“As cartas que nunca escrevi”, uma reportagem TSF

O projeto Rasgar Silêncios, apoiado pelo Programa Cidadãos Ativ@s, explora o papel libertador da escrita para mulheres que um dia foram vítimas de violência doméstica. Ainda que comecem a recuperar a vida normal, as cicatrizes que a violência deixa são difíceis de apagar e a escrita pode ajudar a chegar às memórias mais silenciadas. Uma reportagem TSF, pela jornalista Sara Rocha.

A reportagem TSF (audio) pode ser ouvida aqui.

Todas as semanas há oficinas de escrita autobiográfica na Covilhã. Vêm acompanhadas de chá, bolachas e exercícios para desenferrujar a memória. “Hoje vamos fazer uma mandala com palavras que nos lembrem a violência doméstica”, começa Graça Rojão, uma das coordenadoras do projeto Rasgar Silêncios.

As palavras começam a surgir: manipulação, humilhação, medo, vergonha. A sala está cheia de mulheres. Já foram vítimas. Hoje são sobreviventes mas isso não significa que as marcas da violência doméstica não continuem lá.

A Associação CooLabora, com sede na Covilhã, tem explorado o poder na escrita autobiográfica para chegar às memórias mais silenciadas de mulheres vítimas durante décadas.

“É um instrumento que permite analisar a história no seu contexto. Permite conhecer o antes e o depois. Permite – talvez seja esse o seu aspeto mais transformador – dar voz aos silêncios que habitam dentro das pessoas e que, de alguma forma, as atormentam”, explica Graça Rojão, presidente da associação.

Graça Rojão defende que a palavra transforma, apesar de admitir que é um processo muito exigente.

“Fica com uma ideia muito mais clara daquilo que aconteceu. Discute consigo, com uma maior frieza, o que é que se passou e porque se passou”, explica.

Além disso, a escrita permite “dizer o indizível, aquilo que está calcado dentro delas, nunca conseguiram deixar sair, mas que pode sair para o papel”.

Carmo, 57 anos. Fugiu de casa há dez anos.

A partir do momento em que decidi ter a minha filha mais nova, comecei a sofrer de violência doméstica. Ele já me tinha obrigado a fazer um aborto, estive às portas da morte. Foi horrível porque eu queria mesmo o bebé. Quando foi da segunda filha, ele ainda tentou convencer-me a abortar mas eu decidi seguir com a gravidez.

Primeiro começou com as atitudes. Aquilo que eu mais gostava ele partia. Não me deixava sair. Se eu saísse, sofria as consequências. Moía-me a cabeça, humilhava-me e agredia-me.

Eu não conseguia ver ao espelho o meu corpo porque ele humilhava-me. Eu sentia vergonha. Ele violou-me várias vezes. Tentou afogar-me, tentou sufocar-me com uma almofada.

Por exemplo, chegou a acontecer eu estar na casa de banho a arranjar-me para ir trabalhar, ele chegar lá e violar-me. Como é que eu vou voltar? Não vou. Não vou nunca. Já bastaram os 32 anos em que estivemos casados.

Quando iam pessoas lá a casa, ele era impecável. Tratava de tudo. As pessoas ainda não acreditam em mim hoje porque ele, aparentemente, era uma joia de pessoa. Mas esquecem-se que quando as pessoas se vão embora, nós ficamos.

Ainda hoje continuo a ser mentirosa, principalmente para a minha família. Ele continua a frequentar a casa da minha família como se tudo estivesse bem.

Quando estou a escrever, sinto raiva, dor, as lágrimas vêm-me. Mas estou a escrever porque já consegui passar. Já não estou lá. É um alívio.

Maria, 37 anos. Esteve casada 16 anos. Divorciou-se em 2018

Começou verbalmente. Ele dizia que eu não valia nada, que não era nada, não prestava para nada. Disse-me que se um dia tentasse separar-me dele e arranjar outra pessoa, nunca ia conseguir. Ele era muito manipulador e ciumento. Eu não fazia ideia que era já violência doméstica. Só depois é que me fizeram entender isso.

As coisas começaram a piorar quando ele começou a ganhar mais dinheiro. Meteu-se em drogas e mulheres, eu descobri e ele ficou muito revoltado com isso. Ele batia-me e depois à noite queria ter relações. Eu não queria porque estava magoada, eu não sou nenhuma prostituta. Ainda fui para o hospital umas vezes.

