Convidados de Verão

Exposição cocomissariada por Penelope Curtis e Leonor Nazaré com o propósito de dinamizar e abrir o Museu a questões e debates da atualidade, atraindo assim novos públicos. Ao longo da mostra da Coleção do Fundador eram propostos encontros inesperados entre obras de períodos distintos, através da introdução de peças de arte contemporânea.
Exhibition co-curated by Penelope Curtis and Leonor Nazaré designed to bring current issues and debates into a dynamic museum space and appeal to a new kind of visitor. The display of works from the Founder’s Collection saw an unexpected mix of diverse periods in history, accomplished by including contemporary art works.

Apresentada paralelamente à exposição «Linhas do Tempo. As Coleções Gulbenkian. Caminhos Contemporâneos» (2016), que punha em confronto a Coleção do Fundador e a Coleção Moderna, esta mostra enunciava uma outra linha programática que seria seguida pela então nova diretora Penélope Curtis: a dinamização e abertura do Museu Calouste Gulbenkian.

Ao longo da mostra da Coleção do Fundador, o visitante era surpreendido com inesperadas relações entre obras de épocas muito distintas. A introdução no discurso expositivo de peças de arte contemporânea, de artistas nacionais e internacionais, revitalizava muitas das obras históricas e desencadeava novos sentidos e reflexões com ligações a problemáticas e debates atuais.

Com cocuradoria de Penelope Curtis e Leonor Nazaré, a exposição estendia-se ao Jardim mediante uma série de intervenções escultóricas de Fernanda Fragateiro (1962), estratégia que alargava os limites do Museu, visando atrair novos públicos.

Como explica Leonor Nazaré, na base desses encontros improváveis estavam diferentes recursos discursivos explorados pelos artistas contemporâneos, ou suscitados pelas suas obras, dos quais faziam parte «a marcação metonímica de um aspeto (Asta Gröting ou Francisco Tropa), a citação desviante (Miguel Branco, Miguel Palma ou Pedro Cabral Santo), a evocação de uma função ou natureza (Wiebke Siem ou Patrícia Garrido), o comentário hiperbólico (Wiebke) ou a deriva e a ressonância formais (Bela Silva, Yael Bartana, Rui Chafes ou Diogo Pimentão)» (Convidados de Verão. Summer Guests, 2016, s.p.).

A exposição tinha início no Átrio do Museu, com uma peça de Francisco Tropa (1968) e uma outra de Asta Gröting (1961). No lugar da escultura Apolo (1790), de Jean-Antoine Houdon (1741-1828), que desde a remodelação de 2001 dava as boas-vindas aos visitantes, o público encontrava o que pareciam ser os «restos mortais» daquele deus grego. O corpo em bronze dera lugar a «órgãos» de vidro e ossos de bronze. A ausência e desmaterialização eram reforçadas pela permanência do plinto da escultura de Houdon. O plinto, elemento elevatório e de sacralização, abandonado pela escultura contemporânea, é objeto de trabalho e reflexão de Asta Gröting. Junto à obra Jean d'Aire, Le Bourgeois de Calais (final do século XIX), de Auguste Rodin (1840-1917), adquirida por Calouste Gulbenkian após a morte do artista, foi exposta Bodenplatte 2 (2013), um molde em resina epóxi da base do grupo escultórico Les Bourgeois de Calais (1889), que revela os pontos onde as vestes e os pés das seis personagens tocam na base, neste caso fechada, como se esta tivesse sido separada e isolada do conjunto.

As supressões ou ausências evocadas por estas peças eram contrapostas, na primeira sala do Museu, com uma figura de forte e inesperada presença. Nesta sala, dedicada ao Antigo Egito, entre máscaras fúnebres em prata dourada e estatuetas de divindades, surgia uma escultura em grés negro de Miguel Branco. Apesar da diferença de escala desta em relação às restantes peças expostas, era evidente a semelhança, em termos formais, com uma estatueta em calcário aí apresentada. Esta última representa um escriba, do século VII a.C., sentado, numa representação indicativa do estatuto de alto funcionário da corte do faraó. É precisamente no que se refere à posição ou postura do corpo, que estas esculturas, com muitos séculos de distância, se aproximam. S/Título (Figura pré-colombiana) (2012-2015) apresenta, no entanto, uma figura com traços simiescos, remetendo para as representações de deuses, que juntam cabeças animais a corpos humanos. Era o caso de Thoth, deus da escrita.

As semelhanças formais estiveram também na base da relação estabelecida entre o baixo-relevo assírio, em alabastro, proveniente do Palácio Noroeste de Nimrud, datado de c. 884-859 a.C., e o filme Baixo Relevo II (1) (2004), da artista israelita Yael Bartana (1970). Esta ligação era ainda reforçada pela situação geográfica comum, o Médio Oriente. O filme de Bartana filtra digitalmente imagens de confrontos em Israel, remetendo criticamente para os relevos dedicados a temas militares, então encarados orgulhosamente.

