E Ele é quem estendeu a terra e nela fez montanhas e rios, e de todos os frutos, nela fez um par, um casal. Ele faz a noite encobrir o dia. E em tudo isto há sinais para aqueles que refletem.
— Alcorão 13:3
A Oferta ao Imperador: Círculos de Conhecimento
Intitulado A Oferta ao Imperador: Círculos das Ciências e Tabelas dos Números (Tuḥfat al-Khāqān:Dawāʾir al-ʿulūm wa-jadāwil al-ruqūm), o manuscrito é uma enciclopédia gráfica do conhecimento universal que, segundo a tradição, foi generosamente oferecida pela Formiga ao Rei Salomão. Esta obra foi produzida no Irão do século XIX, como repositório e ponto de confluência de conhecimentos que atravessaram tempos e continentes, tendo sido compilada pelo académico persa Mirza Muḥammad al-Akhbārī (c. 1764-1817).
Recuperar a história deste manuscrito, o seu conteúdo e a sua função, tornou-se o foco da quinta edição de O Poder da Palavra, um projeto curatorial participativo. Após meses de pesquisa colaborativa, filólogos, cientistas, designers, educadores e estudantes universitários conseguiram finalmente decifrar os seus enigmas.
Durante o estudo do documento, dois historiadores da ciência empreenderam uma pesquisa em arquivos internacionais, contactando colegas e analisando catálogos, em busca de exemplares deste texto em todo o mundo. Foram assim descobertos alguns manuscritos semelhantes no Irão, Egito, Qatar e nos Estados Unidos da América, que ajudaram os cientistas a ultrapassar as dificuldades paleográficas e a traduzir e compreender o exemplar pertencente à coleção Gulbenkian. A pesquisa incluiu também a discussão do seu conteúdo com mestres do Islão, especialistas em análise de pigmentos e designers que criaram modelos tridimensionais num workshop FABLAB.
Durante este projeto, Rúben Júnior (Amora, 2001-), um jovem artista, assumiu a responsabilidade de ilustrar os momentos mais relevantes do processo de colaboração que conduziram à exposição na Galeria do Oriente Islâmico. O seu trabalho pode ser visualizado em baixo em Livro de Memórias, Histórias de Detetive
A Oferta ao Imperador é uma maravilhosa visualização de três níveis de informação acerca dos Céus, do Mundo e da Humanidade, apresentada em 108 diagramas circulares e tabela. A dicotomia moderna entre ciência e religião encontra-se completamente ausente, e a informação transmitida é simultaneamente antiga, medieval e moderna. Compilado pelo estudioso persa Mirza Muḥammad al-Akhbārī (c. 1764-1817), os seus conteúdos variam amplamente: textos sagrados e místicos viajam em espirais, medidas para localizar as estrelas e cidades são dispostas como tapetes; hierarquias celestiais e terrenas reverberam através de anéis concêntricos…
Apenas se pode conjeturar sobre a razão pela qual esta informação tão diversificada foi organizada através destas formas geométricas complexas, mas sabe-se que a utilização de diagramas como auxiliares de memória e de compreensão era prática comum durante a Idade Média. A estrutura da alma humana e do intelecto reflete a forma esférica dos céus e dos movimentos celestes.
Do manuscrito ricamente iluminado pertencente ao Museu Gulbenkian destaca-se como produto de luxo, tendo muito provavelmente sido criado para uma personalidade importante. De um modo geral, e a julgar pelas peculiaridades e alterações encontradas nas cópias, este texto parece ter sido visto sobretudo como uma obra talismânica, combinando conteúdos sagrados e científicos com o poder mágico dos números através de figuras geométricas.
Os 108 círculos e tabelas tratam temas tão variados como a conceção do cosmos por Aristóteles, a contribuição de Avicena para a medicina ou os signos do Zodíaco que remontam à antiga Babilónia. De facto, A Oferta ao Imperador testemunha a ampla circulação de conhecimento ao longo de quase 4000 anos, que ultrapassa fronteiras culturais. A partir do século VIII, o árabe tornou-se numa língua universal da ciência, adotada desde o rio Indo até ao Atlântico. Através dela, os estudiosos reuniram, pesquisaram e adotaram ideias de tradições anteriores e desenvolveram-nas.
E Ele é quem estendeu a terra e nela fez montanhas e rios, e de todos os frutos, nela fez um par, um casal. Ele faz a noite encobrir o dia. E em tudo isto há sinais para aqueles que refletem.
