Marcelino Vespeira

Samouco, Portugal, 1925 – Lisboa, Portugal, 2002

Vespeira definia a sua apetência artística como uma herança tripla: da mãe, tecedeira de rendas (que descrevia como dotada de “geometria interior”), viria a inventiva e o gosto pelas letras; do pai, o saber da natureza; e da infância moldada na mutável paisagem da beira-rio, com a sua diversidade cultural, o gosto da irreverência e o fascínio pelo mundo. Dotada de grande coerência, a obra de Marcelino Vespeira revela um universo plástico harmonioso, poético e teatral, conjugando um desenho preciso e uma paleta sensual, com rigoroso sentido da luz e com uma inesgotável ironia e alegria de ser.

O caminho que o conduziria às artes, inicia-se na Escola António Arroio, que começa a frequentar com 12 anos e onde conhece Mário Cesariny, Fernando Azevedo e João Moniz Pereira, futuros companheiros surrealistas, e prossegue na Escola de Belas Artes. Com a frequência incompleta do 1º ano de Arquitetura, que abandona por incompatibilidades políticas com o seu diretor Cunha Bruto, começa a trabalhar em artes gráficas. Tem então 18 anos, e a sua atividade profissional passa pelo Estúdio Técnico de Publicidade, de José Rocha, onde colaboram, entre outros, Maria Keil, Bernardo Marques, Ofélia Marques, Fred Kradolfer, Thomaz de Mello, Carlos Botelho, Stuart Carvalhais, e Fernando Azevedo.

A pintura, a que também chega cedo, sem contudo a ter estudado, manter-se-á sempre presente na sua vida. No início dos anos 40 encontramo-lo já nas tertúlias do café Herminius, onde conhece António Pedro, Pedro Oom, Cruzeiro Seixas, Leonel Rodrigues, António Domingues e Fernando José Francisco. Em 1943, expõe pela primeira vez. A mostra, no atelier da Rua das Flores que partilha com Júlio Pomar, Pedro Oom, Gomes Pereira e Fernando Azevedo, é bem recebida pela crítica.

Em 1945, o pintor regista o seu encontro com a estética neorrealista em “Apertado pela fome”, título emprestado de um poema de Paul Éluard. A obra, exposta na primeira Exposição Geral de Artes Plásticas, em 1946, vale-lhe o reconhecimento da crítica. Neorrealista apenas no tema — o autor caracterizava a sua brevíssima passagem pelo movimento como uma “ultrapassagem” —, Vespeira apresenta já uma linguagem formal de pendor expressionista (Manuela Cruz define como tal o período de 1943-47) e que indicia a sua futura e fiel adesão ao movimento surrealista, que se dará em 1947. A partir de então, sem nunca abdicar do seu sentido crítico, da ironia e do sarcasmo, a sua paleta abre-se. Pintura e objetos expressam um notório carácter erótico, dotado de grande sensualidade formal, lumínica e cromática.

A década de 40 aproxima-se do termo quando conhece Fernando Lemos, de quem se tornará “irmão”, numa amizade que os unirá até ao fim. Em 1949, integra a primeira exposição do Grupo Surrealista, no ateliê de António Pedro e de Dacosta. Na pintura cruzará o seu imaginário de origem com todas as formas de encantamento com que se depara ao longo da vida. Assim, a partir do final dos anos 40, formas redondas e pontiagudas conjugam linhas do corpo feminino com o dos toiros (veja-se “Simumis”, de 1949). Encontramos, também, nas suas obras, a presença de elementos florais ou sugestões musicais, que remetem para o seu gosto pelo flamengo e pelo jazz. Em 1954, a sua também breve passagem pelo abstracionismo geométrico serve o seu gosto pelo equilíbrio e simetria compositivos. Nunca, porém, perde a notação musical. Na década de 60, a composição torna-se mais fluída, cromática e formalmente como que a preparar o regresso à gramática do seu surrealismo inicial, que se dá por volta de 1970. Simultaneamente, prossegue o seu trabalho gráfico. Assim, em 1959 — dois anos depois de ter recebido o Prémio Columbano (pintura) — pela mão de Bernardo Marques, então diretor gráfico da Revista Colóquio Artes, inicia a sua colaboração com esta revista. Em 1962, na sequência da morte de Marques, Vespeira substitui-o no cargo (de que se demitirá em 1966).

Na sequência do 25 de Abril de 1974, envolve-se em inúmeras campanhas cívicas e artísticas, como a pintura de murais colectivos. Ficou também célebre a sua máxima “A Arte fascista faz mal à vista” — manifesto compacto e irónico de um programa artístico de liberdade expressiva. A sua simpatia pelo Movimento dos Oficiais fá-lo criar o símbolo do Movimento das Forças Armadas. No início dos anos 80, integrando a colagem, o desenho sintetiza os contornos da paisagem, e da música com as linhas do corpo feminino. Em 1984, ao mesmo tempo que evoluem as obras sobre a garvaia (poema medieval português que serviu de mote a poetas como O’Neill e a artistas como Vespeira), a visita ao Museu de História Natural onde descobre as formas voluptuosas do coco duplo das Seychelles, levam-no a explorar mais profundamente traços de natureza erótica. Nos últimos anos de vida, a doença impediu-o de prosseguir a pintura, tendo então trabalhado mais a colagem. A sua obra seria homenageada pela Câmara Municipal do Montijo, com a criação do Prémio Vespeira, em 1985, e pela AICA que, em 2000, o premiou.

 

Emília Ferreira

Março de 2013

Atualização em 16 abril 2023

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