Por Casa(s)
Numa altura em que o confinamento volta a ser uma realidade, com os lugares comuns agora restritos e as pessoas também restringidas à nova «normal» mobilidade, a vivência predominante num mundo virtual passa a ser o dia a dia. As imagens rápidas e a informação lancinante parecem não deixar espaço para contemplar, refletir e estar. Ora, as casas podem também continuar a distinguir-se por serem lugares de intimidade, abrigo e segurança, espaços construtores de memórias, onde agora, mais do que nunca, se partilha a vida pessoal e a realidade profissional, num registo ambivalente, fausto de ideias, palco de re-reorganizações.
As obras de arte enchem-se de espírito avatar, onde o encontro com o interior da casa pode ser mais ou menos profícuo. A ausência humana pode fazer-se sentir, ou a presença pode ser ausência, como reflete o díptico de Filipa César, Product Displacement (2002).
Neste vídeo, as pessoas atravessam a casa mas não comunicam entre si, como se apenas preenchessem a função dos objetos à sua volta. Esta ausência-presença humana é igualmente visível nos espaços isolados de Jorge Varanda, onde as personagens se identificam no ambiente cru, vazio, na própria matéria arquitetónica do espaço pictórico.
A ideia de aparente ausência humana está presente na série de fotografias Vita Brevis, de Maria Beatriz. Embora a abóbora e a toalha deixadas em cima da mesa deixem adivinhar o movimento de alguém que ocupou aquele lugar, esta fotografia deixa um espaço vazio, depurado de poesia e curiosidade.
A intimidade de Emmerico Nunes está refletida na cena noturna e caricata de desencontro entre as personagens: a mulher deitada na cama e o homem a dormir no chão, encostado à cama, transmitem, ainda assim, alguma serenidade.
Sobre os «lugares de memória» de Pierre Nora[1], sítios de lembrança, onde se cristaliza a memória da sociedade e do indivíduo, há um reconhecimento identitário geral e particular. Para Pierre Nora, a memória e a história revelam um confronto entre si. A Memória, com origem nos espaços, nos gestos, nas imagens e nos objetos, é absoluta; ao invés, a História é a relação entre as coisas numa continuidade temporal, envolvendo o relativo. A ideia de memória pode vincular-se precisamente por ser um espaço de identidade, de lugares obrigatórios e necessários.
Assim, na senda dos espaços da memória encontramos Penélope, obra realizada em 2000 por Ana Vidigal, constituída por um colchão coberto de cartas, correspondência que os pais da artista mantiveram durante a guerra. São memórias de vida perpetuadas num espaço pessoal, lugar de amor e intimidade.
Já em Tiempo Sosegado, de 1985, de Esperanza Huertas, a artista espanhola apresenta uma grande quantidade de objetos domésticos espalhados pela sala, entre antiguidades, flores, livros, jogos, uma presença lúdica num colorido inquietante, um lugar necessário.
Com uma função cenográfica instalativa, Sem título (2007/2008) de Heimo Zobernig é uma grande instalação com as longas cortinas RGB (vermelhas, verdes e azuis – utilizadas em planos de fundo de filmagens), que cortam o espaço e criam novos enquadramentos espaciais, visto que as cortinas passam a ser as paredes da casa onde estão pendurados os quadros ou encostadas as estantes vazias de livros. Heimo Zobernig propõe a construção de uma casa, uma casa desafiante, mas também protetora, com uma identidade funcional específica.
[1] Pierre Nora, «Between Memory and History: Les Lieux de Mémoire», in Representations, No. 26, Special Issue: Memory and Counter-Memory, Spring 1989, pp. 7-24.