Uma letra é uma forma
A exposição X de Charrua, que comissariei em 2015 com Ana Ruivo, foi uma das retrospetivas mais desafiantes que me foram dadas a realizar. Mal conhecido e muito pouco estudado, o artista deixou um vasto espólio de pintura, desenho e escultura à data, em grande parte ainda propriedade dos herdeiros.
Como explica Ana Ruivo no seu texto de catálogo, em 1977, António Charrua (Évora, 1925-Lisboa, 2008) «teve um apoio concedido pela Fundação Calouste Gulbenkian que marca definitivamente a pesquisa que tinha em curso sobre as relações entre formas e símbolos, a génese e a transformação da consciência. (…) As suas formas são físicas e simbólicas, imbuídas de realidade e reflexão».
Em Charrua, uma letra é uma forma antes de ser um significado. O «X» tão presente, por vezes enorme e dominante, outras discreto e frágil, poderá vir de Tapiès e de outros catalães que viu expostos e o impressionaram. E o «T» de outras pinturas? O «Tau» hebraico? Síntese, afinal, da mais básica ortogonalidade visual?
Charrua diz numa entrevista que o «X» é muito estruturante, mas é também importante porque sendo apaixonado pelas cores fortes, não há cores que se unam às outras sem alguma forma. Através da forma tentava equilibrar uma escrita e uma estrutura: «com os T, as escadas, as barras, os círculos, as portas, a janela, como promessa de qualquer coisa, os labirintos, com mais umas coisas em diagonal, que marcam a fuga». Ficamos a perceber que as letras são estruturas para a cor, mas também que algo de referencial as atravessa.
Ana Ruivo refere a dupla aceção que a letra contém de confirmação (de assinatura, de marcação ou apropriação de um lugar, de uma posição) e de negação. Como nos recorda, o primeiro «Grande X» de Charrua surge no arranque da década de sessenta. Já antes havia sido esboçado em duas pinturas. «Se se pensar no X como imensa estrutura organizadora da composição, facilmente chegamos às esculturas de ferro, aos barcos-espantalhos verticalizados na pintura dos anos cinquenta. O “Grande X’ nasce 2as ameaças, do avanço das formas oblíquas a trilhar a tela (…). O X impõe-se como fronteira material e metáfora. (…) A extrema definição com que a forma é apresentada na década de setenta, dará lugar a uma presença simultaneamente desintegrada e esmagadora, em 1988, quando diversos X se multiplicam por trípticos de grandes dimensões, assumindo a cores todo o recorte de forma e fundo». Grande X II surge ainda na encruzilhada dos murais e da tapeçaria que também realizou.
O alfabeto formal com que Charrua trabalhou e a que chamou «as formas principais», teve expressão sintética noutra peça exemplar: O Círculo, o X e a Cruz, de 1992.
Visita guiada à exposição «X de Charrua» com a curadora Leonor Nazaré, 2015
Leonor Nazaré
Curadora do Centro de Arte Moderna
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As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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