Uma letra é uma forma

As Escolhas das Curadoras: Leonor Nazaré escreve sobre o trabalho do artista António Charrua e sobre a exposição que comissariou no CAM em 2015.
23 fev 2021

A exposição X de Charrua, que comissariei em 2015 com Ana Ruivo, foi uma das retrospetivas mais desafiantes que me foram dadas a realizar. Mal conhecido e muito pouco estudado, o artista deixou um vasto espólio de pintura, desenho e escultura à data, em grande parte ainda propriedade dos herdeiros.

Como explica Ana Ruivo no seu texto de catálogo, em 1977, António Charrua (Évora, 1925-Lisboa, 2008) «teve um apoio concedido pela Fundação Calouste Gulbenkian que marca definitivamente a pesquisa que tinha em curso sobre as relações entre formas e símbolos, a génese e a transformação da consciência. (…) As suas formas são físicas e simbólicas, imbuídas de realidade e reflexão».

 

Aspeto da exposição «X de Charrua». CAM, 2015

 

Em Charrua, uma letra é uma forma antes de ser um significado. O «X» tão presente, por vezes enorme e dominante, outras discreto e frágil, poderá vir de Tapiès e de outros catalães que viu expostos e o impressionaram. E o «T» de outras pinturas? O «Tau» hebraico? Síntese, afinal, da mais básica ortogonalidade visual?

Charrua diz numa entrevista que o «X» é muito estruturante, mas é também importante porque sendo apaixonado pelas cores fortes, não há cores que se unam às outras sem alguma forma. Através da forma tentava equilibrar uma escrita e uma estrutura: «com os T, as escadas, as barras, os círculos, as portas, a janela, como promessa de qualquer coisa, os labirintos, com mais umas coisas em diagonal, que marcam a fuga». Ficamos a perceber que as letras são estruturas para a cor, mas também que algo de referencial as atravessa.

 

Aspeto da exposição «X de Charrua». CAM, 2015

 

Ana Ruivo refere a dupla aceção que a letra contém de confirmação (de assinatura, de marcação ou apropriação de um lugar, de uma posição) e de negação. Como nos recorda, o primeiro «Grande X» de Charrua surge no arranque da década de sessenta. Já antes havia sido esboçado em duas pinturas. «Se se pensar no X como imensa estrutura organizadora da composição, facilmente chegamos às esculturas de ferro, aos barcos-espantalhos verticalizados na pintura dos anos cinquenta. O “Grande X’ nasce 2as ameaças, do avanço das formas oblíquas a trilhar a tela (…). O X impõe-se como fronteira material e metáfora. (…) A extrema definição com que a forma é apresentada na década de setenta, dará lugar a uma presença simultaneamente desintegrada e esmagadora, em 1988, quando diversos X se multiplicam por trípticos de grandes dimensões, assumindo a cores todo o recorte de forma e fundo». Grande X II surge ainda na encruzilhada dos murais e da tapeçaria que também realizou.

O alfabeto formal com que Charrua trabalhou e a que chamou «as formas principais», teve expressão sintética noutra peça exemplar: O Círculo, o X e a Cruz, de 1992.

 

Visita guiada à exposição «X de Charrua» com a curadora Leonor Nazaré, 2015

 

Leonor Nazaré 
Curadora do Centro de Arte Moderna


As Escolhas das Curadoras

As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.

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