Meeting Point: Fantin-Latour, Manuel Botelho

Iniciativa «Meeting Point»

Segunda edição do projeto «Meeting Point», comissariado por Helena de Freitas e Raquel Henriques da Silva. Iniciativa inovadora que pôs em diálogo as duas coleções do acervo do Museu, abordando o tema da natureza-morta através da obra de Fantin-Latour (1836-1904) e de Manuel Botelho (1950).
Second edition of the “Meeting Point” project curated by Helena de Freitas and Raquel Henriques da Silva. This pioneering initiative brought together the works of Fantin-Latour and Manuel Botelho, two collections in the Museum’s reserves, in a display on the theme of still life.

Segunda edição do projeto «Meeting Point», organizado pelo Museu Calouste Gulbenkian (MCG) da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) e comissariado por Helena de Freitas e Raquel Henriques da Silva. Depois de uma primeira edição dedicada ao tema «Tempo», num frente a frente entre a obra de Rembrandt (1606-1669) e de Paula Rego (1935-2022), na segunda edição foi o tema «Natureza-Morta», através do confronto entre a obra de Henri Fantin-Latour (1836-1904) e a de Manuel Botelho (1950), o ponto de partida para o diálogo entre dois artistas aparentemente em conflito. A mostra esteve patente de 26 de junho a 26 de novembro de 2015, no corredor entre a Galeria de Arte do Extremo-Oriente e a Galeria de Arte Europeia do MCG.

A exposição juntou trabalhos separados por mais de uma década: Natureza-Morta ou «La Table Garnie» (1866) (Inv. 67), de Fantin-Latour, e as fotografias 100.rç-cmb (2007-2008) (Inv. FP556) e 101.rç-cmb (2007-2008) (Inv. FP557), da série Confidencial/desclassificado: ração de combate, de Manuel Botelho. Tal como na primeira edição de «Meeting Point», a escolha de obras à partida tão dissemelhantes teve como objetivo promover novas leituras e olhares atualizados e interativos sobre os objetos da coleção do MCG, de modo a expandir infinitamente as suas possibilidades de encenação e interpretação. Helena de Freitas queria que este novo «encontro» (por alusão ao primeiro) fosse «igualmente improvável e perturbador» (Meeting Point: Fantin-Latour, Manuel Botelho, 2015, p. 11).

Também Manuel Botelho, inicialmente, achou a junção da sua obra com a de Fantin-Latour incompreensível: «Pensei, aliás, que tinham enlouquecido quando me falaram deste encontro, mas depois fui vendo as coisas de outra maneira. Aquela pintura aparentemente muito decorativa, bonita, esconde muita coisa. E usa uma série de dispositivos de composição que eu também uso, com objectivos completamente diferentes.» (Canelas, Público, 31 jul. 2015, p. 14)

As comissárias pensaram expor também a peça 211.parad (2014-2015) (Inv. 15FP584) de Manuel Botelho, razão pela qual esta surge no catálogo, mas tal não chegou a acontecer.

O tema «natureza-morta» foi desenvolvido por ambos os artistas a partir de uma composição fictícia, ou seja, da disposição de objetos reais para a representação de uma cena que nunca chegou a acontecer, mas a sua concretização é muito diferenciada quer na escolha dos elementos, quer na produção de significados. «Sob a luz doméstica e difusa de Henri Fantin-Latour vemos a toalha branca sobre a mesa, a transparência dos vidros, a estrutura delicada das flores e dos frutos, a faca imaculadamente limpa para os abrir. Nas rações de combate de Manuel Botelho, o foco de luz de um candeeiro rude ilumina o dinheiro sujo, as cartas viciadas, as garrafas bebidas, os vidros opacos, as facas manchadas, os gestos corrompidos», como descreveu Helena de Freitas no catálogo da exposição (Meeting Point: Fantin-Latour. Manuel Botelho, 2015, p. 13).

Segundo Helenas de Freitas, apesar da aparente oposição no rigor da composição, a associação destes dois artistas surgia como contexto visual de desordem, plasmada na representação de espaços de inquietação e dissonância, registados ora através da pintura, utilizada com uma intenção fotográfica, ora através da fotografia, quando adquiria traços de pinturas (Ibid., pp. 11-12).

A natureza-morta foi desenvolvida por Fantin-Latour como campo de experimentação, muito apreciado pelo artista, que produziu inúmeras pinturas neste género. La Table Garnie, primeiramente apresentada no «Salon de Paris» em 1866, surge no contexto artístico da pintura francesa do século XIX, numa cultura de tensão entre a aprovação do «Salon», exposição oficial da Académie des Beaux-Arts, e o desejo de reforma dos artistas. Na obra exposta, sobressaem sobre o fundo negro «pêssegos e figos à esquerda, morangos e hortênsias harmoniosamente dispostas numa jarra esférica ao centro, cerejas e groselhas à direita» (Ibid., p. 81).

