Os elementos-fragmentos que integram esta obra saem do universo de referência mais comum nas obras de Amadeo produzidas até então. Em Coty, Amadeo quase abandona os discos delaunayanos e os pochoirs, ao mesmo tempo que introduz flores no repertório das suas “naturezas-mortas”, pinta uma carta de jogar e substitui os fragmentos de violas pela representação truncada de um nu feminino. Substitui igualmente os papiers collés pela colagem de objectos. Há vários pedaços de espelho, ganchos de cabelo e contas de colar incrustados na tela, tal como há também um plano pintado sobre uma superfície de vidro saliente no canto inferior esquerdo da tela, precisamente aquele onde Amadeo pinta um dos dois frascos de perfume que associa à marca industrial criada por François Coty. Na malha apertada dos planos que se intersectam no canto superior direito é possível discernir ainda o perfil e a mão de um homem a fumar.
Um nu feminino acolhendo no seu boudoir um fumador masculino; perfumes, flores, ganchos, colares e espelhos (já para não evidenciar a potencial metáfora da aranha na teia e da borboleta) evocam, dir-se-ia, um tema clássico, a lembrar as escandalosas Olympia e Nana de Manet ou, de mais perto, as Les Demoiselles de Avignon de Picasso.
Ainda que Coty não obedeça a qualquer lógica ilusionista de representação, nem a nenhuma sequência narrativa linear, Amadeo não deixa de explorar a referência concreta, nem mesmo a possibilidade de contar histórias na sua pintura. Tal não invalida, em nenhum momento, o valor essencialmente pictórico desta tela. Muito pelo contrário, partindo das possibilidades abertas pelo cubismo, Coty explora os limites da própria pintura: pela diversificação de texturas, pela sobreposição de planos e, sobretudo, pela introdução das colagens – esses fragmentos reais do universo de referência que desestabilizam a pintura enquanto modo de representação. Donde, e antes de mais, Coty pensa e (des)constrói pintura. Sem dúvida por isso, é frequentemente apresentada como uma das obras mais importantes da produção final de Amadeo.
Joana Cunha Leal