— Alcorão 13:3
Este versículo convida a humanidade a refletir acerca dos sinais de Deus no Universo e a procurar o conhecimento. No Islão, esta busca é considerada um dever para todos os crentes. Os muçulmanos acreditam que Deus não tem princípio nem fim, à semelhança do conceito de infinito transmitido pela imagem do círculo.
Muitas sociedades e civilizações muçulmanas davam ênfase à aprendizagem e ao espírito inquisitivo. Muitos pensadores muçulmanos procuraram diversos tipos de conhecimento. A filosofia grega era especialmente apreciada porque enfatizava a utilização do intelecto (‘aql), o que ressoava com os ensinamentos do Profeta Maomé e do Alcorão.
Durante a Idade Média, cientistas muçulmanos contribuíram para todas as áreas do conhecimento mundial, entre os quais se incluem Al-Khwārizmī (f. 847+) que resolveu equações lineares e quadráticas no seu tratado sobre álgebra (o seu nome deu origem ao termo «algoritmo») e Ibn al-Haytham (f. 1040) que foi o primeiro a defender que a visão não ocorre no olho, mas no cérebro – citando apenas alguns exemplos.
O encontro do rei Salomão com a Formiga aparece na página de abertura do manuscrito. Salomão, Sulayman, Shlomo, é um profeta partilhado do Cristianismo, Islão e Judaísmo, conhecido como o «mestre de todas as coisas naturais».
Na história, descrita no Alcorão (27:18), o gigantesco exército de Salomão aproxima-se ruidosamente de um enclave de formigas. A sua soberana apela à comunidade de formigas para que se escondam rapidamente, para não serem esmagadas. Mas Salomão, que é versado nas línguas dos animais, ouve os seus gritos, sorri e desvia o caminho do exército, poupando as formigas. Como recompensa, a rainha oferece-lhe um presente «digno de um imperador», o conteúdo deste livro, escrito em linhas rodopiantes de letra de formiga.
Subjacente à narrativa está uma mensagem poderosa de que, mesmo um comandante rico e poderoso, como o rei Salomão, se mostra humilde diante da sabedoria da pequena formiga, que partilha todo o seu conhecimento universal.
O estudo dos céus e da forma como estes influenciam os acontecimentos terrestres tem sido uma preocupação da humanidade desde os tempos primordiais.
O fólio 20v apresenta uma conceção do universo bem conhecida desde Aristóteles (século IV a.C.). O diagrama central (em cima), representa o Cosmos como postulado por filósofos antigos: os corpos celestes – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno – movem-se em torno do planeta Terra que integra os quatro elementos: Terra (negro), Água (neutro), Água (laranja) e Fogo (dourado). As estrelas atribuídas aos círculos exteriores aparecem de acordo com duas tradições: as Mansões Lunares, um sistema desenvolvido originalmente na China e na Índia, e o Zodíaco, da antiga Babilónia.
Este projeto de investigação não só traduziu o conteúdo árabe como também copiou os diagramas quer manualmente, quer através da edição digital de imagem, como se pode ver em cima. Foram construídos modelos 3D por investigadores de Design e Tecnologia do ESELX-FABLAB que ajudaram a equipa a compreender que estes círculos pretendiam representar esferas. Exemplo disso, é o mobile abaixo, que confere dinamismo e tridimensionalidade ao diagrama do Cosmos.
A tabela à esquerda divide cada signo do zodíaco em secções minúsculas, atribuindo-lhes letras do alfabeto árabe para a criação de coordenadas (fol. 16v). Na imagem à direita, pode ver-se um exemplo de tabelas com valores longitudinais, que eram um elemento fundamental da prática da astronomia nas tradições judaica, cristã e islâmica (fols. 23r-22v).
O estudo dos céus e da forma como estes influenciam os acontecimentos terrestres tem sido uma preocupação da humanidade desde os tempos primordiais.
O fólio 20v apresenta uma conceção do universo bem conhecida desde Aristóteles (século IV a.C.). O diagrama central (em cima), representa o Cosmos como postulado por filósofos antigos: os corpos celestes – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno – movem-se em torno do planeta Terra que integra os quatro elementos: Terra (negro), Água (neutro), Água (laranja) e Fogo (dourado). As estrelas atribuídas aos círculos exteriores aparecem de acordo com duas tradições: as Mansões Lunares, um sistema desenvolvido originalmente na China e na Índia, e o Zodíaco, da antiga Babilónia.
O diagrama As Cinco Luzes da tradição Xiita (fol. 8v) tem sete círculos dourados ao centro que representam os cinco membros do «Povo da Casa» (ahl al-bayt), sendo cada um deles um aspeto do Conhecimento: o Profeta Maomé, o seu primo e genro Ali, a sua filha Fátima, e os seus netos Hassan e Hussein. Os dois círculos restantes correspondem a dois momentos na criação do Universo.