As fotografias de Manuel Botelho partem da natureza-morta, através da disposição de elementos (e da corroboração do tema pelos próprios títulos), para a construção de uma memória coletiva, que, neste caso particular, evoca a Guerra Colonial, trazendo-a para o campo da arte contemporânea. O retrato da guerra é definido através de objetos como armas, dinheiro e balas, e convoca memórias e emoções dos que por ela passaram ou sobre ela narraram as suas experiências. O processo artístico para estas composições assentou, numa primeira fase, na respiga etnográfica, tendo Manuel Botelho sondado intervenientes nos combates, trabalhando, depois, as suas histórias de um ponto de vista exterior, já que, não obstante ter sido convocado para a guerra aos 18 anos, o artista nunca chegou a partir.

Apesar de todas as diferenças que separam os trabalhos de Henri Fantin-Latour e de Manuel Botelho, um elemento fazia a ponte entre os dois: a presença afirmativa de uma faca pousada na diagonal, na direção da qual a atenção do espectador era guiada. Sobre a presença deste elemento na pintura de Fantin-Latour, Raquel Henriques da Silva sugere tratar-se de um apontamento contrastante numa composição, em geral, luminosa e delicada, por trazer à leitura da obra um «ligeiro movimento de inquietação» (Ibid., p. 22).

A ligação entre as duas obras é estabelecida por Raquel Henriques da Silva através do conceito de presença-ausência, descrito por Roland Barthes no livro A Câmara Clara, de 1980. Neste, o significado de uma imagem subsiste autonomamente, distanciando-se do seu referente visual e deixando de remeter para ele, para assumir uma identidade própria. É o que acontece em ambas as obras: apesar de visualmente figurativas, nem a pintura de Fantin-Latour nem as fotografias de Botelho visam o registo de um momento acontecido, mas antes a criação de um significado novo, através dos elementos que constituem as composições. Como afirmou Raquel Henriques da Silva, «elas são plena construção» (Ibid., p. 25).

Também a morte surge como elemento de união entre as duas obras. «É curioso pensarmos [...] que os ingleses chamam à natureza-morta still life, que numa tradução directa será qualquer coisa como “ainda vivo”. Na fotografia de Manuel Botelho, acho-me no intervalo de uma guerra. Nos dois artistas – e nestas obras em particular – a morte está presente de maneiras muito diferentes, mas está lá», notou Helena de Freitas em entrevista ao Ípsilon (Canelas, Público, 31 jul. 2015, p. 15).

A exposição foi acompanhada por uma publicação bilingue (em português e inglês), com textos de Helena de Freitas, Raquel Henriques da Silva e Luísa Sampaio, e design de Vera Velez. Tal como o catálogo que acompanhou a edição anterior de «Meeting Point», esta publicação foi editada em pequeno formato, sublinhando o sentido pedagógico da mostra, e incorporou o «princípio de diálogo entre arte antiga [e] arte moderna, através de uma imagem visual apelativa, simultaneamente clássica e contemporânea» (Relatório Actividades 2014, 2015, Arquivos Gulbenkian, MCG 04376).

A receção crítica pelos media portugueses foi positiva, tendo a exposição sido considerada pela revista Time Out um exemplo de que «é muitas vezes de encontros improváveis que resultam as obras mais interessantes. É também destes confrontos pouco lógicos que surgem os diálogos mais produtivos» («Exposição Meeting Point», Time Out, 1 jul. 2015, p. 50).

A exposição foi classificada com quatro estrelas por José-Luís Porfírio no jornal Expresso, que sobre a apresentação simultânea das duas obras escreveu: «A carga negativa das composições de Botelho vai evidenciar a instabilidade mais oculta em Latour, pela passagem de uma vida quieta a uma inquieta nas coisas que mostra.» (Porfírio, Expresso, 11 jul. 2015, p. 85)

Carolina Gouveia Matias, 2019


Ficha Técnica


Artistas / Participantes


Coleção Gulbenkian

Natureza-Morta ou "La Table Garnie"

Henri Fantin-Latour (1836-1904)

Natureza-Morta ou "La Table Garnie", 1866 / Inv. 67

100.rç-cmb (da série confidencial/desclassificado: ração de combate)

Manuel Botelho (1950- )

100.rç-cmb (da série confidencial/desclassificado: ração de combate), 2007/2008 / Inv. FP556

101.rç-cmb (da série confidencial/desclassificado: ração de combate)

Manuel Botelho (1950- )

101.rç-cmb (da série confidencial/desclassificado: ração de combate), 2007/2008 / Inv. FP557


Publicações


Fotografias

Artur Santos Silva (à dir.)
Susana Prudêncio (ao centro) e Helena de Freitas (à dir.)
Helena de Freitas (à esq.), Manuel Botelho (ao centro) e Artur Santos Silva (à dir.)
Helena de Freitas (à esq.), Manuel Botelho (ao centro) e Artur Santos Silva (à dir.)
Artur Santos Silva e Helena de Freitas (esq.)

Documentação


Periódicos


Fontes Arquivísticas

Arquivos Gulbenkian (Museu Calouste Gulbenkian), Lisboa / MCG 04376

Pasta com documentação referente à produção da exposição. Contém relatório de atividades relativo a 2014 e programa de atividades de 2015, correspondência interne e externa, orçamentos e material para o catálogo da exposição. 2013 – 2015

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 20515

Coleção fotográfica, cor: aspetos (FCG, Lisboa) 2015

Arquivo Digital Gulbenkian, Lisboa / ID: 20533

Coleção fotográfica, cor: inauguração (FCG, Lisboa) 2015


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