Vanitas foi uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian incluída no vasto programa das celebrações do cinquentenário da instituição em 2006. Numa entrevista televisiva, emitida no dia da apresentação do tríptico no CAM, Paula Rego conta ter pintado o painel central em último lugar: «Por fim, dei a importância toda à mulher, levantei-a. Note que estas duas figuras de mulher estão cortadas porque eu estava a pintar de cima e não via a parte de baixo; dei toda a importância a ela, ela teve que pôr a simbologia toda, as histórias e os mistérios, tudo, para trás da cortina e continuar a viver».
Pintando alguns objetos usados tradicionalmente nas vanitas (muito embora introduza outros inéditos ou reconhecíveis em quadros anteriores), Paula Rego parece seguir o tema canónico deste género de natureza-morta, popular na Europa do final do século XVI ao século XVIII: tudo na vida é efémero, o Homem é um ser para a morte. Porém, se nos painéis laterais o modelo Lila representa o torpor, o desengano e a implacabilidade imposta pela morte, no painel central, subvertendo o fatalismo clássico das vanitas, a figura feminina reemerge, liberta dos condicionalismos, como se conquistasse à morte uma nova oportunidade de viver.
O tríptico de Paula Rego parte do conto Vanitas, 51 Avénue D`Iéna, de Almeida Faria (n. 1943). Na ficção espectral de Almeida Faria Calouste Gulbenkian, embora morto, continua apegado à sua coleção de arte e às aventuras e prazeres que ela lhe proporcionou (assim o revela o solilóquio noturno que impõe a um interlocutor transido de frio e cansaço). Neste aspeto, a Vanitas de Paula Rego constrói a sua antítese: a protagonista atira para trás das costas todos os momento mori e apresenta-se inteira e desafiadora.
Susana Neves
Maio 2010