A exposição prosseguia na sala da arte do Oriente Islâmico, onde alguns tapetes da Pérsia e da Índia se encontram expostos horizontalmente sobre grandes bases ou plintos. Sobre um desses tapetes, suspenso a partir do texto, era apresentado Sem Título (Batedor de Tapetes) (2014), de Wiebke Siem (1954). Enquanto a ampliação do objeto tradicional conferia a este último um valor escultórico, reforçado pelo modo como era disposto, a sua relação com o tapete em exposição podia, em sentido inverso, remeter o tapete para a sua função inicial, ou seja, para a sua dimensão utilitária antes da incorporação no Museu.

Em contacto com a porcelana chinesa e lacas japonesas apresentadas na galeria do Extremo Oriente, foi introduzida em vitrina uma seleção de peças em porcelana e cerâmica de Bela Silva (1966) e pequenas esculturas em massa Fimo de Rui Chafes (1966). O vocabulário das peças de Bela Silva revela claras influências orientais, cruzadas com outras de proveniência distinta. Enquanto estas praticamente se fundiam com as obras da Coleção do Fundador, as pequenas esculturas de Chafes partilhavam apenas com os inrô japoneses a sua escala e minúcia. Em termos cromáticos, estas destoavam claramente das tonalidades das lacas, animando e dinamizando as vitrinas.

A passagem da arte do Extremo Oriente para a arte europeia era feita através de quatro séries de desenhos de Vasco Araújo (1975), intituladas Pink Family (2008), Green Family (2008), White and Blue Family (2008), Armorial Family (2008), remetendo para as designações da cerâmica chinesa. Nestas, sobre folhas coloridas, vislumbram-se representações ténues de vasos e taças desenterrados em buscas arqueológicas, e às quais são associados excertos da obra Olhando o Sofrimento dos Outros, de Susan Sontag, que as dotam de uma dimensão metafórica sobre o tempo, a materialidade e imaterialidade da arte, razão que fundamenta a sua escolha.

As associações cromáticas e materiais, mas também o impacto visual, contribuíram para incorporar Interior (1995), uma peça com ressonância sexual, pertencente à série Jogo de Damas (1995), de Patrícia Garrido (1963), na sala de arte do Renascimento. Esta foi exposta junto a um guarda-sol de veludo vermelho do século XVI, desencadeando possíveis reflexões sobre a imagem da mulher e suas transformações.

O valor cenográfico dos period rooms, modo de exposição caro às artes decorativas, foi levado ao limite com a conjugação de dois trabalhos de Susanne Themlitz (1968) – a pintura abstrata Respiração. Pausa – entre Dois Pontos (2015) e a mesa com objetos Mais Abaixo, Inclinado na Mesa um A1 (2015) – na zona de mobiliário do século XVIII. Nas palavras de Leonor Nazaré, estas obras «correspondem a uma experiência de integração tão imprevista quanto eficaz, atemporal mas sinalizável na sua época», «em deriva surreal» (Convidados de Verão). Ainda nesta sala, e dentro de uma reflexão sobre as estratégias de exposição, era apresentada «Instabilidade» (2005) de Miguel Palma (1964), uma jarra Império exposta numa vitrina, aparentemente como tantas outras. No entanto, o visitante era surpreendido, ao assistir momentaneamente a um movimento de trepidação do objeto naquele espaço contido, presumivelmente de total segurança. Com esta obra, o artista põe em causa as medidas de conservação e proteção que dominam os museus, salientando a sua falibilidade.

Tais mecanismos interferem inevitavelmente no modo como as obras são recebidas. Associada à questão da receção foi introduzida na sala de Pintura e Escultura do Século XVIII, junto a O Naufrágio de um Cargueiro (1810), de William Turner (1775-1851), o vídeo The Turner PIC (2005-2007), de Pedro Cabral Santo (1968), que traduz uma situação presenciada pelo artista durante uma visita àquela sala. Diante da pintura O Naufrágio de um Cargueiro (1810) de William Turner, duas pessoas conversavam sobre ovnis. Esta conversa em pano de fundo interferia inevitavelmente na receção da obra. Ao sobrepor um diálogo escrito sobre uma imagem (plano parado) da referida pintura, o artista leva o espectador a refletir sobre os diferentes sentidos que uma obra pode assumir consoante o contexto em que se insira.

