Os Encontros com António Dacosta
Quando terminei a licenciatura em História Moderna e Contemporânea estava certa de que o meu caminho deveria ir ao encontro da História da Arte. Debruçara-me obsessivamente sobre as interrogações que Heidegger deixara em aberto n’A Origem da Obra de Arte, fascinada pela obra que abre e instala um mundo: «Ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplitude e estreiteza»1.
Foi com prazer que no meu primeiro ano de mestrado na FCSH da UNL encontrei António Dacosta. O livro de Rui Mário Gonçalves publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 1984, e o estudo que eu dedicava então ao surrealismo português deixou-me uma mente ávida e sequiosa. Assim, decidi que a minha dissertação seria sobre a obra pictórica de Dacosta, sobre os encontros e desencontros de um artista que deixara de pintar durante quase 30 anos e que, por isso, tinha vivido duas vezes.
Contudo, as vicissitudes da vida, como se costuma dizer, não proporcionaram um fim feliz a este primeiro encontro. Terminei a minha tese de mestrado, anos depois, sobre filmes dos anos 70 de artistas portugueses, como referi em texto anterior.
Mas como a vida dá, em abono da verdade, muitas voltas, António Dacosta veio ao meu encontro em meados de 2010, quando no CAM, sob a direção de Isabel Carlos, se decidiu investigar e trabalhar intensamente este prolífero artista para a realização da exposição do centenário do seu nascimento, que aconteceu em 2014, juntamente com o lançamento do primeiro catálogo raisonné digital dedicado a um pintor português. Foi neste reencontro que, durante anos, me pude dedicar, com uma pequena equipa, à recolha, sistematização e estudo da obra de Dacosta.
Serenata Açoreana (1940, data atribuída) surgiu num contexto muito particular:
(1) fez parte da primeira exposição de cariz inteiramente surrealista em Portugal, apresentada sob a rúbrica gráfica EX POEM, na Casa Repe, em Lisboa, de 11 a 23 de novembro de 1940, ano em que o jovem Dacosta de 26 anos terminou o curso especial de Pintura, depois de passar o verão em casa de António Pedro em Moledo, no Minho, perto da fronteira espanhola. Aí é impressionado pelos refugiados perseguidos pelo regime de Franco, na Guerra Civil de Espanha, que vai claramente deixar marcas nas pinturas produzidas para esta exposição e para o surrealismo português.
(2) Serenata Açoreana foi a capa do livro de Rui Mário Gonçalves, atrás mencionado, que inclui uma análise curiosa sobre o retoque realizado pelo artista, em inícios de 1941, que a escureceu e adensou.
(3) Foi também justamente escolhida como uma das 100 Obras da Colecção do CAM, publicação de 2010 para a qual contribuí com um texto sobre a pintura.
Os encontros ainda não findaram e, em breve, uma nova plataforma do raisonné da obra de António Dacosta será disponibilizada ao público para não nos esquecermos, como o próprio artista escreveu:
«Um quadro tem os seus meandros
Ir além da periferia que o fecha é quase um acto ritual
Nada de equívocos. É preciso olhar, esquecer e esperar»2.
Patrícia Rosas
Curadora do Museu
- Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Lisboa, Edições 70, 2000 [1935], p. 35.
- António Dacosta, «O Pintor Mário Eloy», in Panorama, n.º 20, abril de 1944.
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As curadoras do Centro de Arte Moderna refletem sobre uma seleção de obras, que inclui trabalhos de artistas nacionais e internacionais.
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