A criação de imagens e de histórias sempre foi, no trabalho de Paula Rego, forma de pronunciação. De investigação sistemática das possibilidades plásticas da pintura, da construção figurativa e narrativa de um momento que emerge do corpo e da ação de personagens projectados. Mas sobretudo um modo de apreensão e reflexão sobre o mundo, de posicionamento sensível e pessoal em relação a temas e acontecimentos, que por razões diversas, estimulam ou desassossegam a artista. Se algumas dessas linhas temáticas são reincidentes, a década de 1960, em particular, é profícua na formação de um discurso onde uma vertente mais politizada investe o seu trabalho. A artista atribui essa atenção à formação desenvolvida pelo contacto com a realidade portuguesa e britânica onde a informação circulava sem as restrições nacionais, e ao tipo de educação recebida no seio de uma família especialmente interessada. A presença do pai como o elemento responsável e motivador é aliás referida repetidamente por Paula Rego. Em 1960 executa Salazar a vomitar a Pátria, cinco anos depois, os Cães de Barcelona onde dá conta de eventos perturbadores ocorridos em Portugal e em Espanha. É neste contexto que se enquadra a pintura Retrato de Grimau, produzida à semelhança das outras obras deste período, numa composição formalmente intensa, perturbadora pela visceralidade e firmeza com que a emoção é transformada através do desenho e da colagem, em imagem. A artista expressa a sua posição, procura tomar voz, resistir à impunidade e à desinformação, sem ser engajada ou se afastar dos propósitos da sua pesquisa pictórica, dar corpo a histórias que organizam o caos percetível do mundo: “É como uma pessoa, uma história. Então o quadro ia-se desenvolvendo conforme as histórias. O quadro puxava a história, a história puxava o quadro. Até se chegar ao fim. Enchia o último canto, estava a história acabada”, dirá em entrevista anos mais tarde.
Evoca-se Julián Grimau, protagonista de um dos momentos mais tensos e arrebatadores da história política contemporânea espanhola. A sua biografia, e especialmente o desfecho que teve, acabaria por cruzar a de outro protagonista da época, a do general Humberto Delgado, militar nascido em 1906, assassinado na fronteira espanhola por agentes da polícia política portuguesa, em 1965, por ter procurado derrubar o regime salazarista nas eleições de 1958. Tal como nas obras destes anos, é o aspecto de dilaceração exposta e recomposta que se evidencia. As figuras são desenhadas, recortadas, truncadas, coladas, de novo pintadas, misturam o gesto da artista com outros materiais, como as folhas de jornal. Apesar de haver uma concentração figurativa e narrativa na secção inferior da tela reforçada pelo cromatismo mais intenso, é talvez a figura dual, bicéfala que quase centra a composição um dos elementos mais enigmáticos da imagem. A par da data suspensa como signo memorial neste palimpsesto. Não é de estranhar que a morte de Grimau tenha sobressaltado Paula Rego. Grimau era polícia de formação, filiou-se no Partido Comunista pouco após o início da Guerra Civil, razão pela qual foi denunciado e detido para interrogatório em Novembro de 1962. Submetido a tortura pela polícia foi defenestrado ficando em coma com lesões de gravidade extrema, enquanto o regime procurava justificar o ato como tentativa frustrada de suicídio e avança com a sentença de morte para o prisioneiro. Numa ação de dimensão invulgar, a comunidade internacional uniu-se em protestos contra a decisão, e personalidades de diversos quadrantes da vida política e pública pediram clemência a Franco e ao seu ministro da Informação Manuel Fraga. A cobertura do evento atravessou as fronteiras espanholas, sobretudo motivada pela eficácia dos movimentos nacionais e internacionais de resistência política. Apesar da contestação, Julián Grimau foi executado na madrugada de 20 Abril de 1963.
Ana Ruivo
Maio 2013