O dia da gota de água foi quando tentei levantar dinheiro e dei conta que não havia nada nas contas. Lembrei-me de ir ver a conta que tínhamos da nossa filha, com dinheiro guardado para a universidade. Ele tinha gastado tudo. Confrontei-o quando cheguei a casa e ele estava muito exaltado. Deslocou-me o maxilar, tentou matar-me. A minha filha estava em casa, assistiu a tudo. Nós ainda nos tentamos isolar num quarto, ele partiu a porta. Quando fui à casa de banho, ele agarrou-me pelo pescoço, atirou-me contra o móvel grande que tínhamos lá e nunca mais me largou até a minha filha chegar. Foi a minha filha que me acordou e me perguntou: estás à espera de quê para chamar a polícia?

As oficinas de escrita da CooLabora ajudaram-me a perceber que estou não sozinha, que há mais pessoas a passar pelo mesmo que eu. E não muda muito de umas para outras. Percebi também que precisava de deitar muita coisa cá para fora. Foi muito bom.

Estou a melhorar. Cada dia que passa, gosto mais de mim. Todos os dias descubro alguma coisa nova em mim que gosto. Por enquanto nem consigo pensar em arranjar um namorado. Agora quero concretizar sonhos. Ganhar para viagens e levar a minha filha à Disneyland.

Sónia, 43 anos. Casou aos 16 para fugir da violência em casa

Eu sou vítima de violência doméstica desde cedo. Eu e o meu irmão. A minha mãe era muito agressiva. Se fosse hoje em dia, a Segurança Social atuava logo. O meu irmão ainda foi pior do que eu. A mãe chegava a atar o meu irmão a uma cadeira na sala e bater-lhe. Um dia vi que ela saltou-lhe com os pés em cima e o meu irmão só cuspia sangue.

Quando conheci o meu ex-marido tentei engravidar porque achei que podia ser uma forma de escapar a toda a violência. Às vezes, as coisas não correm como queremos. Casei-me e meti-me noutra situação ainda bem pior.

Estive casada 22 anos. Ele agrediu-me logo no primeiro ano de casamento. Primeiro, começou a fazer noitadas e a não entregar dinheiro em casa. Eu tentei levar as coisas, tinha uma filha pequena e não queria separar-me. Depois fiquei grávida do segundo filho e tive de ser o pilar para alimentar os meus filhos, mas sempre com agressões.

Quando o meu filho tinha nove meses fiquei muito doente. Tive tuberculose que me deixou às portas da morte. Nessa altura ele também me bateu.

Muitas vezes não havia comida. Ele comia em bons restaurantes e nós nem tínhamos dinheiro para pagar a renda. Uma vez ficamos a viver numa casa durante três meses sem água e sem luz.

Consegui o divórcio a muito custo. Ele faltou a quatro audiências para tratarmos da separação. A minha filha escolheu ficar a viver com o pai. O meu filho ficou comigo. Hoje em dia ela liga-me todos os dias mas, durante quatros, a minha filha telefonava-me apenas no dia dos meus anos.

Nós é que temos de saber ultrapassar as nossas coisas. Temos de ver qual é a melhor situação para nós, para conseguir também reagir. Escrever é um desabafo. Temos coisas cá dentro que têm de ser tiradas.

Ana, 44 anos. Casou aos 16 anos por amor

Eu casei-me aos 16 anos. Ainda não tinha feito um ano de casada e já tinha levado porrada. Encarei como algo normal. Consegui enfrentar. Talvez devido ao facto de ser muito nova ou de assistir, muitas vezes, ao meu pai bater na minha mãe.

Estive casada legalmente durante 19 anos. Mas ainda tive outros cinco anos divorciada mas a viver na mesma casa. Ou seja, foram 23 anos de agressões.

Eu casei-me por amor. O meu maior medo era que lhe acontecesse alguma coisa e eu ficasse sozinha com os nossos dois filhos.

O momento que me fez abrir os olhos foi quando o meu ex-marido arranjou uma amante. Depois de aguentar tudo, eu não merecia. Continuamos a viver na mesma casa mas eu deixei de lhe fazer comida, de lhe lavar a roupa.