As Cinco Luzes não refletem uma dinastia humana comum, mas uma hierarquia santificada, os cinco princípios da ordem social. A Primeira Luz, o Profeta, encarna o Alcorão. As Luzes orientam e facultam modelos de comportamento humano; tratam da eterna pergunta: «Como devo agir?».
A Oferta ao Imperador termina com o Círculo dos «Reis da Pérsia» (fol. 45r). A ordem dos monarcas é como uma espiral que avança através das dinastias reais da Pérsia. Neste círculo são referidas mulheres poderosas, como a princesa arménia Shirin, que casou com o governante sassânida Cosroes II (r. 590 a 628) tornando-se rainha da Pérsia.
Nesta cena de jardim, Shirin é retratada segurando o retrato de Cosroes II. A sua trágica história de amor foi imortalizada no Shahnama («Livro dos Reis»), assim como pelo famoso poeta Nizami no século XII.
Um círculo, um eixo vermelho, dois pedaços de corda azul, dois pratos… a imagem de equilíbrio, mas equilibrando o quê? Toda a imagem (fol.6v) se relaciona com excertos do Alcorão (principalmente da Sura 55). O prato de ouro (à esquerda) reflete a realidade celestial: planetas, esferas e níveis de luz divina.
Por outro lado, o prato de prata (à direita), apresenta-se manchado com ignorância, corrupção, angústia e tirania. Ao nível humano, este equilíbrio manifesta-se na ética, enquanto o Alcorão o enquadra ao nível mais amplo do Divino:
شَهِدَ اللَّهُ أَنَّهُ لَا إِلَٰهَ إِلَّا هُوَ وَالْمَلَائِكَةُ وَأُولُو الْعِلْمِ قَائِمًا بِالْقِسْطِ
Deus testemunha – e assim também, os anjos e os dotados de ciência – que não existe deus senão Ele, Que tudo mantém com justiça. (Alcorão 3:18)
A partir do diagrama de al-Mizan ou «Balança», foi concebida uma obra tridimensional, que incorpora os elementos estruturais e cromáticos da ilustração. Esta peça demonstra que muitos destes diagramas poderiam ser representações bidimensionais de objetos, ideias, conceitos ou mesmo valores. A Balança é uma promessa, mas também uma advertência, pois os seres humanos quebram o equilíbrio natural por sua conta e risco.
O pequeno círculo A Alma (acima) provém de antigas tradições da Psicologia e Fisiologia, como estudado por filósofos gregos e, posteriormente, por judeus, cristãos e muçulmanos ao longo da Idade Média. O círculo está dividido em dois: a «alma vegetativa» diz respeito aos poderes fundamentais mais simples da vida, «natureza» e «faculdades», enquanto a «alma animal» se relaciona com o «movimento» e a «perceção».
Na exposição, o Círculo das Almas era um objeto interativo que convidava o visitante a explorar o modo como a informação pode ser estruturada em círculos e de que forma esta organização pode moldar a nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
Este diagrama dos Signos do Zodíaco Relacionados com os Sete Planetas provém de um outro manuscrito, da Universidade de Princeton, que foi utilizado pelos investigadores para decifrar as zonas danificadas das páginas do manuscrito do Museu Gulbenkian.
Este Círculo reflete as antigas práticas da astronomia e da astrologia. Combinando cortes radiais e círculos concêntricos, começa por descrever os doze signos do Zodíaco e as constelações que lhes estão associadas. Os outros três círculos exteriores ligam cada um deles a um órgão específico do corpo, a uma pedra preciosa, a um metal e, por fim, a um planeta.
A tabela em baixo, apresenta as correspondências planetárias tal como aparecem no manuscrito. Estas correspondências formavam a base da prática da astrologia em todo o mundo, com aplicações na medicina, cartas astrais, talismãs, etc.
Vermelho escuro, dois tons de preto e o dourado são as cores principais de A Oferta ao Imperador. Análises recentes realizadas por dois cientistas identificaram-nas como carmim de cochonilha, pigmentos de carvão ou cinza-estanho, ouro puro e uma mistura de mínio, vermelhão e auripigmento. Este tipo de estudo confere um novo carácter ao atelier dos artistas, revelando a posse de conhecimentos sofisticados sobre o fabrico de pigmentos, bem como o acesso a dinâmicas redes de comércio internacional, que permitiam adquirir materiais preciosos de lugares longínquos.