Na sala dedicada a René Lalique (1860-1945), junto ao espelho Serpentes (c. 1899-1900), foi exposto na parede Noeud parallèle (2012), de Diogo Pimentão (1973). Uma vez mais eram as semelhanças em termos formais que, à primeira vista, mais se evidenciavam. O entrelaçado das caudas dos dois animais em bronze, que servia de base ao espelho, encontrava paralelo no nó vertical da escultura de Pimentão. Este movimento ondulatório é contrabalançado pelos corpos eretos das serpentes que compõem as partes laterais da moldura, enquanto o nó vertical transferia dinamismo para o plano despido da parede. Exposta nesta sala, esta peça minimalista adquiria, nas palavras de Leonor Nazaré, «uma tonalidade decorativa», reforçando, por outro lado, o caráter escultórico da peça de Lalique.

No Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, Fernanda Fragateiro procedeu a intervenções escultóricas num dos elementos de mobiliário marcantes deste lugar: os bancos. Materializados em cimento, sob desenho do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (1922-2020), alguns destes corpos foram revestidos com chapas de aço. Com esta ação, a artista reforçava o valor escultórico destes elementos, antes de mais utilitários. Por outro lado, a superfície espelhada, ao captar a natureza envolvente, parecia produzir uma espécie de anulação da sua presença, estática e inanimada, passando a refletir a vida do Jardim.

Para acompanhar esta exposição foi produzido um caderno que inclui um texto de Leonor Nazaré e imagens de todos os encontros criados, complementadas por breves textos explicativos disponibilizados no website do Museu.

A receção da crítica a esta exposição foi bastante positiva. Ao fazer o balanço das exposições de 2016, Celso Martins afirma: «A reorganização das coleções Gulbenkian deu origem a exposições de valor diferenciado. Convidados de Verão foi a mais interessante.» (Martins, Expresso, 23 dez. 2016, p. 79)

Inauguradas ao mesmo tempo, e ambas cruzando obras de períodos distintos, estas exposições foram na maioria dos artigos analisadas paralelamente. Para Isabel Salema: «As relações atemporais e intemporais, como lhes chamou Leonor Nazaré, entre o contemporâneo e a Colecção do Fundador, parecem mais interessantes e subtis na exposição Convidados de Verão.» (Salema, Público. Ípsilon, 1 jul. 2016, p. 12)

Também Nuno Crespo, que tinha sido bastante crítico em relação a «Linhas do Tempo», dá preferência a esta exposição: «No interior do Museu Convidados de Verão inicia um fértil diálogo com outros tempos e outras formas artísticas. O modelo não é novo e José Pedro Croft, Paula Rego e Manuel Botelho já tinham feito intervenções em diálogo com o Museu e o seu capital simbólico e artístico. Desta vez há uma viagem pelo tão eclético interior do Museu conduzida por notáveis artistas que conseguem estabelecer diálogos intensos e, sobretudo, trazer para o nosso tempo as peças do museu.» (Crespo, Público. Ípsilon, 1 jul. 2016, p. 13).

Este último aspeto foi também salientado e elogiado por Celso Martins, num artigo escrito aquando da inauguração da mostra: «Quando as obras de arte se encontram no mesmo espaço independentemente das suas muito distintas origens temporais alguma coisa soçobra na nossa tendência de amarrar uma obra de arte ao seu contexto histórico. Mas para isso é preciso que o que nessas obras desafia a temporalidade seja realmente ativado trazendo as que vêm do passado e as do presente para o tempo reconfigurado da exposição. Esse é o grande triunfo desta mostra e isso passa também pelo modo como ela se constrói numa teia de relações comunicantes que se manifesta nas obras e na organização e na natureza simbólica do próprio espaço expositivo. Acrescente-se que esta é uma forma inteligente de misturar públicos […] que com alguma facilidade se tornam estanques.» (Martins, Expresso, 6 ago. 2016, p. 84)

Mariana Roquette Teixeira, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

The Turner PIC

Pedro Cabral Santo (1968-)

The Turner PIC, 2005/07 / Inv. IM29


Eventos Paralelos

Visita(s) guiada(s)

À Conversa com a Co-curadora Leonor Nazaré

jun 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal
Visita(s) guiada(s)

À Conversa com as Curadoras. Penelope Curtis e Leonor Nazaré

set 2016
Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian
Lisboa, Portugal

Publicações


Material Gráfico


Fotografias

Penelope Curtis (ao centro), Artur Santos Silva (à dir.) e José Manuel Neves Adelino (à dir.)
Artur Santos Silva, Teresa Gouveia e Leonor Nazaré
Teresa Patrício Gouveia (à esq.), Artur Santos Silva (ao centro) e Leonor Nazaré (à dir.)
Artur Santos Silva
Artur Santos Silva (à esq.) e Guilherme d'Oliveira Martins (à dir.)

Multimédia


Periódicos


Páginas Web


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Museu Calouste Gulbenkian), Lisboa / MCG 04397

Pasta com texto sobre a exposição. 2015 – 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 3191

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 2989

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2016

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 2989

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 2016


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