Quando pedi o divórcio, as coisas complicaram porque começaram as ameaças de morte, a perseguição. Ele andava muitas vezes armado. Tive muito pânico, tive muito medo.

Houve uma vez que levei almoço para o trabalho – era caldo verde. Recebi uma mensagem a perguntar: ‘o caldo verde estava bom?’. Eu corri para a casa de banho, deitei as mãos à garganta e vomitei. Cheguei a um ponto que, eu tinha tanto medo que ele me deitasse alguma coisa no comer, que eu levava o tupperware do almoço para o meu quarto.

Só descansei quando a justiça atuou. Levou oito meses mas o meu ex-marido esteve com pulseira eletrónica durante 32 meses.

Carolina, 41 anos. Esteve casada durante 12 anos

Cheguei à Covilhã há dez anos. Primeiro estive em Espanha. Sou sul-americana e viajei para estudar. Mas depois veio a crise e os emigrantes são sempre os últimos da lista para arranjar trabalho. Soubemos que precisavam de professores na Covilhã e viemos para cá.

A minha vida mudou de um dia para o outro. Não houve propriamente um indício que mostrasse que as coisas estavam a ficar mal. Foi um par de discussões, com algumas explosões, violência física e psicológica. De repente, expulsou-me de casa. Fiquei totalmente desamparada.

Fui ao banco mas ele tinha cancelado as contas que tínhamos em comum. A pessoa que me atendeu percebeu que alguma coisa se passava e até pareceu constrangida ao dizer que eu não podia levantar dinheiro.

Que faço? Se vou para casa levo outra sova. Não tenho amigos, a minha família está longe. Ligar a alguém da minha família era só estar a preocupá-los. Decidi ir à polícia. É isso que costumamos ver na televisão, nos filmes. Deram-me uns papéis e fui encaminhada para a CooLabora.

Ao início, as oficinas de escrita são dolorosas. É uma história que queremos esquecer. É como quando tens uma ferida, uma cicatriz que tapas. Quando escrevemos, tiramos o penso, fica tudo exposto outra vez.

Numa conversa há mais intervenções, é enriquecedor de outra maneira. Quando temos um papel e uma caneta, contamos apenas com a nossa própria voz. Ao início custa mas depois só dizia: passa para cá cá o papel que tenho de escrever.

Aumento de 11% de vítimas na Covilhã

No ano passado morreram 29 mulheres vítimas de violência doméstica em Portugal. Entre janeiro e setembro de 2019, a PSP e a GNR receberam mais de 22 mil e 500 queixas de maus tratos em contexto conjugal.

Na Covilhã, o Gabinete de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica da CooLabora apoiou 135 novas situações de violência em 2019, fora o acompanhamento a outras 89 vítimas de anos anteriores.

“Foi um ano em que tivemos um aumento de 11% do número de vítimas a procurar-nos em relação ao ano anterior. E isto tem-se vindo a verificar nos últimos três anos”, explica Diana Silva, técnica de apoio à vítima no gabinete da CooLabora.

Quase 40% das vítimas que procuraram ajuda do gabinete tinham idades entre os 25 e os 44 anos. Cerca de 16% tinha mais de 65 anos. Cerca de 12% dos pedidos chegarem por parte de mulheres com habilitações académicas.

Diana Silva defende que os dados mostram que não é possível traçar um perfil da vítima de violência doméstica.

“Tanto pode ser a vítima que começou uma relação há pouquíssimo tempo, se vê envolvida já num contexto de violência e sai. Ou temos as vítimas que estão em situações de violência há 40, 50, 60 anos”.

A violência é transversal à sociedade

A investigadora Amélia Augusto explica que não se trata de traçar um perfil, já que a violência é uma demonstração da desigualdade de género que existe na sociedade portuguesa.

“Os sinais, em muitas circunstâncias, são ainda de que existe uma desigualdade estruturada, e quando dizemos estruturada significa que está na própria estrutura da sociedade e é transversal à sociedade. Ainda tem a ver com o modo como entendemos homens e mulheres, ou valorizamos homens e mulheres”, afirma.

A investigadora lembra os dados da violência no namoro para explicar que também não se trata de uma questão geracional. Seis em cada dez jovens portugueses sofrem ou já sofreram violência no namoro.

