - 19

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 19, 1967 / Inv. 79P401

A História Dramática de um Ovo - 2

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 2, 1967 / Inv. 79P384

A História Dramática de um Ovo - 20

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 20, 1967 / Inv. 79P402

A História Dramática de um Ovo - 21

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 21, 1967 / Inv. 79P403

A História Dramática de um Ovo - 22

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 22, 1967 / Inv. 79P404

A História Dramática de um Ovo - 23

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 23, 1967 / Inv. 79P405

A História Dramática de um Ovo - 24

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 24, 1967 / Inv. 79P406

A História Dramática de um Ovo - 25

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 25, 1967 / Inv. 79P407

A História Dramática de um Ovo - 26

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 26, 1967 / Inv. 79P408

A História Dramática de um Ovo - 27

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 27, 1967 / Inv. 79P409

A História Dramática de um Ovo - 3

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 3, 1967 / Inv. 79P385

A História Dramática de um Ovo - 4

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 4, 1967 / Inv. 79P386

A História Dramática de um Ovo - 5

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 5, 1967 / Inv. 79P387

A História Dramática de um Ovo - 6

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 6, 1967 / Inv. 79P388

A História Dramática de um Ovo - 7

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 7, 1967 / Inv. 79P389

A História Dramática de um Ovo - 8

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 8, 1967 / Inv. 79P390

A História Dramática de um Ovo - 9

António Areal (1934-1978)

A História Dramática de um Ovo - 9, 1967 / Inv. 79P391

O Fantasma de Avignon - 1

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 1, 1967 / Inv. 79P833

O Fantasma de Avignon - 2

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 2, 1967 / Inv. 79P646

O Fantasma de Avignon - 3

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 3, Inv. 79P645

O Fantasma de Avignon - 4

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 4, 1967 / Inv. 79P834

O Fantasma de Avignon - 5

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 5, 1967 / Inv. 79P835

O Fantasma de Avignon - 6

António Areal (1934-1978)

O Fantasma de Avignon - 6, 1967 / Inv. 79P644


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

A BD na Colecção do CAM

12 fev 2000 – 9 abr 2000
Fundação Calouste Gulbenkian / Centro de Arte Moderna – Galeria Piso 1
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Periódicos


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Centro de Arte Moderna), Lisboa / CAM 00486

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém correspondência interna e externa; convite; texto curatorial de Leonor Nazaré para o folheto; fotocópias do catálogo da «IX Bienal de São Paulo» (1967), páginas da participação portuguesa desse ano, que incluiu a série «O Fantasma de Avignon» (1967), de António Areal, uma das duas sequências apresentadas no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão em 2000. 2000 – 2000


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