Muitas destas mulheres conseguem a primeira ajuda junto das forças de segurança, que não são esquecidas nos workshops da CooLabora. As vítimas escrevem cartas aos ex-maridos mas também aos grupos profissionais que têm uma intervenção mais direta nas questões da violência doméstica.

Do outro lado, também há uma folha em branco. Além de escreverem uma carta às vítimas, os polícias e os militares da GNR têm oportunidade de ler o que estas mulheres confidenciam.

“Foi muito benéfico para nós termos tido a oportunidade de ler as cartas escritas pelas vítimas”, afirma João Fernandes.

O comandante da esquadra territorial da Covilhã explica que a possibilidade de ter acesso à informação que as vítimas mais destacam, ajuda a polícia a ganhar mais sensibilidade.

“Não é que os polícias não tenham noção da gravidade destes casos – porque têm – mas é natural que, lidando muitas vezes com estes casos, fiquem dessensibilizados em relação à vertente trágica que estes casos têm para uma família e para a vida das pessoas. No entanto, ao ler alguns testemunhos emotivos, voltamos a ficar mais sensibilizados ainda com estas situações”.

Para David Canarias, comandante de destacamento da GNR da Covilhã, foi importante entender “quais é que são as palavras adequadas” a utilizar, de forma a evitar que a vítima se sinta ainda mais constrangida.

LEIA EXCERTOS DE CARTAS ESCRITAS POR VÍTIMAS

Carta ao meu marido

“Quando penso na minha vida de casada só recordo tristezas, terror e violência. Essa violência logo no primeiro dia de casamento, quando em violaste várias vezes, sem quereres saber do meu sofrimento, minhas lágrimas. Todas as manhãs ao longo do nosso casamento foi assim. Mesmo quando eu estava a amamentar durante a noite não respeitavas esse momento tão íntimo e violavas-me. Namoramos dois anos e meio e nunca descobri que estava a ser enganada. Só no dia do nosso casamento. Dia em que até pensei suicidar-me. Nesse mesmo dia lembro-me de ter pensado: quem eu ainda era há algumas horas. Agora sou um farrapo e um joguete nas tuas mãos.”

Carta ao meu pai

“Não me lembro de termos tido, alguma vez, uma conversa. Lembro-me das sovas que apanhava, de lhe lavar os pés e de o ver bater na minha mãe. A minha mãe que era a pessoa mais doce que eu conhecia, que nos contava histórias, que nos dava colo, que nos penteava demoradamente. De si, meu pai, só tenho más recordações. De me bater por tudo e por nada. De se rir por me ver chorar depois de apanhar uma sova. Nada fazia sentido porque nunca consegui compreender a razão de tanta violência contra mim, contra os meus irmãos e contra a mãe.

Recordo como particularmente violenta aquela vez que pegou num machado para atacar a minha mãe e que eu, encostada a um canto da cozinha, consegui arranjar coragem para lhe atirar o pedaço de pão que comia, como reação instintiva de defender a minha mãe. E percebi, aliviada, que o pai nem se tinha apercebido da minha ousadia pois sei que isso seria motivo para me dar mais uma sova que eu não esqueceria. O que o travou, é claro, não foi o pão mas os nossos gritos de pavor.”

Carta ao meu namorado

“Aos 21 anos, as borboletinhas no estômago não me deixavam comer. Aquele brilho no olhar dele inebriava-me os sentidos. A ansiedade e o frenesim em cada encontro era o melhor momento do meu dia. Estava completamente e irremediavelmente apaixonada. Mas, de repente, sem qualquer previsão, como que uma tempestade rompe do céu. O meu mundo encantado de paixão ruiu. As borboletas fugiram para longe, o brilho deu lugar a lágrimas de desespero e desconcerto.

A mulher em mim – confiante – estava a desvanecer. Os ciúmes doentios dele, os comentários sobre o que eu vestia, as investidas ao meu telemóvel começaram a ser os seus passatempos favoritos. Até que um dia empurrou-me para o chão e fraturei o cóxis. E na segunda que me bateu na cara. Culminou nas perseguições e foi aí que decidi que tinha de acabar. Amar-me a mim era importante. A pena por ele tinha de acabar.

Hoje sou feliz. Esta é a minha história. Verdadeira. Para partilhar.”

Atualização em 25 outubro 2022

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